Introdução
A fenda lábio‑palatina (FLP) isolada é a malformação congénita da cabeça e do pescoço mais comum.1 A sua etiologia não é completamente conhecida mas estão identificados vários factores genéticos e epigenéticos. Apesar da hereditariedade representar um papel importante na sua origem, esta malformação não é considerada uma doença que implique um só gene. Assim, qualquer agente físico, químico ou biológico que atue na diferenciação, migração e proliferação das células da crista neural, com subsequente envolvimento mesenquimatoso facial, apresenta um potencial risco à ocorrência desta malformação. Vários estudos epidemiológicos demonstraram o sinergismo existente entre determinados fatores ambientais e genéticos.2,3
As crianças com FLP apresentam um largo espectro de necessidades específicas e a consequência mais óbvia desta condição é a presença de uma face diferente. Só com uma equipa multidisciplinar é possível providenciar um follow‑up a longo termo para alcançar os seguintes objetivos: reconstrução precoce da face para permitir o crescimento fisiológico; integridade do palato primário e secundário; permeabilização adequada das vias áreas; audição normal; discurso/fonia normal; e adequado desenvolvimento psicossocial.4,5
Apesar de existirem diferentes protocolos cirúrgicos, todos possuem em comum intervenções cirúrgicas para correção do lábio, nariz e palato durante os dois primeiros anos de vida.6No entanto, mesmo nos casos onde são aplicadas as técnicas cirúrgicas adequadas, nem sempre os resultados estéticos alcançados são os mais desejados.
Além disso, o tecido cicatricial produzido como consequência dos procedimentos cirúrgicos gera frequentemente forças centrípetas na região maxilar, que promovem o aparecimento de condições clínicas indesejáveis, como o colapso ântero‑posterior e transversal do maxilar superior e o avanço da pré‑maxila.7
Em 1950, McNeil utilizou pela primeira vez placas obturadoras para aproximar os segmentos alveolares em recém nascidos com FLP.8 Mais tarde, em 1984, estudos efetuados em recém‑nascido demonstraram que a cartilagem auricular poderia ser moldada com resultados permanentes, se o tratamento fosse iniciado nos primeiros dias de vida - devido ao aumento da plasticidade da cartilagem no recém nascido, resultante dos elevados níveis de estrogénio materno circulante na corrente sanguínea da criança.9
O primeiro protocolo de tratamento com modelador naso‑alveolar (NAM, do acrónimo anglo saxônico nasoalveolar molding) foi estabelecido em 1999. O NAM é um aparelho de ortopedia pré‑cirúrgica que permite reduzir a dimensão da fenda e realizar o modelamento da cartilagem nasal.10
O Instituto de Ortodontia da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em colaboração com o Hospital Pediátrico de Coimbra elaborou um protocolo de atuação para implementação de modelagem nasoalveolar pré‑cirúrgica.
Este protocolo será relatado através dos casos clínicos expostos e obtidos de forma aleatória, mas com o mesmo follow up.
Casos clínicos
Dois recém nascidos do sexo masculino, com 2 semanas de vida, foram referenciados para avaliação clínica, na qual observou‑se serem portadores no caso (A) de FLP bilateral e no caso (B) de FLP esquerda, sem outras patologias associadas (sindrómicas ou não‑sindrómicas). Não foram reportados antecedentes familiares, nem a exposição dos progenitores a fatores epigenéticos durante o período concepção e gestacional.
No exame físico extra‑oral foi possível identificar a eversão do prolabium, desvio lateral da pré‑maxila e deformidade da cartilagem nasal em ambos os casos. No exame intraoral, observou‑se o desalinhamento dos segmentos alveolares com um gap interalveolar no caso (A) de 2,1 centímetros à direita e 1,9 centímetros à esquerda e no caso (B) com 3,5 centímetros à esquerda.
Todos os procedimentos clínicos foram realizados com o consentimento informado dos progenitores/cuidadores.
A impressão intraoral foi realizada com silicone de adição em consistência de massa (soft putty/regular set, AquasilTM, Dentsply Sirona) às duas semanas de vida, com recurso a uma moldeira pré‑fabricada e adaptada a cada um dos bebés. A impressão foi efetuada no caso (A) ao décimo terceiro dia de vida e no caso (B) ao décimo quinto dia (Figuras 1 e 2). Na impressão, o bebé é posicionado em decúbito ventral, permitindo a anteriorizarão da língua e o escoamento dos fluídos orais, por forma a evitar a obstrução das vias aéreas. Os pais são aconselhados a não alimentarem a criança nas três horas precedentes à realização da impressão. Seguidamente, as cavidades orais e nasais são inspecionadas com intuito de remover qualquer material residual da impressão.
Os dispositivos NAM foram confeccionados em acrílico autopolimerizável, com dois a quatro milímetros de espessura, para fornecer a rigidez necessária durante o tratamento (Figuras 3, 4 e 5). Em ambos os casos, o botão de retenção foi posicionado anteriormente à base do NAM, com um ângulo de 40 graus. Um orifício com 5 milímetros foi realizado no centro da base, para impedir a obstrução temporária das vias aéreas em caso de desinserção e queda posterior do aparelho. Posteriormente, e antes da inserção, cada dispositivo foi minuciosamente inspecionado, tendo sido verificado os limites de recobrimento anatómico com o objetivo de evitar o trauma intraoral.
Nos casos clínicos apresentados, os dispositivos NAM foram colocados ao décimo oitavo dia de vida. A aparatologia foi ancorada por steri strips (Steri‑StripTM, 3M) e elásticos ortodônticos (diâmetro 4,8mm; força de ± 185 gramas, DENTAURUM GmbH & Co.KG), aplicados bilateralmente nas bochechas, previamente protegidas com uma membrana de hidrocolóide (DuoDerm®). A tração de cada elástico ortodôntico gera uma força de aproximadamente 100 gramas, levando à aproximação e alinhamento dos segmentos alveolares e promovendo a moldagem labial e a retrusão da pré‑maxila.11A utilização do NAM é contínua, no período diurno e noturno, e os pais são instruídos a retirar o NAM somente para a higienização diária.
O controlo do NAM foi realizado semanalmente, onde era verificada a força extra‑oral e realizados os ajustes no acrílico, inferiores a um milímetro. Em ambos os casos, quando o espaço interalveolar apresentou uma distância inferior a um centímetro, procedeu‑se à aplicação do stent nasal para a moldagem do nariz (Figura 6). O stent nasal é constituído por um fio de aço inoxidável com uma extremidade livre em acrílico com formato de rim, para permitir a adaptação e a pressão sobre os tecidos nasais. Optou‑se pela colocação de apenas um stent nasal, uma vez que a cartilagem nasal do lado contra‑lateral encontrava‑ se bem posicionada (Figuras 7 e 8).
Cada caso clínico foi controlado durante 12 semanas até o dia da cirurgia. Em ambos os casos, verificou‑se uma extraordinária aproximação dos segmentos labiais da fenda, com redução do espaço de 2,1 centímetros para 0,9 centímetros à direita e de 1,9 centímetros para 0,4 centímetros à esquerda no caso (A) e de 3,5 centímetros para 1,2 centímetros no caso (B). Em ambos os casos verificou‑se uma melhoria da projeção nasal com alongamento da columela.
Os doentes foram submetidos a queiloplastia pela técnica de Millard à décima quarta semana de vida, tendo como objectivo a reconstrução anatómica do lábio e nariz minimizando a ressecção e desvitalização dos tecidos.
Os resultados cirúrgicos foram bons, tendo‑se verificado a correta reposição da anatomia da face com menor formação de tecido cicatricial. Ao sexto mês de controlo pós-cirúrgico, quer no caso (A) quer no caso (B) verificou‑se a estabilidade da cartilagem nasal esquerda (envolvida na fenda), com boa projeção da columela e melhoria da simetria nasal. Na inspecção intraoral, verificou‑se em cada um dos casos ausência do colapso anterior e posterior do arco alveolar superior. Nas Figuras 9, 10, 11 e 12 são apresentados os resultados obtidos com o tratamento no caso (A) e (B), respetivamente.
Discussão e conclusões
O fundamento do tratamento ortopédico pré‑cirúrgico é suportado pelos estudos efetuados em cartilagens auriculares que demonstraram o aumento da plasticidade no recém‑nascido.
A presença de elevados níveis de estrogénio materno, nas primeiras 6 semanas de vida, desencadeiam um aumento do ácido hialurónico que altera a elasticidade da cartilagem e do tecido conjuntivo.10,12Posteriormente, foram realizados vários estudos preconizando a utilização do NAM nas primeiras duas semanas de vida.13Nos casos clínicos relatados, verificou‑se a eficácia do NAM na reorganização dos processos alveolares, promovendo a sua aproximação e orientação, assim como a projeção e alinhamento da cartilagem nasal.
Outras das vantagens do NAM é evitar o posicionamento da língua na zona da fenda, permitindo normalizar o crescimento e o desenvolvimento do terço médio da face.11A aproximação e o alinhamento central dos segmentos labiais, prévia à cirurgia, permite o reposicionamento da base alar, reduzindo simultaneamente a tensão dos tecidos aquando do procedimento cirúrgico. Desta forma, é possível obter resultados mais preditivos com menor formação de tecido cicatricial, prevenindo o colapso pós‑
cirúrgico e o desenvolvimento de mordida cruzada.14,15São descritas na bibliografia científica outras vantagens, como a redução do número de intervenções cirúrgicas para revisão do tecido cicatricial, fístulas oro‑nasais e deformidades nasais e/ou labiais.15 Outra vantagem desta técnica, ao permitir o melhor alinhamento dos segmentos alveolares, é contribuir para o desenvolvimento de melhores pontes ósseas alveolares, diminuindo assim a necessidade de enxertos ósseos secundários e, aumentando a probabilidade dos dentes erupcionarem na posição correta e com suporte periodontal adequado.15,16Relativamente às cirurgias adicionais realizadas habitualmente nestes doentes, alguns autores reportaram que 60% dos pacientes submetidos ao tratamento com NAM e queiloplastia não necessitam de enxerto ósseo secundário na área da fenda.17
A adição do stent nasal ao NAM permite a projeção da ponta do nariz e promove o alongamento não cirúrgico da columela, melhorando assim a convexidade e simetria nasal, com resultados estáveis a longo prazo.11,14,18,19A um ano de idade, a largura, altura e ângulo da columela apresentam menor recidiva, quando comparados com bebés que foram submetidos aos mesmos procedimentos cirúrgicos mas que não usaram pré‑terapia com NAM.20
Em termos funcionais, o selamento da comunicação oro‑nasal pela aplicação do NAM, diminui o risco de aspiração e regurgitação nasal, melhorando a capacidade de respiração nasal bem como a toma de alimentação. Há também referência que a optimização da função e do posicionamento lingual podem promover melhorias em termos fonéticos.11
Do ponto de vista socioeconómico, também se verificam vantagens com o recurso a este protocolo a longo prazo, nomeadamente um menor número de hospitalizações e tempo de hospitalização, redução de tratamentos ortodônticos mais complexos e da necessidade de cirurgia ortognática na adolescência e adultícea.13,14
A introdução do tratamento pré‑cirúrgico com o NAM nas crianças com FLP, permite melhorar os resultados cirúrgicos com consequente melhoria estética e funcional, acompanhada do impacto positivo do ponto de vista socioeconómico.
Por último, a primeira cirurgia para correção da FLP é a melhor oportunidade para a obtenção de um resultado estético desejável e duradouro, diminuindo o estigma da fenda, e contribuindo para um correto desenvolvimento psicológico e interação social destas crianças.