Introdução
SARS‑CoV‑2 (Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2) é um novo vírus da família Coronaviridae, responsável por uma síndrome respiratória aguda, frequentemente assintomática, mas potencialmente letal, denominada COVID‑19.1
O surto COVID‑19 começou a ser observado pela primeira vez na cidade de Wuhan (China). Sendo que em poucas semanas, se disseminou por todo o mundo,2 e foi classificada como pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 11 de março de 2020.3,4
Ao contágio por SARS‑CoV‑2 segue‑se um período de incubação do vírus, que varia entre 5 a 14 dias.5 Os sintomas mais comuns de COVID‑19 são febre, tosse seca, dispneia e, nos casos mais graves, pneumonia.1 Contudo, sabe‑ se que há indivíduos infetados que podem permanecer assintomáticos.5
As principais vias de transmissão do novo coronavírus incluem a transmissão direta (através da tosse, espirro e/ou inalação de gotículas que contêm partículas virais), a transmissão por contato direto (com a mucosa oral, nasal e/ou membranas oculares de um indivíduo infetado) e a transmissão por contacto indireto (com instrumentos e/ou superfícies contaminadas).1,2,5,6,7.8,9
A natureza altamente contagiosa do vírus e o crescente número de casos conduziram à imposição de um confinamento obrigatório em Portugal, que se estendeu de 20 de março a 1 de maio de 2020, e da qual resultou uma inevitável diminuição da atividade económica.10,11Durante este período, as instituições médicas foram também obrigadas a adiar todos os procedimentos eletivos, de modo a reduzir o risco de contágio.2,6,9
De facto, e devido à natureza dos procedimentos dentários, que podem gerar nuvens significativas de aerossóis e envolver o contacto direto com as mucosas, instrumentos e/ou superfícies contaminadas,12 a prática da Médica Dentária constitui uma das categorias profissionais com maior risco de transmissão do SARS‑CoV‑2.13
Por esta razão, foram estabelecidas pela OMS e a Ordem dos Médicos Dentistas (OMD) novas medidas que assegurem a proteção contra a contaminação, e que incluem a utilização obrigatória de equipamentos de proteção individual (EPI).13,14
No entanto, a frequência de implementação de medidas preventivas mais complexas, a rutura inerente de stocks de EPI e as restrições impostas na prática clínica15 criaram um desafio sem precedentes para os profissionais de saúde oral.3
Os profissionais de saúde estão a enfrentar elevados níveis de stress, ao qual se acarreta o elevado risco de contraírem a doença,14 medo, frustração, exaustão, isolamento social e, em muitos casos, afastamento familiar. Todos estes eventos podem culminar no desenvolvimento de ansiedade, ou até mesmo de stress pós‑traumático.16‑18
Esta deterioração do bem‑estar psicológico do médico pode afetar negativamente a qualidade do tratamento prestado.14 Logo, o presente estudo teve como objetivo identificar o impacto físico, psicológico, social e económico da pandemia de COVID‑19 no quotidiano dos profissionais de saúde oral, em Portugal.
Material e Métodos
Foi realizado um estudo observacional e transversal, sob a forma de questionário on‑line, especificamente construído para o efeito. Este foi baseado em literatura científica atual acerca do impacto da COVID‑19 nos profissionais de saúde oral. Para o efeito foram incluídos artigos científicos com data de publicação entre 2020 e 2021. A versão original do questionário foi primeiramente revista por 2 médicos dentistas para garantir a adequação, praticabilidade e interpretação das respostas. Com base nas sugestões obtidas, o questionário foi então alterado. A versão final do questionário foi realizada através da plataforma Google Forms, sendo composta por 32 perguntas fechadas e parcialmente fechadas, e com duração estimada de 7 minutos, sendo que o link do mesmo foi depois partilhado com os Médicos Dentistas e Higienistas Orais, em Portugal, via e‑mail e redes sociais. Foi pedido aos participantes que classificassem algumas questões apresentadas, segundo uma escala de resposta tipo Likert, de 6 pontos, onde 0 correspondia a “Nada/Nenhum/Nenhuma” e 5 a “Muito/Muita”.
O presente questionário recebeu aprovação por parte da Comissão de Ética para a Saúde da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa (aprovação eletrónica em 28 de dezembro de 2020). Apenas foram validados os questionários totalmente preenchidos durante o período temporal de 02/01/2021 a 15/01/2021, sendo os dados recolhidos anónimos e usados exclusivamente para fins estatísticos.
Os dados obtidos na plataforma Google Forms foram digitados no Microsoft Excel (2013) e transferidos para o IBM SPSS Statistics para Windows (versão 26) para análise estatística. A análise estatística descritiva incluiu distribuições de frequências, com percentagens. Relativamente à análise estatística analítica, procedeu‑se à realização do teste não paramétrico de Mann‑Whitney e do teste não paramétrico de Kruskal‑Wallis, com correção de Bonferroni, em determinadas variáveis. Valores de p<0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
Resultados
O presente questionário obteve 364 respostas (Tabela 1) a nível nacional, sendo a maioria do género feminino, na faixa etária dos 22‑35 anos e Médico Dentista. Dos inquiridos, 29,4% era proprietário de uma clínica, que relataram experienciar algum grau de dificuldade em encontrar EPI no início da pandemia, sendo que a totalidade destes reportou um aumento da despesa do consultório, com 39,3% a indicar um nível de aumento muito significativo.
Relativamente ao impacto da COVID‑19 na prática clínica, 48,1% dos profissionais de saúde oral reportou que o número de horas de trabalho diminuiu desde o início da pandemia e 39% não experienciou alterações nas horas de trabalho. Cerca de 74% referiu uma diminuição do seu rendimento mensal e 44,2% mencionou um aumento do número de pausas num dia de trabalho. Quando questionados acerca da afluência de pacientes aquando da retoma da prática clínica, cerca de 43% indicou que diminuiu, 32% que não se alterou e 25% que aumentou. As principais razões atribuídas, para a diminuição da afluência, foram o medo (53.5%) e problemas económicos (28,4%). Os profissionais (58,7%) consideraram que os pacientes tinham um medo baixo‑moderado de um eventual contágio de COVID‑19, durante as consultas, e uma dificuldade moderada‑elevada de comunicação com os mesmos (73%).
Cerca de 30% dos inquiridos assinalou que a situação atual tem afetado a qualidade dos tratamentos efetuados, principalmente devido à utilização do novo EPI (82,7%), dificuldade de comunicação com o paciente (56,4%) e stress/ansiedade (50%).
Quanto ao impacto da COVID‑19 na saúde física e mental, 56% dos profissionais revelaram um receio baixo‑moderado de serem contagiados durante a atividade clínica. Contudo, relataram um aumento considerável do cansaço ao fim de um dia de trabalho (88,5%). Verificou‑se um claro aumento dos níveis percecionados de stress/ansiedade (78%) e elevada prevalência de dores musculares/articulares (58,5%), irritabilidade (47%), desmotivação para trabalhar (42,9%) e dificuldade em relaxar (42,6%). A maioria (74.2%) admitiu levar o stress do trabalho para casa, com um impacto moderado a elevado nas suas relações pessoais.
Segundo os dados obtidos, a maioria dos profissionais utilizava os equipamentos de proteção individual recomendados pela OMD. Os 2 pares de luvas (29,9%) e o cobre botas (24,5%) foram dos elementos menos referenciados. 51,6% dos participantes utilizava sempre aspiração dupla na sua prática clínica. 92,3% tinha conhecimento e aplicava as regras de remoção dos EPI, recomendadas pela OMD.
Recorrendo à análise estatística analítica, e em relação ao género (Tabela 2), o teste não paramétrico de Mann‑Whitney aferiu um nível de significância <0,05 para a alteração do grau de receio (p=0,042), cansaço (p=0,001) e stress (p=0,006), pelo que há diferença estatística significativa entre homens e mulheres, relativamente a estas variáveis.
Relativamente à idade e aos anos de experiência profissional (Tabela 2; Figuras 1 e 2), o teste não paramétrico de Kruskal‑Wallis aferiu um nível de significância <0,05 para o grau de receio em contrair a doença (p<0,001).
Constatou‑se uma diferença estatística significativa entre o grupo que tem filhos e o grupo que não tem filhos, uma vez que o teste não paramétrico de Mann‑Whitney aferiu um nível de significância inferior a 0,001 (Tabela 2) para a alteração do grau de receio.
Com recurso ao teste não paramétrico de Kruskal‑Wallis, foi possível verificar um nível de significância <0,05 para o grau de stress (p=0,002), relativamente à alteração do nível rendimento (Tabela 2; Figura 3). Não se estabeleceu mais nenhuma diferença estatisticamente significativa (p <0,05) entre outras variáveis.
Discussão
Tanto quanto sabemos, este é um dos primeiros estudos que investiga o impacto físico, mental, social e económico da pandemia de COVID‑19 na vida dos profissionais de saúde oral, em Portugal. Tendo em conta os meios de divulgação que tivemos ao nosso dispor, considerámos o número da amostra atingido satisfatório. A discrepância entre o número de médicos dentistas e higienistas orais que responderam ao nosso questionário era previsível dado o rácio dos mesmos em Portugal.
O aumento da demanda por EPI resultou na escassez temporária destes recursos em todo o mundo, levando ao aumento do preço destes materiais.2 No estudo de Ahmadi et al.2 e no estudo de Consolo et al.,12 87% e 86% dos participantes, respetivamente, relataram ter dificuldade em encontrar equipamentos de proteção, o que vai de encontro aos resultados do nosso estudo.
Os nossos dados indicam que houve uma diminuição das horas de trabalho dos profissionais, o que pode estar relacionado com o aumento do número de pausas e com a diminuição da afluência de pacientes. Num estudo polaco,19 o número médio de pacientes atendidos semanalmente por médico dentista previamente ao surto de COVID‑19 era de 49.21, tendo diminuído para 12.06 após a declaração de pandemia mundial pela OMS.
Quanto mais se estendem as medidas restritivas, maiores serão as consequências económicas para o sector da Medicina Dentária.8 Segundo Gambarini et al.,5 82% dos profissionais declarou que os seus rendimentos sofreram uma redução de 75%, o que pode ser equiparado aos resultados do presente estudo.
No estudo de Putrino et al.,20 61.3% dos médicos dentistas afirmaram que os pacientes não revelaram medo de contrair a doença nas consultas, sendo que a maioria dos participantes da nossa investigação consideraram existir um medo baixo‑moderado.
Uma informação relevante retirada do nosso estudo diz respeito ao uso do novo equipamento de proteção individual, que segundo 95,8% dos inquiridos tem afetado com menor ou maior grau a comunicação com os pacientes. O uso do novo EPI (82,7%) e a dificuldade de comunicação (56,4%) são dos fatores preponderantes referidos para a diminuição da qualidade dos tratamentos prestados (30,2%). Ahmed et al.21 observaram que 87% dos participantes do seu estudo tinham receio de ser infetados com o novo vírus por um paciente ou colega de trabalho. Contrariamente, verificámos que o medo dos profissionais portugueses é baixo‑moderado, o que pode ser explicado pelo maior conhecimento atual acerca do SARS‑CoV‑2, da sua transmissão e prevenção. No entanto, foi possível verificar uma diferença estatística significativa, entre homens e mulheres, relativamente ao receio em contrair a doença, o que pode ser justificado pelo facto de o género feminino, em situações de incerteza, apresentar características emocionais que se caracterizam por uma maior aversão ao risco do que os homens,1 e parecer estar mais significativamente preocupado com a propagação do SARS‑CoV‑2, do que o género masculino.20 Para além disso, constatou‑se um maior receio em contrair a doença por parte dos profissionais mais jovens e menos experientes, quando equiparados com profissionais mais velhos.
Shirahmadi et al.17 afirmam que a experiência profissional tem uma relação significativa com a eficácia percebida no controlo da propagação da doença, resultando em um menor receio de a contrair.
Por outro lado, constatámos que os profissionais que têm filhos, apresentam um receio em contrair a doença superior relativamente aos que não têm filhos. Ansiedade, insónia e depressão são implicações psicológicas que afetam comumente profissionais de saúde durante uma pandemia.19 Nos profissionais de saúde observam‑se níveis elevados de burnout.22 A nossa análise indica que houve um claro aumento dos níveis de stress/ansiedade, com 74,2% a referir que leva o stress do trabalho para casa. Verificou‑se igualmente um maior aumento dos níveis de stress junto dos profissionais que sofreram uma quebra nos seus rendimentos. Ahmadi et al.2 concluíram que 50% dos dentistas apresentavam sintomas de depressão e ansiedade. Estes sintomas podem ser decorrentes do aumento da carga de trabalho, novos protocolos de proteção, novos EPI, distanciamento social e instabilidade financeira.2 A falta de acesso a suporte social por parte dos profissionais de saúde tem um impacto negativo na saúde mental dos mesmos, pelo que, quanto maior for a perceção e a qualidade desse apoio, menor será o sofrimento psicológico. Assim, devem ser criadas ou retomadas linhas de apoio psicológico e/ou emocional para os profissionais de saúde.22
O uso eficaz de EPI é essencial para prevenir a disseminação do vírus entre profissionais de saúde e pacientes.2 A realização de consultas na presença de um assistente dentário e o uso de aspiração dupla reduz o volume de aerossóis produzidos.23 A maioria dos participantes afirmou utilizar o equipamento de proteção individual recomendado, trabalhar com assistente dentário (52,2%) e recorrer à aspiração dupla (51,6%).
As limitações do nosso estudo incluíram a aplicação de um questionário de escolha múltipla o que dificultou a expressão de sentimentos e emoções, que para além disso, ao ser extenso pode ter levado à exaustão dos inquiridos e, consequentemente inviabilizar a fiabilidade das respostas. Por outro lado, e uma vez que o questionário foi elaborado em suporte digital e também divulgado em redes sociais, pode ter afetado a heterogeneidade da amostra. Deste modo, sugere‑se a realização de investigações futuras com inquéritos curtos, presenciais e segmentados por cada componente em estudo (física; psicológica; social; e económica), por forma a obter dados mais fidedignos.
Conclusões
O presente estudo concluiu que a pandemia COVID‑19 teve um claro impacto psicológico, social, físico e económico nos profissionais de saúde oral, em Portugal. Adicionalmente, foi possível constatar que a maioria dos profissionais utilizava os EPI recomendados. Pelo que sugerimos que as instituições nacionais de saúde pública devem transmitir a confiança de que os consultórios dentários são ambientes seguros, como também devem ser criados mecanismos de apoio psicológico e financeiro para os profissionais mais afetados.