Introdução
As doenças orais continuam a ser, devido à sua elevada prevalência, impacto na qualidade de vida e custos económicos, um dos principais problemas de saúde pública mundiais.1,2
A cárie dentária é a doença oral mais prevalente entre crianças e adolescentes e uma das doenças crónicas mais frequentes em crianças, aumentando progressivamente com a idade. As crianças em idade pré-escolar apresentam um elevado risco para a cárie dentária.3 Em muitos países, a maioria das lesões de cárie em crianças mais pequenas não são tratadas.4
Nas crianças, a cárie dentária representa um problema importante de saúde pública, estando associada a limitações de crescimento, a um baixo ganho de peso, ao absentismo e ao comprometimento do desempenho escolar.5 Lesões de cárie extensas não tratadas podem levar a pulpite, que pode estender-se aos tecidos de suporte e, por vezes, causar complicações graves, tais como celulite, abcessos cerebrais e septicémia.6
Têm sido identificados vários fatores que levam ao desenvolvimento da cárie dentária em crianças, tais como, uma má higiene oral, hábitos alimentares deletérios, atitudes inadequadas por parte dos pais e dos educadores. Estes aspetos, que resultam muitas vezes da falta de conhecimentos sobre saúde oral, devem ser considerados no desenvolvimento de programas de promoção da saúde oral que têm como alvo as crianças em idade pré-escolar.7 A educação para a saúde oral deve ser reforçada nesta fase, visto que é um período muito influente na vida das crianças, onde são desenvolvidas atitudes, comportamentos e competências pessoais que levam a uma progressiva autonomia da criança e onde o exemplo dos pais e educadores é da maior relevância.8 As equipas de saúde escolar assumem um papel importante na melhoria das competências dos educadores e dos pais sobre saúde oral, bem como promover e orientar os programas de promoção da saúde oral na escola.
A remoção diária de placa bacteriana, juntamente com a aplicação tópica de flúor, é a base dos programas preventivos de cárie dentária.9 Revisões sistemáticas estabeleceram forte evidência em relação ao uso diário de dentífrico fluoretado como sendo o método de prevenção de cárie autoaplicado com melhor relação custo-benefício em crianças em idade pré-escolar.10,11 A escovagem com dentífrico fluoretado é considerada mais eficaz na redução da cárie dentária do que a restrição de açúcares na alimentação12 e esta evidência aumenta quando a escovagem dos dentes é supervisionada por um adulto.13 A efetividade da escovagem dentária em ambiente escolar diminui ao longo do tempo se não for efetuado um acompanhamento periódico das crianças.14 Esta situação evidencia a necessidade de existirem vários momentos de reforço e supervisão da técnica de escovagem dentária em ambiente escolar, como forma de garantir melhores resultados na prevenção da cárie dentária.15
Adicionalmente, para crianças em idade pré-escolar com risco aumentado de cárie, as aplicações regulares de verniz fluoretado são consideradas uma forma eficaz, segura e prática de aumentar a exposição ao flúor.16
O Programa Nacional de Promoção da Saúde Oral (PNPSO) tem como principal propósito reduzir a prevalência das doenças orais que são controláveis através de medidas de prevenção.17 Os objetivos gerais deste programa prendem-se essencialmente com a progressiva capacitação da população em matéria de literacia da saúde, com a prevenção da doença ao longo da vida, com a promoção de estilos de vida saudável e com o aumento da confiança dos utentes na utilização dos cuidados de saúde oral prestados no âmbito deste programa.
No que diz respeito às crianças em idade pré-escolar, dos 3 aos 6 anos, o PNPSO recomenda que a escovagem dos dentes deve ser realizada ou supervisionada pelos pais, pelo menos duas vezes por dia, sendo uma delas obrigatoriamente antes de deitar, com um dentífrico com 1000-1500 ppm de flúor. Todas as crianças que frequentam os jardins de infância devem escovar os dentes no estabelecimento de educação, sendo esta atividade particularmente importante para as que vivem em zonas mais desfavorecidas e apresentam cárie dentária. É ainda recomendado que as equipas de saúde escolar promovam a melhoria das competências dos educadores, professores e pais relativamente à saúde oral e que a educação para a saúde deve integrar o Projeto Educativo das escolas.17
Apesar da prevalência e da gravidade da cárie terem diminuído de forma significativa em Portugal nos últimos anos,18 os números continuam a ser preocupantes, sobretudo no que respeita à população com idade pré-escolar.19 O conhecimento e a caracterização das medidas que são aplicadas no PNPSO, nomeadamente na educação pré-escolar, assume um papel fundamental na prevenção das doenças orais nas crianças. É importante compreender de que forma estão a ser aplicadas as medidas e perceber as barreiras existentes, para que se possam dar respostas efetivas e fornecer as ferramentas necessárias para que as medidas previstas no PNPSO sejam aplicadas de uma forma mais efetiva.
O presente estudo teve como objetivo caracterizar a aplicação das medidas de promoção da saúde oral na educação pré-escolar em Portugal, nomeadamente, a escovagem dos dentes, as ações das equipas de saúde oral dos centros de saúde, a integração da educação para a saúde oral no projeto educativo e a alimentação das crianças. Procurou-se ainda identificar os aspetos que influenciam a realização da escovagem nos jardins de infância.
Material e métodos
De forma a alcançar os objetivos propostos, foi realizado um estudo epidemiológico observacional e transversal. Este estudo teve como população-alvo os educadores de infância que exerciam a sua atividade em jardins de infância de Portugal. Foram incluídos no estudo todos os educadores de infância que demonstraram disponibilidade em participar, sendo a sua participação voluntária e anónima. O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética para a Saúde da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa.
A recolha de dados foi efetuada através da aplicação de um questionário online. O questionário foi divulgado durante os meses de março e abril de 2021 através da rede social Facebook, em grupos e páginas portuguesas de discussão e partilha de assuntos relacionados com a educação pré-escolar. Além da partilha nas redes sociais, foram enviados e-mails para os jardins de infância.
A página inicial do questionário fazia uma breve apresentação do estudo e terminava com o consentimento informado do participante. Apenas após a indicação da aceitação da participação no estudo era possível avançar para as questões propriamente ditas. O questionário recolheu informações gerais sobre os educadores, sobre os jardins de infância onde aqueles lecionavam, sobre a escovagem dos dentes em ambiente escolar, sobre as ações desenvolvidas pelas equipas de saúde oral, sobre as atividades de educação para a saúde oral desenvolvidas pelos educadores, e sobre a alimentação em ambiente escolar.
A análise estatística dos dados foi efetuada com a aplicação IBM SPSS Statistics (versão 27), mediante o cálculo das frequências absolutas e relativas. No caso das variáveis numéricas, foram ainda determinadas as medidas de localização central (média, moda e mediana) bem como as medidas de dispersão (desvio-padrão, mínimo e máximo). A análise inferencial foi realizada através do teste do Qui-quadrado, com um nível de significância estatística de 5%.
Resultados
Durante o período de divulgação do questionário foi obtido um total de 1713 respostas. Destas, 113 foram excluídas por não se tratar de educadores de infância a lecionar num jardim de infância de Portugal. Desta forma, a amostra do estudo ficou constituída por 1618 participantes.
A amostra incluiu educadores de todos os distritos de Portugal continental e ilhas. A idade média dos participantes foi de 47,14 anos (dp=9,975), com um mínimo de 22 e um máximo de 65. No que diz respeito ao tempo de exercício da profissão de educador, a média foi de 22,82 anos (dp=10,53). O número médio de crianças na sala do educador foi de 20,17 (dp=4,583).
Na Tabela 1 apresentam-se as características dos educadores e dos jardins de infância onde aqueles trabalhavam.
Como se pode verificar na Tabela 2, dos 1618 participantes, 40,6% referiram que era realizada a escovagem na sua sala. As principais razões apontadas para a não realização da escovagem dos dentes no jardim de infância foram a falta de higiene com risco de transmissão de doenças por troca de escovas (67,9%), as limitações dos recursos humanos (49,3%), as limitações de espaço (41,95) e a ausência de local para guardar as escovas entre as escovagens (31,2%). Em relação ao local onde a escovagem dos dentes era efetuada, a grande maioria (84,7%) reportou que era realizada na casa-de-banho.
Verificou-se que a pandemia COVID-19 teve um impacto expressivo na realização da escovagem, com 85,6% dos participantes a referir que deixaram de a realizar nas suas salas (Tabela 2).
Na Tabela 3 apresentam-se as ações das equipas de saúde oral dos centros de saúde. Destaca-se a elevada percentagem de jardins de infância que nunca foram visitados pelas equipas de saúde oral (43,8%).
A grande maioria dos participantes (92,3%) afirmou que introduziu temas de saúde oral no projeto educativo (Tabela 4).
A maioria das crianças (93,9%) tinha acesso a leite simples, mas no que diz respeito aos iogurtes, os açucarados eram mais frequentemente consumidos (56,4%), em detrimento dos naturais (42,2%). Verificou-se também uma ingestão frequente de pão (87,7%) e bolachas (59%), mas a ingestão de bolos foi baixa (12,1%). A fruta era consumida pela maioria das crianças no lanche escolar (88,9%).
Relativamente aos fatores que poderiam influenciar a realização da escovagem, verificou-se que o tempo de exercício da profissão de educador (p=0,004), a sua formação em temas sobre saúde oral (p<0,001) e a frequência das visitas das equipas de saúde oral à escola (p<0,001) se encontravam estatisticamente associados à realização da escovagem dos dentes nos jardins de infância (Tabela 5).
Discussão
A escovagem em ambiente escolar é uma estratégia comunitária de prevenção da cárie que promove, em simultâneo, o controlo do biofilme dentário, a aplicação de fluoretos e a implementação precoce de um comportamento saudável. No entanto, no presente estudo, a escovagem dos dentes não era realizada em mais de metade das salas (59,4%), o que representa um número bastante elevado. Num estudo realizado em 2020, em pais de crianças em idade pré-escolar que frequentam jardins de infância portugueses, verificou-se que 71,2% das crianças não escovavam os dentes na escola, embora apenas 9,9% dos pais referiram que não o autorizava20. No presente estudo, a não autorização por parte dos pais também não se encontra entre as principais razões apontadas pelos educadores para a não realização da escovagem, sendo as principais razões apontadas, a possibilidade de troca de escovas com perigo de transmissão de doenças (67,9%), a falta de pessoal para controlar a escovagem (49,3%) e inexistência de espaço adequado (41,9%) e a falta de condições para guardar as escovas (31,2%).
Têm sido propostas várias medidas dirigidas à questão do risco de transmissão de doenças e da troca de escovas. A escovagem dos dentes em ambiente escolar não acarreta perigos para a saúde das crianças e não há nenhuma evidência científica que a desaconselhe, desde que existam condições para que a atividade aconteça de forma controlada.21 Entre as medidas a adotar para ultrapassar as limitações referidas encontra-se a identificação dos materiais a utilizar na escovagem22 e a realização da escovagem a seco.17 A escovagem a seco pode ser realizada na sala de aula, havendo uma redução significativa do tempo e das pessoas necessárias. Por outro lado, não sendo feito o bochecho com água após a escovagem, a retenção de fluoretos na cavidade oral é maior, potenciando a sua ação preventiva.23
Uma percentagem considerável dos educadores (43,8%) referiu que a sua sala nunca foi visitada pelas equipas de saúde oral. Existe evidência da melhoria de comportamentos e redução da cárie dentária em intervenções comunitárias com pais e crianças, que visam a divulgação de conhecimentos de saúde oral24 e a supervisão da escovagem em ambiente escolar.25 Estudos demonstraram, ainda, que a efetividade dos programas relacionados com a promoção da saúde oral é influenciada pelo nível de escolaridade dos pais,26 pela perceção dos pais sobre a sua própria saúde oral27 e pelo contexto social das famílias.28
A quase totalidade dos educadores (92,3%) referiu que eram realizadas atividades com as crianças na sua sala acerca de temas de saúde oral, o que é um indicador bastante positivo de que compreendem a importância desta medida.
O tipo de alimentos disponibilizados no lanche das crianças revelou-se pouco adequado. Alimentos como bolachas, iogurtes e leite açucarados não devem fazer parte da alimentação das crianças, pelo menos não frequentemente, dado que o seu consumo está associado a uma maior prevalência de cárie dentária.29
Nas salas dos educadores que tiveram formação em temas sobre saúde oral, a escovagem era realizada mais frequentemente do que naquelas em que os educadores não tiveram essa formação. Neste sentido, reconhece-se o papel que os educadores têm na promoção da saúde oral.30
Finalmente, verificou-se uma maior implementação da escovagem nos jardins de infância que são visitados uma ou mais vezes por ano pelas equipas de saúde oral, quando comparados com aqueles que nunca são visitados. As equipas de saúde escolar têm um papel preponderante na implementação e cumprimento da escovagem escolar e na implementação de outras medidas de promoção da saúde oral. Estas equipas devem executar e apoiar atividades de promoção da saúde oral em ambiente escolar, incluindo a formação dos educadores e dos pais em temas sobre saúde oral.
Conclusões
Os resultados obtidos neste estudo permitem concluir que a escovagem dentária nos jardins de infância portugueses encontra-se parcamente implementada, sendo realizada em menos de metade das salas. Foi possível identificar as principais barreiras à implementação da escovagem, verificando-se que as mesmas podem ser ultrapassadas com a intervenção das equipas de saúde oral, prestando informação sobre temas de saúde oral aos pais e educadores e orientando tecnicamente a implementação dos programas de escovagem.