Introdução
A Paracoccidioidomicose (PCM) é uma lesão sistémica causada pelo fungo dimórfico Paracoccidioides brasiliensis.1 A doença foi originalmente descrita por Adolfo Lutz em 1908, com endemia na América Latina, sendo registrada com maior ocorrência nos países da América do Sul. No Brasil, a PCM é a oitava causa mais comum de mortalidade entre doenças infecciosas e parasitárias crônicas recorrentes, com taxa de mortalidade de 1,45 por 1 milhão de habitantes.2 Estima‑se que o número de casos de paracoccidioidomicose no Brasil varie de 3360 a 5600 por ano, com taxa de letalidade de 3% a 5%.3 As regiões com maior frequência são o sul e sudeste, principalmente entre as populações das áreas rurais.4 A doença pode afetar pessoas de todas as faixas etárias, com maior prevalência em indivíduos de meia idade (50‑ 59 anos) do género masculino.⁴ O paciente pode apresentar sequelas graves ou, até mesmo, evoluir a óbito, em casos de diagnóstico atrasado ou tratamento mal realizado.5
As lesões orais são consideradas secundárias à disseminação do agente pelos pulmões6 mas, geralmente, representam a primeira e/ou a única manifestação clínica da doença.7 É caracterizada por uma ou várias áreas ulceradas e eritematosas com bordas irregulares, aparência granular, conhecida como estomatite moriforme.8 Frequentemente apresentam sintomatologia dolorosa, prejudicando a higiene oral do paciente.6, 9 Como consequência da doença, a microstomia pode ocorrer em intensidades variáveis.10
O tratamento é dependente da imunidade do hospedeiro, do tamanho do inóculo de Paracoccidioides sp e do composto antifúngico utilizado. A duração da abordagem é preferencialmente mantida até a recuperação da imunidade mediada por células, evitando a reativação das células fúngicas, que podem persistir como focos latentes.11 A adesão por parte dos pacientes com paracoccidioidomicose é baixa e o período com maior perda de acompanhamento corresponde ao período dos primeiros quatro meses.12 O objetivo do presente estudo foi realizar uma análise retrospetiva do perfil epidemiológico, clínico, do tratamento e prognóstico de 59 pacientes, brasileiros, diagnosticados entre 1994 e 2018 com lesões orais de paracoccidioidomicose e acompanhados após o tratamento.
Material e métodos
O estudo foi aprovado de acordo com a Declaração de Helsinque pelo Comité de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Neste estudo retrospetivo, foram analisados registros histopatológicos de biópsias orais e maxilofaciais. Os registros de biópsia com diagnóstico de PCM foram recuperados, totalizando 17.358 pacientes diagnosticados com lesões em um período de 24 anos. Os casos orais de PCM foram analisados quanto ao género do paciente, idade, raça, ocupação e cidade de origem (capital e região metropolitana / país). Também foram obtidos os arquivos de localização anatômica, sintomatologia (sintomática/assintomática) e diagnóstico clínico e histopatológico.
Além disso, o número de telefone e endereço foram obtidos dos prontuários médicos e os indivíduos foram contatados para reavaliação das condições de saúde e exame oral após o tratamento.
Os pacientes foram questionados, através de perguntas, por telefone ou pessoalmente. Os endereços e contatos telefónicos obtidos nos registros das biópsias foram utilizados para o recrutamento dos pacientes. No retorno, os mesmos foram questionados sobre o tipo e duração do tratamento e um novo exame clínico foi realizado. Todos os participantes, cientes da proposta da pesquisa, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
O fluxograma mostra como os pacientes foram contatados e quantos compareceram ao chamado (Figura 1).
Todas as datas foram incluídas em um arquivo e a estatística descritiva foi realizada para caracterizar os casos com relação às seguintes informações: género, idade, raça e ocupação do paciente, localização anatómica da lesão e característica clínica.
Resultados
Um total de 59 registros de biópsias de PCM foram recuperados dos arquivos e representaram 0,3% das lesões orais diagnosticadas no serviço. Os achados clínicos e caracterizações demográficas obtidos dos prontuários dos pacientes incluídos no estudo foram sumarizados na Tabela 1. A maioria dos pacientes era do género masculino (n = 55; 93,0%) e a proporção de homens para mulheres foi de 9:1. A idade variou entre 33 e 70 anos (média de 49,9 anos) e a maioria dos pacientes estava na quinta década de vida, como mostra a Figura 2.
Considerando a raça dos pacientes, os indivíduos foram classificados em 72,9% (n = 43) brancos e 23,7% (n = 14) não brancos, em 3,4% (n = 2) dos prontuários a raça não foi informada.
A maioria dos pacientes eram trabalhadores rurais (n = 15; 25,4%), seguidos por pedreiros (n = 8; 13,5%), motoristas (n = 7; 11,8%), serviço geral (n = 5; 8,4%) e carpinteiro (n = 3; 5,0%). Houve um caso de estudante, donas de casa, garçom, agente comunitário, mecânico, operador de máquina, pintor, porteiro, representante comercial e caseiro, totalizando em conjunto 16,9% dos casos. Em 18,6% (n = 11) dos arquivos a ocupação não foi informada.
Vinte e quatro pacientes (36,3%) foram registrados como fumadores e oito deles eram alcoólicos. Dezassete (28,0%) dos pacientes eram da cidade do interior e 14 (23,0%) da capital e região metropolitana. Vinte e nove casos (49,0%) não foram
informados.
As caracterizações clínicas das lesões foram obtidas nos registros. As lesões foram descritas como úlcera (n = 39; 66,0%), lesão erosiva (n = 8; 13,5%), lesão hiperplásica (n = 4; 6,7%), nódulo (n = 4; 6,7%) e sem informação (n = 4; 6,7%). As localizações anatómicas das lesões foram: mucosa oral (n = 14; 23,7%), lábio (n = 8; 13,5%), língua (n = 10; 16,9%), gengiva / crista alveolar (n = 6; 10,1 %), palato (n = 4; 6,7%), assoalho da boca (n = 1; 1,7%), orofaringe (n = 1; 1,7%); áreas múltiplas (n = 13; 22,0%) e não informadas (n = 2; 3,3%). A sintomatologia foi observada em 38,9% (n = 23) dos indivíduos, enquanto os assintomáticos foram 27,1% (n = 16) e nenhuma informação 22,0% (n = 20). A primeira hipótese diagnóstica dos casos foi PCM (n = 20; 33,8%), seguida de carcinoma espinocelular (n = 6; 10,0%).
Após o contato, apenas 8 (13,3%) dos casos retornaram para reavaliação. Durante os exames, não foram observadas lesões e as caracterizações demográficas e clínicas foram sumarizadas na Tabela 2.
Discussão
O PCM é uma importante doença sistêmica na América Latina. O presente estudo descreve dados demográficos e clínicos dos registros de biópsia de 59 pacientes brasileiros encaminhados para um centro de diagnóstico oral. Um estudo brasileiro recente, baseado em um relatório da frequência de lesões de PMC em seis centros de referência, demonstrou que a PCM representa 0,3% dos casos entre as lesões orais e maxilofaciais diagnosticadas.4 Os dados do presente estudo corroboram com esta estimativa.
A disponibilidade de informações sobre a manifestação oral e o acompanhamento das lesões por PCM é escassa na literatura. Dessa forma, o presente trabalho recrutou todos os sujeitos com dados completos nos prontuários para reavaliação.
No entanto, a baixa taxa de retorno dos pacientes foi uma limitação do estudo. A baixa de retorno pode estar relacionada à melhoria clínica dos pacientes, mudança de endereço ou óbito de alguns casos. Deve‑se considerar ainda que o presente estudo se trata de um estudo de dados retrospectivos de diagnósticos feitos em um período de 24 anos e muitos dos pacientes já eram idosos no momento do diagnóstico. Dessa forma, sugere‑se a realização de estudos de acompanhamento de pacientes diagnosticados com PCM que façam reavaliações periódicas após o diagnóstico e tratamento dos pacientes. Um vínculo mais estreito entre os serviços de saúde e os pacientes podem aumentar o retorno aos acompanhamentos.
É importante ressaltar que a maioria dos pacientes procurou atendimento profissional devido às lesões orais, sendo esta a localização mais frequente de PCM em comparação com outras regiões anatómicas. A incidência anual estimada no Brasil varia de 0,71 a 3,70 casos por 100 mil habitantes.3 Embora a PCM seja a 8.ª causa de morte entre as doenças infecciosas parasitárias, ainda está incluída no grupo de doenças negligenciadas, não havendo exigência de notificação compulsória.10
Os pacientes do género masculino de meia‑idade e trabalhadores rurais foram predominantes na amostra. Esse pico de incidência também foi observado em outros estudos da população brasileira13 e resulta em um importante impacto socioeconómico na população.14 A predominância de pacientes do género masculino é clara em outros estudos epidemiológicos, pois é observada uma influência inibidora do estrogénio na síntese de proteína por células fúngicas, que são essenciais para a transição dos esporos para a forma de levedura patogénica.15Poucos casos de PCM foram relatados em mulheres e geralmente afetam aquelas que encontram‑se em pós‑menopausa, não produzindo quantidades substanciais de hormona.16 No presente estudo foram relatados três casos em mulheres com 33, 36 e 44 anos. Embora a supressão da resposta imune possa estar presente nesses casos, essa condição não foi relatada nos prontuários.
Pacientes com PCM apresentaram lesões principalmente na mucosa oral, lábios e língua. Esses resultados contrastam com a literatura que demonstra predominância da localização gengival.13 Na análise de 613 casos, 27,3% das lesões foram diagnosticadas na gengiva, seguida pelo palato, lábios e mucosa oral.4 Sugere‑se que a prevalência da localização gengival pode ocorrer devido a mediadores inflamatórios, produzidos no contexto de doença periodontal pré‑existente, que poderiam contribuir para a instalação do fungo. Ainda é discutido se a inflamação gengival favorece o desenvolvimento da doença após a inoculação do fungo ou se apenas exacerba a expressão da lesão local.3,17
Os sintomas sistêmicos de pacientes com PCM oral são frequentemente caracterizados por tosse, dispneia, disfagia, febre e hemoptise, que são úteis para distinguir o quadro clínico de outras patologias, como o cancro oral. As lesões presentes na cavidade oral foram frequentemente associadas à dor, conforme observado em 40,0% nos indivíduos deste estudo.
No entanto, a ausência de tais sintomas não exclui a PCM do diagnóstico diferencial. A citologia esfoliativa ou biópsia pode fornecer um diagnóstico definitivo. A morfologia do agente etiológico pode ser identificada de maneira consistente e precisa na microscopia de rotina de esfregaços ou cortes de tecidos.19 Contudo, algumas colorações especiais, como ácido periódico de Schiff (PAS) e Grocott‑Gomori, podem ser necessárias.19,20,21No presente estudo, todos os diagnósticos foram realizados com biópsia de tecido oral e coloração com hematoxilina e eosina (HE). Em alguns casos, colorações especiais foram utilizadas para confirmação do diagnóstico.
A falta de alguns dados clínicos foi uma limitação deste estudo, em razão da natureza retrospetiva, com base nos registros de biópsia, relatados por diferentes profissionais.
Considerando‑se a importância dos registros como fontes de informação para estudos epidemiológicos, os profissionais devem ser incentivados ao preenchimento adequado e preciso dos dados. A indisponibilidade de radiografias convencionais de tórax para triagem pulmonar e sorologia para HIV também foram fatores limitantes. Uma vez que todos os pacientes foram diagnosticados a partir das lesões bucais e estes exames foram realizados nos serviços para onde os pacientes foram encaminhados para tratamento. Além disso, os retornos dos pacientes para as reavaliações foram insatisfatórios, tendo como possíveis causas a condição atual de saúde ou óbito.
Embora o retorno para a reavaliação tenha sido escasso, o tratamento médico foi eficaz e nenhuma mortalidade foi registrada na amostra.18
Conclusões
Os achados atuais confirmam a importância das lesões orais no diagnóstico e tratamento da PCM, assim como ratificam questões pouco elucidadas na literatura, como a possibilidade de inoculação direta do fungo nos tecidos orais. Portanto, observou‑se que a PCM é uma lesão fúngica de baixa incidência, principalmente nos casos com diagnóstico de lesões orais. Ocorre predominantemente em homens e pode afetar uma ampla faixa etária. As taxas de resposta para comparecer à reavaliação clínica desses pacientes foram baixas.