Introdução
O carcinoma espinocelular (CEC) é a neoplasia mais frequenteem cavidade oral. O tratamento dessa doença muitas vezes é realizado através da associação entre a cirurgia, quimioterapia e a radioterapia.1 As terapias antineoplásicas, especialmente a radioterapia em região de cabeça e pescoço, podem gerar efeitos colaterais em cavidade bucal como por exemplo, xerostomia e hipossalivação.2,3 A xerostomia, ou boca seca, é um sintoma associado, ou não, à baixa ou nenhuma produção de saliva pelas glândulas salivares. Já quando ocorre queda expressiva ou interrupção na produção de saliva, caracteriza‑se como hipossalivação ou hipossialia.
A hipofunção das glândulas salivares é um efeito adverso comum e muitas vezes permanente em pacientes irradiados nessa região.4
Existem diversas terapêuticas para o tratamento da xerostomia e hipossalivação, como por exemplo a estimulação mecânica, mastigar gomas de mascar ou pastilhas. O tratamento farmacológico também pode ser indicado, incluindo agentes colinérgicos, como pilocarpina e cevimelina. Outros métodos não farmacológicos podem ser empregados como hipnose, acupuntura e eletroestimulação. Além disso, podem ser utilizados substituintes da saliva natural, como a saliva artificial.
Atualmente, observamos que a laserterapia vem se destacando e se tornando outra possibilidade para esse tratamento.5
A laserterapia de baixa intensidade (LBI) é utilizada com o objetivo de se atenuar esses efeitos e se mostrou benéfica, reduzindo a morbidade2 e trazendo melhoria na qualidade de vida dos pacientes.3 Existem variados protocolos de aplicação do laser de baixa intensidade com o intuito de minimizar essas consequências adversas. Esses precisam ser discutidos e comparados, além de se estabelecer melhor os efeitos dessa terapia na hipossalivação pós‑radioterapia.2,4,5 Além disso, estudos de revisão sistemática concluíram que com a evidência científica atualmente disponível ainda não é possível determinar com confiança a eficácia da LBI para a xerostomia e hipossalivação associada à radiação.4,6
Dessa forma, o objetivo do presente estudo foi relatar um caso de melhoria da xerostomia e da hipossalivação em paciente irradiado na região de cabeça e pescoço e apresentar o protocolo
de LBI instituído a fim de contribuir com a discussão das formas de utilização do laser para esses efeitos pós‑radioterapia.
Caso clínico
Paciente do sexo masculino, 48 anos, procurou o Serviço de Estomatologia da Universidade Federal de Juiz de Fora com queixa de boca seca. Relatou ter sido diagnosticado com carcinoma espinocelular (CEC) de base de língua direita com estadiamento cT2N1M0, sendo tratado com cirurgia e esvaziamento cervical à direita, além de quimioterapia (QT) e radioterapia (RT) neoadjuvante realizadas há 8 meses anteriores.
Foram feitos 2 ciclos de QT com cisplatina 40mg/m² semanalmente e 35 sessões de RT. No exame físico extraoral não foram detetadas alterações. Ao exame clínico, foi observada cavidade extensa por cárie no elemento 15. Além disso, observou‑se aspetos clínicos da xerostomia (lábios secos e rachados, presença de saburra, dificuldade para falar e deglutir), decorrentes das sessões radioterápicas
feitas previamente. Paciente relatou não ser fumador e alcoólico e fazia uso constante de garrafa com água para umedecer a cavidade oral e, assim, diminuir o desconforto. Foi proposta a restauração do elemento 15, administração de saliva artificial para uso diário, fornecimento de instruções de higiene oral e planeamento de 10 sessões de LBI, uma vez na semana. O paciente assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que permitiu a realização da abordagem proposta e publicação dos resultados obtidos.
Foi aplicado laser de baixa intensidade (Laser Duo Portátil®, MMO Ltda., São Carlos, São Paulo, Brasil) no modo infravermelho contínuo com comprimento de onda de 808 nm, densidade de potência de 100 mW, área do spot de 3 mm², sendo 1 J (10 s) por ponto de aplicação. As aplicações foram distribuídas em áreas extraorais e intraorais. Na área extraoral foi realizada aplicação em 6 pontos bilaterais distribuídos na região da glândula parótida e outros 5 pontos bilaterais em região de glândula submandibular. Na cavidade oral foram distribuídos 3 pontos bilaterais no assoalho bucal, 6 pontos bilaterais em mucosa jugal e 3 pontos nas áreas internas dos lábios superior e inferior.
Sendo assim, a densidade de energia por área de aplicação foi de 0,33 J/mm². Esses pontos podem ser vistos na Figura 1. Foi utilizada uma Escala Visual Analógica (EVA),7 disponível na Figura 2, contendo as dimensões numéricas, qualitativa e de faces, para mensuração da regressão dos sintomas (secura intraoral, dificuldade para falar e deglutir). Antes de iniciar o tratamento, o paciente classificou seus sintomas na escala como 6. A escala foi aplicada sempre na sessão seguinte para se observar a melhora em relação à semana anterior. Foi notada uma melhora significativa, se estabilizando na escala 2 a partir da 5.ª sessão até a 10.ª sessão. Foi feito acompanhamento mensal para avaliação clínica do paciente por 6 meses contados a partir da última sessão de LBI. Após esse período, o paciente relatou regressão dos sintomas de xerostomia, recebeu alta provisória e foram planeados retornos periódicos trimestrais para novas avaliações. Após o tratamento de 10 sessões de LBI, o paciente relatou também uma recuperação parcial do paladar.
Discussão e conclusões
As complicações orais geradas pela RT retratam um importante desafio clínico para os médicos dentistas, visto que podem atrasar a terapia para o cancro ou até mesmo comprometerem a adesão dos pacientes ao tratamento, gerando piora em sua qualidade de vida.8,9 Essas complicações podem perdurar após o fim da RT, uma vez que podem apresentar caráter reversível progressivo, ou até mesmo irreversível. Dentre essas complicações, pode‑se citar a xerostomia e hipossalivação.2‑6
Os mecanismos que levam à essa destruição tecidular ainda não foram totalmente elucidados. Embora sejam células estáveis, as células acinares respondem rapidamente à radiação, mesmo não possuindo altas taxas proliferativas. Essas alterações são iniciadas por danos à membrana celular e progridem para edema, degeneração e apoptose acinar, além de alterações mesenquimais em matriz extracelular.10 Cerca de 63 a 93% dos pacientes apresentam alterações quando a área de radiação atinge as glândulas salivares nos pacientes acometidos por tumores de cabeça e pescoço.11,12 A diminuição na secreção de saliva pode ser notada após 1 ou 2 semanas do início da RT de dose padrão, havendo uma deterioração contínua da função glandular durante a terapia. Uma dose superior a 26 Gy para glândulas parótidas e 39 Gy para as glândulas submandibulares é capaz de causar irreversibilidade funcional.13
Por ser uma ferramenta simples e de baixo custo, o tratamento com LBI vem sendo usado para manejo dessa condição.3,14‑18 Acredita‑se que a LBI melhore o metabolismo celular, aumentando a microcirculação sanguínea glandular e gerando vasodilatação, o que resulta em elevação da proliferação e respiração celular, além do estímulo à libertação de fatores de crescimento.19
Apesar de já confirmada em modelos animais,20 os protocolos e especificações técnicas para uso clínico ainda não foram totalmente elucidados. Numa revisão sistemática5 é demonstrado que, embora não haja evidência suficiente para o uso da LBI, as referências atuais são encorajadoras, sendo necessário mais estudos a respeito. Além disso, mostraram que a maioria dos estudos são realizados concomitantemente ou imediatamente após à radioterapia, ou seja, quando as alterações irreversíveis ainda não foram completamente produzidas.
Sustenta, dessa forma, a necessidade do presente relato de caso clínico.
O tratamento relatado aconteceu em 10 sessões, enquanto, em outros estudos, a quantidade variou entre 5 sessões16,21 - sessão na qual o paciente do nosso relato indicou a escala 2 numérica da EVA - e mais de 20 sessões.3,14 É comum o número de sessões variarem, uma vez que diversos fatores determinam o grau de influência da radioterapia nas alterações salivares, como a dose de radiação, quantidade de tecido glandular exposto, respostas imunológicas individuais dos pacientes e tempo decorrido pós‑ radioterapia.22,23 A localização anatómica da aplicação e o comprimento de onda do laser utilizado foram de encontro a outros achados na literatura.
A aplicação da LBI diretamente nas glândulas salivares maiores e menores foi anteriormente preconizada.9 Enquanto que o comprimento de onda não apresentou um padrão, com valores que variaram entre o mínimo de 632 nm e máximo de 830 nm.17,21
Embora não tenha sido realizado protocolo terapêutico para tratamento da disgeusia, composto pela aplicação do laser na face lateral e dorsal da língua,9,15,24notou‑se melhoria do paladar do paciente, sendo sustentada mesmo após 6 meses de acompanhamento. Sabe‑se que a saliva exerce efeito significativo na perceção do paladar.25,26 Assim, a melhoria obtida pode ser associada ao efeito do laser sobre a xerostomia. Além disso, a administração de saliva artificial pode ter gerado uma sobreposição de efeitos, apesar de esse tratamento ser apenas paliativo e por vezes não muito bem aceite pelo paciente.18
Sabe‑se também que a saliva desempenha um papel importante na deglutição, fala, bem como na lubrificação da mucosa e orofaringe.25 Ainda que não se tenha realizado nenhuma mensuração direta do fluxo salivar através da sialometria ou qualquer outro método de avaliação, clinicamente, notou‑se melhoria na fala, secura intraoral e deglutição do paciente, além do relato pessoal do mesmo ao final das sessões de laser.
Como já observado, a literatura a respeito do uso da LBI para tratamento da xerostomia é reduzida. Assim, dentro das limitações do estudo, neste relato de caso a LBI foi eficaz no tratamento da sensação de boca seca devido à terapia antineoplásica, mesmo iniciada após 8 meses do fim da RT. Usualmente, a xerostomia é mais intensa nos primeiros 3 meses pós‑RT e tende a melhorar em um período de 12 meses após o fim do tratamento.22 Contudo, é importante destacar que o protocolo ideal sugere que o início da laserterapia aconteça no primeiro dia de RT e continue diariamente até o último dia, não havendo necessidade de aplicação antes ou depois da RT.9 Assim, é possível alcançar resultados mais favoráveis e diminuir a chance de alterações irreversíveis em glândulas salivares.
O tratamento antineoplásico por meio de RT em região de cabeça e pescoço acarreta impactos consideráveis, dentre eles a xerostomia e hipossalivação. A LBI mostrou ser uma forma efetiva de tratamento para a xerostomia em paciente irradiado de cabeça e pescoço, contribuindo para a melhoria da secura oral.