Introdução
O cisto dentígero é o tipo mais comum de cisto odontogénico, podendo ser classificado como cisto de desenvolvimento ou inflamatório. Essas estruturas se originam dos tecidos epiteliais do dente ou de resquícios embrionários, como os restos epiteliais de Malassez, os restos de Serres ou o órgão do esmalte, que podem ficar presos nos tecidos ósseos ou gengivais.1 A lesão é associada à coroa do dente incluso, apresentando um acúmulo de material líquido ou semissólido entre o epitélio e a coroa do dente. Os cistos dentígeros correspondem a cerca de 17 a 20% dos cistos que ocorrem na região dos maxilares.
Trata-se de uma lesão benigna, unilocular, cujos contorno são facilmente identificáveis em radiografias. Seu crescimento é lento e resulta em contornos escleróticos e córtex bem definidos. Essa lesão pode promover o deslocamento do dente de sua posição normal, especialmente nos casos de terceiros molares, podendo fazer com que o dente seja deslocado para a base de mandíbula e consequentemente, envolver o nervo alveolar inferior.2-4
O cisto dentígero de desenvolvimento possui uma cápsula de tecido conjuntivo fibroso, com substância fundamental amorfa predominante por glicosaminoglicanos. Pode apresentar pequenas ilhas e cordões de restos epiteliais odontogénicos na cápsula fibrosa. Já no cisto dentígero inflamado, a cápsula apresenta um tecido epitelial mais espesso, com infiltrado inflamatório crónico difuso, cristas epiteliais hiperplásicas e características escamosas mais definidas.2
O objetivo do presente artigo é relatar um caso clínico de enucleação de cisto dentígero de desenvolvimento em corpo mandibular à esquerda associado ao primeiro molar inferior (36) incluso na região de base da mandíbula, em íntimo contato com o canal mandibular, através da técnica cirúrgica de janela óssea por meio do motor piezoelétrico, objetivando 0preservação dos tecidos moles e duros adjacentes à lesão.
Relato de caso
Um paciente de 19 anos, sexo masculino, sem comorbidades, encaminhado pela ortodontista para avaliação de dente 36 retido, ao avaliar a radiografia panorâmica previa foi observada lesão radiolúcida bem circunscrita, corticalizada e unilocular associada ao elemento 36 (Figura 1). Ao exame clínico, foi observado aparelho ortodôntico fixo e ausência do dente 36; não foram identificados sinais flogístico e ao teste de vitalidade pulpar dos elementos adjacentes, não foram evidenciadas alterações (Figura 2). Foi então solicitada tomografia computadorizada cone beam, a qual identificou dente 36 retido próximo à base da mandíbula, em íntimo contato com o canal mandibular, associado a uma lesão hipodensa, circunscrita de 15,5 X 27,7 X 14,8 mm (proporção tomográfica 1:1), sem evidência de reabsorção dentária (Figura 3). A principal hipótese diagnóstica foi a de lesão cística, compatível com cisto dentígero.
Foi planeada a enucleação total da lesão cística, preservando-se o máximo de tecido ósseo mandibular, assim como o canal mandibular. Previamente à cirurgia, estudo pré-operatório das imagens de tomografia cone beam e radiografias com vencionais foi efetuado para orientação das linhas de osteotomias necessárias. O ato cirúrgico consistiu em: anestesia geral; intubação nasotraqueal; infiltração de lidocaína 2% com epinefrina 1:200.000 em região de fundo de vestíbulo referente aos dentes incisivo central inferior (32) ao terceiro molar inferior (38); incisão com eletrocautério orientada do 32 ao 38 por planos, direcionado a ponta do cautério para porção óssea vestibular da mandíbula, incisão realizada por camadas até a exposição do periósteo; por conseguinte descolamento subperiosteal; realizou-se a dissecação do nervo mentoniano por meio de incisão com lâmina 15 fria em seu longo eixo, com a posterior divulsão das fibras nevosas com auxílio da tesoura íris delicada, evitando o estiramento da estrutura nervosa durante o afastamento dos tecidos, além de facilitar a ampliação da loca cirurgia; exposição da tábua óssea vestibular mandibular (Figura 4). A osteotomia foi realizada com motor piezoelétrico, projetando-se a ponta ultrassónica em um ângulo de 45º para obter um ângulo interno biselado (Figura 5).
Após completar as osteotomias, uma placa de 4 furos do sistema 1.5 foi cortada, dobrada e moldada, e realizou-se as perfurações dos parafusos de fixação. Cinzeis de Wagner e Sverzut foram empregados para finalizar as osteotomias e remover a tampa óssea; o fragmento ósseo foi armazenado em solução de soro fisiológico 0,9%.
Na sequência realizou-se a enucleação e curetagem da lesão cística (Figura 6), e para exérese do elemento 36, realizou-se osteotomia seguida da odontossecção e posterior uso de alavancas. Após a limpeza da loca cirúrgica, o fragmento ósseo foi reposicionado seguindo como referencial o ângulo interno biselado para cortical vestibular, finalizando com a placa pré-dobrada e colocação dos parafusos em posição (Figura 7). A peça enucleada foi encaminhada para avaliação anatomopatológica, a qual confirmou a hipótese diagnóstica de cisto dentígero de desenvolvimento (Figuras 8 e 9). O paciente recebeu alta hospitalar algumas horas após a cirurgia, negando queixas álgicas, parestesia ou paralisia facial. Após o retorno precoce pós-cirúrgico, foi instituído controle periódico a cada 6 meses até completo restabelecimento da integridade óssea da região enucleada (Figura 10).
Discussão e conclusões
O cisto dentígero é o segundo cisto odontogénico mais prevalente nos maxilares, comumente identificado como achado radiográfico em exames de rotina. Os terceiros molares e caninos superiores são os elementos mais afetados por esta lesão cística, sendo as técnicas de enucleação, descompressão e marsupialização as mais utilizadas para a sua resolução.4-6
Devido ao deslocamento do primeiro molar inferior esquerdo (36) para a base da mandíbula com envolvimento do canal mandibular, optou-se pela enucleação da lesão cística por meio da técnica de janela óssea. A osteotomia foi realizada por meio da piezocirurgia, a qual apresenta um controle tridimensional das microvibrações ultrassónicas, permitindo um corte seletivo das estruturas ósseas de interesse, que resulta em danos mínimos aos tecidos moles e estruturas nervosas, além de possibilitar a enucleação precisa das lesões císticas, bem como uma melhora na visão da loca cirúrgica.7,8
A técnica janela óssea apresenta como vantagem a redução da perda óssea, a qual propicia a regeneração óssea guiada, por meio do reposicionamento do fragmento ósseo, reduzindo as dimensões do defeito e criando uma barreira rica em osteoblastos que inibe a infiltração de células epiteliais para dentro da loca cirúrgica.9,10
A espessura do fragmento é de fundamental importância para o sucesso da técnica, devendo ser confecionada com uma espessura adequada (> 1 mm), orientando a osteotomia com o propósito de delimitar um chanfrado interno mais longo que facilita no reposicionamento do fragmento em sua posição original. Dessa forma, viabiliza-se a fixação do sistema órtese e prótese, objetivando a redução do risco de deiscência e conseguinte fratura da janela óssea.11,12
O cisto dentígero pode-se apresentar sem sintomatologia clínica, porém detêm um potencial importante em relação ao seu crescimento, podendo causar movimentações significativas e até mesmo reabsorções dentárias.
A escolha do tratamento deve ser baseada no estado geral do paciente, idade, tamanho da lesão, envolvimento de estruturas anatómicas, elementos associados e o risco de fratura mandibular. No presente caso, a técnica de janela óssea foi empregada com auxílio do dispositivo piezoelétrico que possibilitou a enucleação total da lesão cística, viabilizando um procedimento seguro e eficaz, preservando-se tecidos moles, duros e nervos.
É de extrema importância o processamento histopatológico das lesões císticas para que o diagnóstico definitivo seja realizado, podendo descartar outras lesões que apresentem características semelhantes. Da mesma forma, o acompanhamento radiográfico pós-operatório em casos de patologias ósseas é essencial.