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Laboreal
versão On-line ISSN 1646-5237
Laboreal vol.13 no.2 Porto dez. 2017
https://doi.org/10.15667/laborealxiii0217ds
PESQUISA EMPÍRICA
Entre a (pre)determinação e as possibilidades de regulação: Uma proposta metodológica para interpretar a adoção e uso de tecnologias enquanto escolhas organizacionais
Entre la (pre)determinación y las posibilidades de regulación: una propuesta metodológica para interpretar la adopción y el uso de la tecnología como opciones organizativas
Entre la (pré)détermination et les possibilités de régulation : une proposition méthodologique pour interpréter l'adoption et l'usage de technologies en tant qu'options organisationnelles
Placed between the (pre)determination and the regulatory possibilities: A methodological approach to interpret the adoption and use of technologies as organisational choices
Daniel Silva[1] & Ricardo Vasconcelos[2]
[1] Centro de Psicologia da Universidade do Porto
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
Rua Alfredo Allen s/n 4200-135 Porto, Portugal
[2] Consultor Independente Wesemlinstrasse 15 6006 Lucerne, Switzerland
RESUMO
Este artigo apresenta uma revisão dos contributos epistemológicos e teóricos da Teoria do Agir Organizacional acerca da relação entre mudança na organização e tecnologia. Se, por um lado, o ritmo e sofisticação do desenvolvimento tecnológico têm produzido consequências visíveis no trabalho, por outro lado, as visões interpretativas sobre o fenómeno seguem percursos distintos, ainda que partilhando do mesmo racional determinístico. Partindo da possibilidade de conceber a tecnologia enquanto racionalidade técnica do processo de ação, propomos a abordagem “Matriosca” como uma opção metodológica para sustentar a interpretação da tecnologia não como uma variável externa ou decorrente exclusivamente da construção social, mas antes como escolha organizacional, na qual interagem decisões/ações de diferentes níveis na construção da regulação do processo. Esta proposta é complementada pela apresentação de um caso numa empresa portuguesa, cujos resultados evidenciam a possibilidade de estabelecer um processo dialógico para a definição material dos artefactos tecnológicos.
Palavras-chave: tecnologia; mudança organizacional; racionalidade técnica; ações/decisões; Matriosca
RESUMEN
En este artículo se presenta una revisión de las contribuciones epistemológicas y teóricas de la Teoría del Actuar Organizativo sobre la relación entre el cambio en la organización y la tecnología. Por un lado, el ritmo y la sofisticación del desarrollo tecnológico han producido consecuencias visibles en el trabajo; por otro, los puntos de vista interpretativos sobre el fenómeno siguen rutas distintas, aunque compartan el mismo racional determinista. Sobre la base de la posibilidad de percibir la tecnología como racionalidad técnica del proceso de acción, proponemos el enfoque “Matriosca” como una opción metodológica, para apoyar la interpretación de la tecnología no como una variable externa o resultante de la construcción social, sino como una opción organizativa en la que interactúan decisiones/acciones de distintos niveles en la construcción de la regulación del proceso. Esta propuesta se complementa con la presentación de un caso en una empresa portuguesa, cuyos resultados muestran la posibilidad de establecer un proceso dialógico para la definición material de los artefactos tecnológicos.
Palabras clave: tecnología; cambio organizativo; racionalidad técnica; acciones/decisiones; “Matriosca”
RÉSUMÉ
Cet article présente une révision des apports épistémologiques et théoriques de la théorie de l'Agir Organisationnel pour ce qui relève de la relation entre le changement dans l'organisation et la technologie. Si, d'une part, le rythme et la sophistication du développement technologique ont eu des effets visibles sur le travail, d'autre part, les interprétations du phénomène suivent des orientations diverses, tout en partageant un même rationnel déterministe. En partant de la possibilité de concevoir la technologie en tant que rationalité technique du processus de l'action, nous proposons une approche “Matriosca” en tant qu'option méthodologique qui soutienne l'interprétation de la technologie non comme une variable externe ou résultant exclusivement de la construction sociale, mais comme une option organisationnelle, au sein de laquelle les décisions/actions de différents niveaux interagissent dans la construction de la régulation du processus. Cette proposition est complétée par la présentation d'un cas, étudié au sein d'une entreprise portugaise, dont les résultats montrent la possibilité d'établir un processus dialogique dans la définition matérielle des artefacts technologiques.
Mots clés: technologie ; changement organisationnel ; rationalité technique ; actions/décisions ; “Matriosca”
ABSTRACT
This paper presents a review of the epistemological and theoretical contributions of the Theory of Organisational Action about the relation between organisational change and technology. On the one hand, the rhythm and sophistication of the technological development produce visible consequences on work; on the other hand, the interpretative views about this phenomenon follow different paths, though sharing the same deterministic rationale. Drawing on the possibility to conceive technology as technical rationality of the action process, we propose “Matriosca” approach as a methodological option to interpret technology not an external variable or an exclusive outcome from social construction, but instead as an organisational choice, in which multilevel actions/decisions are combined in interaction to build the process regulation. This proposal is complemented by the presentation of a case in a Portuguese company, whose results provide evidence for the possibility to establish a dialogical process for the material definition of the technological artefacts.
Keywords: technology; organisational change; technical rationality; actions/decisions; “Matriosca”
1. A tecnologia na transição entre modelos de produção
No campo das ciências sociais, e de forma mais demarcada nas disciplinas sobre o trabalho e a empresa, a partir das duas últimas décadas do séc. XX, multiplicaram-se os discursos aludindo à substituição dos modelos de produção tayloristas e fordistas por estruturas de trabalho mais flexíveis e dinâmicas, aquelas que hoje em dia são denominadas por estruturas “pós-fordistas” (Lacomblez & Maggi, 2000). A referência a tal mudança é recorrente, suportada em leituras dos atuais princípios de organização do trabalho onde são vincados os conceitos de “flexibilidade” ou de “autonomia” dos trabalhadores. Por outro lado, certos autores (Masino, 2005; Maggi, 2007) questionam o presente consenso em torno da superação dos restritivos modelos clássicos de produção, preferindo ler e explicitar as escolhas organizacionais que se processam nos diferentes níveis de ação e decisão, e de como estas têm impacto na estruturação do trabalho.
Contudo, e independentemente da posição assumida a favor de uma continuidade na mudança ou de um corte definitivo com as práticas do passado – aquelas que moldaram as décadas de 40, 50 e 60 do séc. XX –, são notórias as transformações no cenário de fundo onde se inscrevem atualmente os modos de racionalização dos modelos de produção. Segundo Lewin, Long e Carroll (1999), a partir do final dos anos 1970, pouco a pouco começou a ser delineado um percurso de transformação da organização e do trabalho, em virtude da presença de um conjunto de forças sociais diferenciadoras relativamente àquelas que acompanharam a regulação fordista. O percurso é aqui entendido como transição: da organização industrial fordista para uma era pós-industrial, onde pontificam os sistemas lean production (Jaffee, 2001), que, alicerçados na lógica just-in-time e no rápido desenvolvimento da automação tecnológica, procuram estabelecer “novas formas organizacionais” para enfrentar os “imponderáveis do mercado” (Lacomblez, 2001).
A transição predita é frequentemente interpretada segundo a presença, singular ou simultânea, de um conjunto de condições ambientais que transformaram as exigências do trabalho (Noulin, 1992; Davezies, 1999): a crescente globalização económica; as constantes mutações nos padrões de comércio e competição internacional; a turbulência do mercado; ou o ritmo da evolução tecnológica. Na compreensão da evolução das relações entre os aspetos organizacionais e a atividade dos trabalhadores, tais forças são vistas como paralelas relativamente àquelas que marcaram a viragem do séc. XIX para o séc. XX, as quais, à época, estimularam e enformaram o paradigma da organização científica do trabalho (Montmollin, 2001).
Em contraponto com as lógicas de previsibilidade e estabilidade que estipularam os cenários económico-negociais até meados da década de 70 do séc. XX, o novo panorama externo colocou as empresas perante exigências imprevisíveis, em quantidade e qualidade, diversificou o mercado, e, através das tecnologias de automação que caracterizaram a chamada “revolução industrial 3.0”, tornou o sistema de produção em massa demasiado rígido e dispendioso. À conta disto, as empresas reposicionaram-se, e, na busca de assegurarem a sua competitividade, assistiu-se à substituição dos sistemas padronizados por estruturas produtivas e comerciais mais flexíveis e fluídas (Clot, Rochex & Schwartz, 1990). De forma mais notória a partir dos anos 1990, a flexibilidade foi aplicada em todos os níveis da organização da produção (Lacomblez, 2001; Maggi, 2006a), ainda que num movimento cuja amplitude e intensidade foi sempre muito variável, dependendo do tipo de empresa ou do sector em causa. A partir daí, esta transformação foi acompanhada por uma escalada tecnológica ímpar, em termos de sofisticação e de magnitude, de tal modo que a capacidade de adaptação do sistema passara a ser medida pela rapidez com que novas soluções técnicas são integradas nos processos produtivos.
Mais recentemente, a partir de 2014 (Elsevier, 2017), a tecnologia passou a estar no centro de uma nova transição, neste caso para os modelos produtivos que hoje fazem parte do que se designa por “Indústria 4.0”, movimento de transformação industrial originalmente iniciado na Alemanha (EPRS, 2015). No seio desta quarta revolução, as organizações procuram transformar os sistemas produtivos no sentido de definirem as “fábricas inteligentes”, aquelas que, combinando múltiplas fontes cibernéticas (e.g., robótica avançada) com ferramentas e redes de comunicação e informação, conectam digitalmente as diferentes partes da cadeia: a empresa, os instrumentos tecnológicos de produção (capazes de configurarem imediatamente o produto de forma autónoma), os fornecedores, ou os distribuidores.
Ora, face à globalização e à incerteza do mercado, cada vez mais a renovação sucessiva das ferramentas tecnológicas no trabalho é vista enquanto via objetiva para a flexibilização da produção, para a obtenção de ganhos produtivos e vantagem concorrencial ou para conexão global das partes interessadas no negócio.
2. A tecnologia no centro de uma dialética ambivalente
Sobre a tecnologia na empresa recaem diversas visões, tanto no plano epistemológico como no plano relativo às suas modalidades concretas de implementação. No campo da pesquisa organizacional, Masino (2011), tornando claro a necessidade de explicitar os pressupostos teóricos que firmam as diferentes maneiras de ver a organização e a tecnologia, sublinha que estaremos face a um campo variado e controverso: primeiro, porque são múltiplas as conceptualizações teóricas sobre os conceitos de organização e de tecnologia; segundo, perante tal, a análise das relações entre os dois conceitos dá azo a distintas e contraditórias interpretações, o que acaba por espelhar um labirinto de perspetivas.
Em todo o caso, a evolução tecnológica, em particular nas formas de automação e informatização, tornou possível a passagem de controlos pessoais às regulações automáticas e, mais tarde, aos controlos centralizados dos processos (Zamarian & Maggi, 2006; Maggi, 2007). Com isto, a tecnologia passou a ter uma influência notável sobre as possibilidades de mudança, tanto ao nível dos processos de trabalho como na organização. A este respeito, Bobillier Chaumon (2003) sumaria aqueles que poderão ser considerados os principais efeitos positivos da tecnologia na organização: racionalização dos processos, criação de pólos de competências, mutualização de recursos, assistência nas tarefas repetitivas ou complexas e/ou a diminuição das cargas físicas. No seio deste espírito, também os saberes profissionais são positivamente influenciados pelo funcionamento da tecnologia, na medida em que, sob um extensível apelo à participação e à autonomia enquanto princípios de organização (Noulin, 1992), os trabalhadores devem passar a exibir e articular competências relativas à rapidez, à eficácia, à iniciativa ou à responsabilidade.
De uma maneira geral, e num contexto onde se acentua a integração das funções em matrizes automatizadas, a modernização das máquinas passa a ser interpretada à luz da substituição das clássicas divisões na organização à medida que emergem novas formas de conhecimento, fruto da combinação das competências tácitas inerentes ao trabalho manual com a expertise técnica anteriormente detida por um grupo restrito de “conceptores” (Vallas, 1999). Este é um cenário que enfatiza as iniciativas de aprendizagem, participação e desenvolvimento pessoal dos trabalhadores (Duraffourg, 2001), sendo, deste modo, previsivelmente superada a lógica mais tradicional que estabelece a clara distinção entre sujeito “organizador” e sujeito “organizado” (Montmollin, 2001). Para além disto, Zamarian e Maggi (2006), classificando esta tendência como “otimista”, enfatizam que a passagem da intervenção direta do trabalhador para um papel de controlo no processo – graças à tecnologia – é, em muitos casos, vista como um avanço no sentido da melhoria das condições de trabalho ou de uma “requalificação” dos trabalhadores (Mirvis, Sales & Hackett, 1991).
Todavia, e em contraste com a análise mais otimista, uma outra visão sublinha que a conjugação do avanço tecnológico com as lógicas de organização do trabalho objetivadas nos modelos lean terá agravado o clima de “intensificação do trabalho” (Cartron & Gollac, 2003). O cenário em perspetiva é de sistemas que retomam e reforçam a prescrição por via da “algoritmização do trabalho” (Bobillier Chaumon, 2003), traduzível em sistemas que: evocam níveis de produtividade superiores; exigem uma redobrada atenção aos trabalhadores (aumento da carga mental); redimensionam as pressões e constrangimentos temporais; requerem capacidade de resposta perante a incerteza; e multiplicam os modos de controlo (Clot, Rochex & Schwartz, 1990). Nesta lógica, por um lado, a atividade de trabalho é objeto de uma reinterpretação em função dos novos espaços de regulação permitidos pelas ferramentas tecnológicas; por outro, a tecnologia, tributária de um projeto de intensificação, produzirá potencialmente consequências negativas sobre a saúde e a segurança dos trabalhadores, em razão da interposição de novos constrangimentos e riscos (Davezies, 1999).
Além disto, ao nível das competências e saberes profissionais, o quadro gestionário regular tende a “restabelecer o sistema” após cada mudança tecnológica. Com efeito, os atores que desenham, organizam e avaliam o trabalho adotam frequentemente uma lógica de gestão dos recursos humanos baseada na competência (Gaudart & Ledoux, 2015). Não negando as vantagens de tal escolha, todavia, num cenário onde se exorta a flexibilidade (tanto na produção como nas equipas de trabalho) e de revolução tecnológica, as competências são reduzidas ao domínio técnico, num princípio de gestão que marginaliza as temporalidades de cada trabalhador, ignorando os saberes-fazer, os “truques da profissão” e as regulações individuais e coletivas que permitem realizar o trabalho. Perante tal situação, as renovações tecnológicas sucessivas e as escolhas contemporâneas sobre os modos de organização (das competências e do trabalho) poderão gerar consequências adversas na saúde dos trabalhadores, num movimento cujo ritmo parece condenar o trabalhador à “eterna condição de aprendiz” (Davezies, 1999; Gaudart & Ledoux, 2015).
As duas visões sobre a articulação da tecnologia no trabalho são colocadas em confronto por Duraffourg (2001), mas não numa perspetiva de exclusividade: se, por um lado, estamos perante um projeto de modernização tecnológica que responde à evolução económica e comercial concedendo mais autonomia, iniciativa e responsabilidade aos trabalhadores na regulação da qualidade, da inovação ou dos prazos; por outro lado, este mesmo projeto impulsiona o desenvolvimento de ferramentas de gestão e de organização da atividade profissional que podem reabilitar os modos de controlo social e reforçar a pressão exercida, numa tendência passível de produzir consequências diretas sobre a saúde e segurança dos trabalhadores.
3. Interpretar a tecnologia enquanto escolha organizacional
O confronto dialético entre as duas visões, nas perspetivas de Zamarian e Maggi (2006) e Masino (2011), é insatisfatório, uma vez que a explicitação das ligações entre uma dada tecnologia e a direção do processo de trabalho através de atribuições causais poderá ser demasiado redutora. A polarização conseguida por intermédio das visões ditas “pessimistas” ou “otimistas” sobre as relações entre as escolhas tecnológicas e as escolhas organizacionais é o espelho de uma orientação determinística, na qual a tecnologia é vista enquanto elemento externo e preeminente em relação às outras escolhas (Maggi, 2007; Zamarian & Maggi, 2006). Tal percurso interpretativo repousa em dois pressupostos fundamentais que, em conjunto, explicam o espírito desta hipótese: por um lado, a tecnologia na organização é vista como elemento reificado e predeterminado em relação aos sujeitos agentes, ou seja, é um domínio totalmente autónomo e separado da regulação social; por outro, é consagrado o princípio do “determinismo tecnológico”, segundo o qual a tecnologia é uma força capaz de modelar as características da empresa, incluindo as condições de trabalho e a sua estruturação (Masino & Zamarian, 2003).
Maggi (2006a; 2007), ao tornar evidente o reducionismo possível de tal maneira de ler a tecnologia, reorienta o debate ao propor uma perspetiva alternativa sobre a adoção e o uso de tecnologias enquanto escolhas organizacionais, que implicam mudanças tanto na estrutura social do processo de trabalho como nas suas tarefas (Zamarian & Maggi, 2006). Portanto, afastamo-nos da herança determinística, onde a tecnologia, enquanto variável externa e independente, determina necessariamente um único sentido para as alterações na direção do trabalho; investe-se antes na ideia da tecnologia enquanto escolha organizacional, dado que pode contribuir para a configuração das atividades de trabalho de diferentes formas. Deste modo, segundo Zamarian e Maggi (2006), a tecnologia é um elemento de um conjunto mais amplo de escolhas e de ferramentas organizacionais, em particular aquelas que mais proximamente ditam a concepção e a organização do trabalho, que, no seu conjunto articulado, serão os principais determinantes do cenário relatado de intensificação do trabalho. Tal significa dizer que uma determinada tecnologia por si só não determina, por exemplo, uma mudança na dimensão temporal da atividade ou nas margens possíveis para a aprendizagem dos trabalhadores. Ao invés, a tecnologia é uma consequência de escolhas organizacionais mais amplas, por exemplo, aquelas que determinam e impõe uma produção cada vez mais elevada no menor tempo possível, sendo que, para isso, são multiplicados os procedimentos de trabalho – agora reproduzidos em soluções informáticas –, ao mesmo tempo que se apela aos trabalhadores para um certo “esquecimento” das regras do passado, de forma a aprenderem as novas regras de operação após cada mudança técnica.
Interpretar assim a tecnologia, enquanto escolha organizacional, é o reflexo de uma explicitação epistemológica anterior realizada por Maggi (2006a) no âmbito da Teoria do Agir Organizacional (TAO), na qual a organização é entendida enquanto processo de ações e decisões. Esta é uma conceptualização sobre a organização e as situações de trabalho que representa uma descontinuidade relativamente às teorias objetivistas/funcionalistas e subjetivistas (Masino, 2011), que ora perspetivam o sistema social enquanto organização predeterminada em relação aos sujeitos, ora concebem o sistema como decorrente da construção social. Contrariamente a estas duas “maneiras de ver e conceber o trabalho”, cujas raízes interpretativas fundam uma separação irredutível entre a organização e sujeito agente, o entendimento do sistema enquanto processo de ações e decisões define uma visão bem diferente. Ora, a situação de trabalho não é um conjunto de meios físicos, de objetos materiais e simbólicos, de tecnologia e de organização, mas sim o resultado de escolhas organizacionais (escolhas de regulação) em referência aos objetivos e aos meios para atingi-los: as escolhas de ação, as ações a serem realizadas por cada sujeito, os meios, os objetos ou as técnicas (Terssac & Maggi, 1996).
Nas últimas três décadas, em função da evolução tecnológica, multiplicaram-se os registos sobre os sistemas produtivos flexíveis e descentralizados, aqueles que terão promovido uma verdadeira inversão de valor no domínio racional da regulação ao obliterar os procedimentos rígidos do passado e ao outorgar mais autonomia como ingredientes cardinais para a rápida resposta produtiva perante situações não previstas. Contudo, Maggi (2007), interpretando a regulação do processo em tais sistemas, desintrinca as imprecisões em torno das noções de “flexibilidade” e de “autonomia”, conceitos utilizados de forma tão extensiva que parecem trespassar todo o debate acerca da mudança organizacional. Para o autor, a flexibilidade, tornada possível por via do suporte tecnológico, é uma forma de delegação de responsabilidade perante situações não programáveis/incertas (Maggi, 2006b), isto é, a tarefa passa a impor ao trabalhador a necessidade de decidir e de agir em condições de incerteza (em espaços de ação não prescritos). Neste caso, é usual interpretar-se esta transferência das cargas de coordenação do trabalho enquanto um real aumento da autonomia dos sujeitos na produção das suas regras. Tal diverge da visão do agir organizacional de Maggi (2006a), que, ao analisar as relações entre tecnologia e organização, situa as questões de pesquisa sobre a mudança no nível da regulação dos processos de ação e decisão. A partir desta opção de análise oferecida pela TAO, o perímetro que é deixado para a interpretação da influência da tecnologia na organização é mais amplo, onde é possível observar que a eliminação gradual das tarefas manuais (graças aos avanços técnicos) e o enriquecimento do seu conteúdo nada têm que ver com autonomia. A leitura sobre o impacto da tecnologia nas mudanças em curso pode ser medido pelos graus de liberdade (ou “margens de manobra”) que são concedidos aos sujeitos para gerirem as suas atividades, ou seja, é a noção de “discricionariedade” que passa a estar no centro da reflexão, devendo esta ser diferenciada do conceito de autonomia. Neste sentido, Maggi (2007) propõe uma leitura sobre a articulação da tecnologia na organização enquanto “sistema discricionário”, bem entendido, sistema que indica espaços de ação num processo regrado, onde o sujeito agente pode/deve escolher entre alternativas, num quadro de dependência. O trabalho é, então, racionalizado em torno de um cenário controlado (de prescrição fixada), no qual o sujeito pode escolher entre alternativas, mas também é este mesmo cenário que obriga a escolher perante a incerteza agora admitida, estando, em qualquer um dos casos, as premissas da decisão balizadas superiormente (Maggi, 2006b).
Em resumo, com a aceitação da possibilidade de incerteza (negada nos modelos tayloristas-fordistas), são questionados os limites da prescrição absoluta, ganhando posição as regulações discricionárias, aquelas que, articulando artefactos tecnológicos cada vez mais sofisticados, prescrevem ao sujeito a escolha entre diferentes soluções, num quadro de dependência definido pelo sistema técnico, contrariamente ao que acontecia no passado em que as ferramentas impunham uma margem de manobra bastante reduzida para a escolha.
4. A tecnologia como a dimensão instrumental do processo de ação
Os relatos sobre o impacto da tecnologia na empresa e no trabalho são muito amplos, podendo variar desde a desconsideração interpretativa (opção de análise conhecida como “presença ausente”), passando por interpretações que dão conta da tecnologia enquanto força exógena que (pre)determina os aspetos organizacionais (hipótese determinística) até abordagens que concebem a tecnologia enquanto um “processo emergente” (fruto das interações e interpretações humanas) (Orlikowski, 2010). Apesar do interesse e da amplitude da pesquisa, certas questões têm permanecido desde há muito em aberto, tanto relativas à influência da tecnologia nas modalidades de coordenação e controlo, mas também a respeito do papel da tecnologia na ativação/erosão dos processos de aprendizagem e de desenvolvimento de competências (Masino, 1999; Masino & Zamarian, 2003; Maggi, 2007).
O percurso de procura de respostas para estes impasses poderá ser primeiramente orientado segundo a explicitação dos pressupostos teóricos que subjazem ao conceito de tecnologia (Dejours, 2005). Como referimos, entendemos a tecnologia enquanto escolha organizacional, que, em articulação com outras escolhas, resulta sempre de um processo de decisões mais amplo (Zamarian & Maggi, 2006). Portanto, o foco da nossa atenção deverá ser colocado sobre o processo de decisões (localizado a diferentes níveis), que se revelará crucial para a compreensão sobre os modos como os instrumentos técnicos influenciam a regulação da ação organizacional. Neste aspeto, partindo da reflexão oferecida pela TAO e de um conjunto de pesquisas empíricas sobre a adoção de artefactos de desenho assistido por computador (DAC)[1], Masino (1999; 2011) promove uma clarificação interpretativa sobre a tecnologia, sendo esta julgada enquanto oportunidade de mudança que nunca poderá ser predeterminada ou unívoca. Em coerência com a orientação da TAO, a mudança é aqui entendida no plano da regulação do processo de trabalho, ou seja, a situação de trabalho representa a unidade fundamental a partir da qual é interrogada a relação entre a tecnologia e mudança na organização (Rogalski, Rabardel & Janin, 2001).
Contrapondo com a dispersividade teórica sobre o conceito no discurso organizacional, Masino (2011) propõe uma definição de tecnologia muito próxima daquela que é avançada por Etienne e Maggi (2009), na qual a tecnologia é vista como a dimensão instrumental que qualifica cada ação humana no desenvolvimento do processo de ações e decisões, intencionalmente orientado para a obtenção de um resultado desejado, independentemente se é feito uso de artefactos físicos ou não físicos. A tecnologia é, assim, “conhecimento técnico” (Etienne & Maggi, 2009), conhecimento que modela o processo de ações e decisões em função dos resultados a alcançar, expressando, deste modo, uma unidade e intencionalidade. Comungando da mesma leitura, Masino (2011) propõe, contudo, uma designação ligeiramente diferente: a de “racionalidade técnica”. O autor, ao optar por esta terminologia, procura acentuar que o foco da nossa atenção não deve incidir sobre o sujeito agente mas sobre o processo de ação social, sendo a tecnologia interpretada como uma das suas características, tal como a TAO preconiza de forma tão distintiva em relação a outras conceptualizações. Assim, a racionalidade técnica designa o carácter instrumental da ação, isto é, a lógica identificável em termos analíticos (pela decomposição e distinção dos elementos do processo), e que permite qualificar a ação dos sujeitos em termos da coerência entre as modalidades de desenvolvimento e as suas finalidades.
Para uma completa compreensão da tecnologia como racionalidade técnica, prologamos o que no debate é entendido por artefacto. Masino e Zamarian (2003) apresentam o artefacto enquanto conjunto negociado e sedimentado de regras tendo em vista a realização de uma ação orientada para objetivos. Desta definição, ressalta a ideia que o artefacto serve de mediador à ação humana, num processo no qual é objeto a ser apropriado pelos sujeitos durante o uso. É precisamente esta inscrição no uso (utilização em situação) que transforma o artefacto em “instrumento” (Rabardel, 2003), numa relação instrumental durante a ação na qual o sujeito procura alcançar um objetivo desejado. Assim, o instrumento passa a representar uma entidade bipolar que reúne em si um artefacto (de natureza material ou simbólica) e os esquemas de utilização (formas organizadas de ação) construídos pelo próprio sujeito ou em resultado da apropriação de esquemas sociais já existentes (Santos & Lacomblez, 2016).
No âmbito da tradição das interpretações antropocêntricas da tecnologia (Rabardel & Béguin, 2005), e de forma muito semelhante ao conceito de instrumento, Masino e Zamarian (2003) propõem a noção de “artefacto-em-uso”. Tal proposta acentua que só a intenção do sujeito na apropriação e no uso de uma ferramenta poderá conferir-lhe a qualidade de artefacto-em-uso. Ora, o estudo das relações entre a regulação organizacional e a tecnologia deverá então mobilizar uma atenção redobrada sobre estes artefactos-em-uso, uma vez que: i) os artefactos, com as regras em si incorporadas, são dispositivos que podem ter um papel decisivo na estruturação da ação organizacional; ii) os artefactos comportam um importante significado social, já que configuram recetáculos de experiência comum, partilhada pelos sujeitos que criam e utilizam os artefactos.
Com isto em consideração, as organizações concebem e adotam artefactos com o objetivo de, direta ou indiretamente, estruturar a ação organizacional (dispondo na equação novas regras e recursos); todavia, e ao contrário do que é tido pela tese determinística, os resultados desta adoção podem variar consideravelmente, influenciando de diferentes formas as ações e decisões (individuais e coletivas). Tal, segundo Masino (1999), permite explicar o facto de que a mesma tecnologia possa traduzir distintas tendências em duas empresas.
É importante ainda sublinhar que entender a tecnologia como racionalidade técnica implica reconhecer que a presença do artefacto (material ou não) não deve monopolizar a atenção da análise sobre a mudança tecnológica. Quer isto dizer que, por exemplo, a racionalidade técnica está presente na ação de diagnóstico de um médico, seja essa ação realizada com recurso a aparelhos mais ou menos sofisticados (e.g., estetoscópio), mas também através da observação ou do diálogo com o paciente. Em qualquer um dos casos, há “tecnologia”. Neste ponto, reside um dos elementos mais diferenciadores da proposta de Masino (2011), ao contrariar a visão mais difundida na literatura organizacional que limita a tecnologia à materialidade dos artefactos, excluindo da análise todas as atividades que são realizadas sem a utilização de artefactos materiais – logo não iminentemente “tecnológicas”. De forma distinta, a tecnologia como racionalidade técnica inclui na análise não somente os artefactos mas também os conhecimentos e capacidades (aqueles que ligam as ações às suas finalidades), os processos e conjuntos de atividades, bem como todas as variáveis sociais e estruturais (Masino, 2011). À semelhança do que Dejours (2005) salienta, tal entendimento sobre tecnologia desloca o seu centro interpretativo do conjunto de aparelhos e máquinas que assistem a ação para uma conceptualização mais ampla, aquela em que a tecnologia está submetida à tutela das ciências humanas.
Partindo desta conceptualização, as investigações conduzidas em diferentes contextos industriais sobre a adoção de ferramentas DAC (Masino & Zamarian, 2003; Masino, 2011) permitiram evidenciar a forma como tecnologia encoraja os sujeitos a alterarem o processo de regulação de acordo com o aumento/diminuição da heteronomia (Maggi, 2006a), mas também, e de forma contrária, pela produção de novas regras de regulação (i.e., autonomia). Tais transformações, no quadro da racionalidade técnica, são fruto de oportunidades de mudança no processo, as quais poderão ser melhor compreendidas caso sejam consideradas as escolhas dos atores a três níveis analíticos: concepção/adoção/uso.
5. Decisões de concepção, adoção e uso
Na perspetiva da tecnologia como racionalidade técnica, a presença de um artefacto no processo não é obrigatória a fim de este ser utilizado para fins interpretativos; ainda assim, a significação dos artefactos deve ser analisada atentamente tendo em conta os objetivos que orientam ação dos sujeitos. Deste modo, são identificados três conjuntos analíticos de ações/decisões: concepção, adoção e uso (Masino & Zamarian, 2003; Zamarian & Maggi, 2006; Masino, 2011).
As decisões de uso dizem respeito à forma como os utilizadores interagem com os artefactos durante o processo de trabalho. A este nível, o sujeito agente escolhe utilizar um artefacto para realizar uma ação eficaz, sejam esses usos convencionais (em linha com as expectativas quer dos conceptores do artefacto quer dos agentes que decidem a sua adoção), usos não convencionais ou “não usos” (o sujeito escolhe deliberadamente não utilizar certa funcionalidade do artefacto). Do ponto de vista da análise organizacional, as decisões de uso são relevantes não só porque dizem respeito ao desenvolvimento da atividade de trabalho, mas também pelo facto de que estas podem ser dissonantes das ações/decisões de concepção e adoção sobre o artefacto. Na interação com o artefacto, o sujeito pode produzir regras autónomas – representam as apropriações inesperadas – que, muitas vezes, revelam-se eficientes em termos organizacionais (Masino & Zamarian, 2003).
As decisões de concepção dizem respeito à definição de todas características técnicas, operacionais e físicas do artefacto. Por exemplo, no caso de um artefacto informático, o conceptor (i.e., sujeito agente que toma as decisões de concepção) determina as características de interface do sistema ou o funcionamento e articulação das diferentes funcionalidades da ferramenta informática. Desta forma, e a fim de ilustrar a interação dinâmica entre os níveis analíticos, as ações de concepção influenciam as ações de uso, em razão de dois motivos, segundo Masino (2011): i) a definição das características físicas de um objeto circunscreve um domínio de possibilidades (e, portanto, também um domínio de impossibilidades) para o utilizador do artefacto; ii) no domínio das possibilidades, as características físicas do objeto podem orientar as ações de uso em diferentes direções, de forma implícita ou explícita, mas sem as restringir completamente.
As decisões a respeito das modalidades de integração do artefacto no processo de trabalho representam as decisões de adoção. A principal decisão de adoção é relativa à escolha sobre que artefacto utilizar, tendo sempre por referência a atividade de trabalho em causa. De acordo com Masino & Zamarian (2003), um vasto número de decisões de adoção poderá afetar o potencial de mudança de um artefacto na organização: decisões sobre as atividades de trabalho nas quais o artefacto será utilizado; decisões sobre os sujeitos que utilizarão o artefacto; ou decisões sobre os modos de articulação do artefacto com outros artefactos já adotados.
Deste modo, do ponto de vista organizacional, os artefactos comportam constrangimentos e oportunidades de ação que derivam das escolhas de concepção, adoção e uso[2]. Assumir este ponto de vista tem implicações no quadro de análise que se debruça sobre a influência do artefacto no trabalho e na sua regulação. De acordo com Masino (2011), a pertinência de uma ferramenta tecnológica não deverá ser analisada em referência à ferramenta em si (i.e., questionar as suas características físicas ou a sua presença num dado contexto organizacional); um artefacto tecnológico é sempre o resultado de escolhas dos sujeitos agentes, desde aqueles que o projetam, adotam até aos sujeitos que utilizam o artefacto no dia-a-dia. Esta posição evita, assim, toda a reificação no percurso interpretativo sobre as relações entre a organização e tecnologia.
Com raízes na TAO, esta maneira de ver a tecnologia firmou-se já no nosso percurso de pesquisa e intervenção em contexto enquanto elemento norteador da leitura dos constrangimentos entretanto relatados a partir da adoção de ferramentas tecnológicas. Partindo de um caso numa empresa onde ocorreu a implementação de uma ampla componente tecnológica no controlo produtivo, caracterizamos brevemente o percurso de investigação traçado neste contexto industrial, bem como o dispositivo de intervenção colocado em marcha em resposta ao pedido da empresa. Em seguida, tentaremos demonstrar como esta proposta metodológica suportou uma reinterpretação da tecnologia em causa junto de vários atores organizacionais.
6. O caso de uma empresa química
Situada num complexo químico português, a empresa em questão é composta por 10 fábricas, as quais integram dois grandes pólos (interdependentes) de produção química industrial. A produção é contínua 24h através da rotação de 5 equipas de trabalho, sendo que, genericamente, cada uma delas era constituída por dois encarregados de produção (um para cada pólo) e 20 operadores químicos (2 por cada uma das fábricas).
Em traços gerais, à data da nossa pesquisa e intervenção no terreno (entre 2010 e 2012), o funcionamento de cada fábrica era garantido por dois trabalhadores: um operador de painel, responsável pelo controlo da automação do processo, na sala de controlo; e um operador de exterior, responsável pela supervisão exterior da produção e controlo da qualidade.
Nesta empresa, a questão da saúde e segurança no trabalho adquiria ainda mais relevância na agenda dos seus decisores, uma vez que, face à relativa contiguidade do complexo químico com a comunidade envolvente, um eventual acidente acarretaria não só consequências diretas para a empresa mas também para a população daquela região. Deste modo, o foco da empresa em matéria de segurança não só era dirigido para a proteção dos seus trabalhadores mas igualmente para a prevenção dos “acidentes industriais graves” (Diretiva 2012/18/UE)[3], ou seja, acidentes que envolvam substâncias químicas perigosas, cujos efeitos nefastos para o homem e para o ambiente poderão ultrapassar os limites espaciais da empresa e a janela temporal do evento crítico.
A referência à questão da segurança nesta empresa serve para melhor enquadrar o pedido de intervenção formulado pelos seus responsáveis junto de uma equipa de psicólogos do trabalho[4]. O pedido inicial visara o desenvolvimento de uma formação (dirigida aos operadores químicos) no sentido da prevenção da ocorrência de acidentes industriais e ambientais e da promoção da saúde e segurança no trabalho (Vasconcelos et al., 2012). Desde os primeiros momentos de negociação do pedido, foi possível verificar que a questão da segurança estava no topo da lista de prioridades, dado que, nesta empresa em particular, a segurança traduzia-se diariamente não só num imperativo legal mas também em imperativos comunitários e ambientais (Vasconcelos & Silva, 2012).
A estratégia de pesquisa e intervenção delineada consagrou um princípio de formação-ação participativa, processo que, na lógica do agir organizacional, não deve ser entendido enquanto elemento externo e padronizado, que é imposto à situação de trabalho; pelo contrário, a estratégia formativa retorna e apela sistematicamente aos saberes operacionais, detidos pelos protagonistas das situações de trabalho. Assim, a intervenção levada a cabo assentou na Matriz de Análise do Trabalho e de RIscos Ocupacionais para Supervisores, Chefias e estruturas de Apoio (MATRIOSCA) (Vasconcelos, 2008), abordagem que articula dois nódulos de ação fundamentais no tratamento das questões da saúde e segurança no trabalho: formação e transformação (das condições reais de trabalho que subjazem um agir mais seguro) (Vasconcelos et al., 2012; Silva, Duarte & Vasconcelos, no prelo).
6.1. O trajeto de pesquisa e intervenção do Projeto Matriosca
O percurso de investigação e intervenção do Projeto Matriosca tem mais de uma década, ao longo da qual foi possível sedimentar a sua lógica de funcionamento e enriquecer os seus diferentes procedimentos e instrumentos de análise, seja através das pesquisas contextuais realizadas, da restituição de resultados (tanto no pólo académico como no pólo organizacional), das reflexões científicas ocorridas no âmbito das redes de pesquisa nacionais e internacionais nas quais os psicólogos do trabalho se inserem, ou mesmo das negociações contratuais e dos ajustamentos necessários em função das realidades de cada empresa.
Na sua génese, o Projeto Matriosca resulta do desenvolvimento de um modelo de investigação-ação do Centro de Psicologia da Universidade do Porto numa empresa multinacional de produção de pneus (Vasconcelos, 2008). Inicialmente desenvolvido numa área circunscrita da empresa tendo em vista a promoção da saúde e segurança no trabalho, progressivamente, e em função dos indicadores positivos entretanto produzidos (Vasconcelos, Silva & Fortuna, 2011), o modelo de intervenção foi sendo alargado a outras áreas produtivas desta empresa, ao mesmo tempo que mobilizava para o “ciclo de formação – transformação” (Vasconcelos et al., 2012; Duarte & Vasconcelos, 2014) um quadro de atores cada vez mais pluridisciplinar. Este é, aliás, um elemento que mais visivelmente distingue a abordagem Matriosca das formações mais ortodoxas em matéria de segurança no trabalho, sobretudo daquelas que limitam a formação à transmissão de comportamentos supostamente seguros que os operadores deverão passar a exibir a partir daquele momento.
Na sequência do trabalho realizado nesta primeira empresa, a partir de 2010 foi possível desenvolver o Projeto Matriosca na empresa química referida. Nesta segunda empresa, o trabalho realizado ao longo de 20 meses possibilitou não só a extensão do modelo de intervenção proposto, mas também a consolidação e a operacionalização de várias ferramentas de pesquisa e análise no terreno[5]. Neste contexto de produção química, o processo interventivo envolveu diretamente 115 dos 220 trabalhadores da empresa, podendo agora ser metodizado em três grandes momentos (Vasconcelos, Silva & Mhamdi, 2013):
i) Análise preliminar para o conhecimento do trabalho real (2 meses): etapa composta por análise documental, entrevistas semi-estruturadas aos decisores organizacionais e reuniões de alinhamento e calibração técnica. Num segundo momento, os psicólogos procederam à análise da atividade de trabalho junto de um leque alargado de profissionais.
ii) Alternância entre análise guiada em posto e análise coletiva (14 meses): em termos teórico-metodológicos, esta etapa é o núcleo central da intervenção, no qual são articulados em alternância dois momentos fundamentais de análise e debate sobre o trabalho, análise guiada individual em posto de trabalho e análise coletiva em sala de formação. A análise guiada permitiu identificar situações críticas, constrangimentos e saberes-fazer (individuais e da equipa), que mais tarde foram debatidos e aprofundados em grupo – onde se fizeram representar, além dos operadores industrias, profissionais de valências distintas, cujas atividades se entrecruzam direta ou indiretamente com a produção química. Os momentos de análise em sala serviram de mote à elaboração de propostas de intervenção contextual tendo em vista e melhoria das condições de trabalho (nódulo da transformação).
iii) Balanços setoriais, consolidação e avaliação (4 meses): etapa destinada à realização de reuniões e balanços com as chefias de modo a aferir a implementação das propostas de intervenção. Os dados foram depois sistematizados num portefólio de forma a serem restituídos aos trabalhadores nas sessões finais de consolidação e avaliação (qualitativa e quantitativa).
6.2. O trabalho de estar atento sem saber a quê
No passado, tivemos já oportunidade de nos debruçar sobre os resultados globais alcançados com a intervenção na empresa química, bem como os passos subsequentes assinados internamente pela empresa no sentido de assegurar a sustentabilidade das ações transformadoras (Duarte & Vasconcelos, 2014). Deste modo, preferimos neste momento explorar uma especificidade contextual que acabou por marcar o trajeto de investigação nesta empresa: a automação tecnológica.
Nos últimos 15 anos, a empresa foi objeto de fortes reestruturações, nomeadamente, ao nível do controlo do seu processo de produção em função da introdução de uma ferramenta de automação. Se até 2001 o controlo da produção era assegurado, principalmente, de forma manual, por intermédio da presença de vários trabalhadores por cada uma das fábricas; nos últimos anos, e fruto da aplicação da tecnologia, o processo foi alterado significativamente, de tal forma que o processo é agora centralizado e monitorizado numa sala de controlo, local onde se encontra um operador de painel por cada uma das fábricas. Esta transformação implicou uma reestruturação ao nível dos recursos humanos, com uma diminuição acentuada do número de trabalhadores na empresa.
A tecnologia em causa é uma ferramenta de automação do tipo sistema de controlo distribuído, mais conhecido por “DCS” (Distributed Control System). Esta ferramenta, ao recolher os sinais distribuídos e ligados entre si ao longo de toda a cadeia de produção, centra o controlo produtivo em painéis com vários monitores na sala de controlo, local onde são processadas digitalmente (na forma de diagramas) todas as áreas fabris que o operador deve supervisionar (um operador de painel pode ter que controlar até 5 monitores). A partir de 2007, toda a produção química da empresa estava abrangida pela tecnologia de automação.
Ao longo da nossa intervenção, quer na fase de análise preliminar como nos momentos de alternância entre análise guiada e análise coletiva, emergiram diversas situações sinalizadas como críticas pelos operadores de painel em torno da interação com a ferramenta de automação, particularmente com o número de “alarmes” emitidos pelo sistema de controlo da produção. Com a introdução do DCS, foi abolida a necessidade de efetuar registos físicos sobre os mais diversos indicadores da produção (e.g., temperaturas, caudais, pressões, pH), sendo que agora estes indicadores são monitorizados através de um complexo sistema de alarmes informáticos gerado pelo DCS. De forma geral, a emissão de um alarme traduzia-se na abertura de uma janela pop-up, sendo acompanhada por um sinal sonoro e um sinal luminoso intermitente, no monitor principal do painel. Nesse painel, tal janela sobrepunha-se às demais operações que o operador se encontrava a realizar no momento, pelo que, para continuar a operação, o trabalhador tinha que fechar a janela do alarme clicando em “aceitar” – ao clicar em “aceitar”, o trabalhador indica que tomou conhecimento do alarme e que atuará mediante a correção necessária; depois de fechada a janela do alarme, este sinal era “reconduzido” para uma segunda janela onde era listado (numa folha do tipo excel) em função do seu código de identificação e não por grau de prioridade ou hora em que foi emitido.
Deste modo, sempre que um determinado indicador (e.g., caudal) ou uma condição (e.g., abertura/encerramento de válvula) necessitavam de correção, o DCS emitia um alarme (sinalizado sonora e visualmente no monitor principal do painel); o operador, em seguida, “respondia” a este alarme através da condução das operações necessárias tendo em vista a correção ou a otimização da situação de forma a assegurar a continuidade da produção, a qualidade e a segurança industrial. No limite, a ausência de resposta a um alarme conduzia à paragem automática da fábrica em causa, uma vez que, por motivos de segurança, o sistema tecnológico parava autonomamente a produção sempre que um indicador/condição (na falta de correção) ultrapassava o limiar programado. Esta situação não era de todo desejável, pois todo o processo poderia ser afetado devido ao grau de interdependência entre todas as fábricas da empresa.
O trabalho dos operadores de painel passou a ser, assim, em larga medida regulado pelos alarmes informáticos. O que a pesquisa acabou por revelar durante o desenvolvimento do Projeto Matriosca foram situações nas quais estes alarmes constrangiam significativamente a ação dos operadores, ao contrário do que seria expectável. As situações que melhor ilustravam esta problemática eram referentes a dois momentos distintos na atividade: o arranque da fábrica; e certos momentos em produção estabilizada (Silva, Duarte & Vasconcelos, no prelo).
Em situação de arranque, as funcionalidades da automação tecnológica estavam ainda restringidas – até ao momento em que a produção estabilizava, ponto a partir do qual o DCS era capaz de recolher dados relativos a uma produção regular –, pelo que o operador de painel tinha que executar as operações necessárias ao arranque da instrumentação e, ao mesmo tempo, realizar certos cálculos matemáticos a fim de determinar precisamente diversos índices (e.g., quantidades de compostos; temperaturas; caudais). Contudo, em situação de arranque os valores dos indicadores do processo eram obrigatoriamente diferentes daqueles em produção estabilizada, o que conduzia a que o sistema emitisse uma série de alarmes a reportar desvios em relação ao padrão de produção. Com isto, e durante um longo período temporal (um arranque podia demorar até 5/6 horas), onde todas as capacidades de atenção e concentração eram requeridas, os operadores de painel viam as suas ações constantemente interrompidas face ao elevado número de alarmes gerados pelo DCS, muitos dos quais redundantes, pois reportavam situações ou que já tinham sido corrigidas ou que seriam próprias daquele momento de arranque. Se, por um lado, estes alarmes nem sempre forneciam informação relevante para o processo e eram ignorados e encarados como elementos distrativos, pois fragmentavam o trabalho cognitivo do operador, por outro lado, podiam dificultar a identificação de um alarme que fosse importante.
Já em situação de produção estabilizada, certos alarmes podiam ser gerados em mais do que um painel de controlo, ou seja, o reporte acerca de uma correção necessária podia ser emitido no painel de controlo daquela fábrica mas igualmente num outro painel (referente a outra instalação). Na prática, o mesmo alarme era gerado em dois painéis em simultâneo. Apesar de o objetivo desta medida ser o princípio da utilização dos operadores como salvaguarda para o caso de um dos seus colegas não reagir ao alarme, este aspeto acarretava fortes preocupações para o operador no painel, uma vez que para continuar a trabalhar tinha que “aceitar” um alarme “exterior” (de outra fábrica que não a sua), mesmo desconhecendo os fatores que o originaram.
6.3. Deslindar as ações/decisões de adoção, concepção e uso
Na articulação possível pela metodologia Matriosca entre sessões individuais de análise do trabalho e sessões coletivas com os grupos em formação foi possível aprofundar e validar o entendimento sobre os constrangimentos interpostos diariamente na atividade no painel de controlo. Após uma definição pormenorizada dos alarmes em questão, esta situação foi debatida junto de um comité de acompanhamento do Projeto Matriosca, estrutura mobilizada pela intervenção e onde se fizeram representar as diferentes direções e chefias intermédias da empresa. Neste contexto, e após um reconhecimento generalizado sobre a problemática, foi estabelecida a criação de uma equipa pluridisciplinar tendo em vista uma reconfiguração na lógica da emissão dos alarmes. Esta equipa de trabalho foi constituída por um operador de painel, um supervisor de produção, um elemento da engenharia de processos, um elemento dos sistemas de automação, um elemento do departamento de projetos e por um dos psicólogos do trabalho da equipa responsável pelo Matriosca.
O debate no seio desta equipa de trabalho possibilitou desvendar, e até mesmo segmentar no plano analítico, o processo de ações/decisões que acabou por revestir a transformação organizacional e tecnológica que a empresa registou. Neste caso, e tal como Masino e Zamarian (2003) tinham já sinalizado, a pesquisa tornou claro como as decisões de concepção influenciam diretamente a estruturação do processo de trabalho, sobretudo quando conjugadas com as decisões de adoção. Por exemplo, a decisão de adoção da automação tecnológica (DCS) por parte da empresa visara o aumento da segurança industrial e ambiental, uma vez que uma ferramenta deste género permitiria a introdução de dois novos conjuntos de regras: por um lado, garantiria a distribuição do controlo produtivo ao longo de vários níveis de processamento (i.e., se um processador falhar apenas uma área muito restrita da cadeia produtiva será afetada); e, por outro lado, o DCS garantiria uma maior uniformidade das ações de controlo por parte dos trabalhadores, uma vez que o sistema tecnológico passaria a “guiar” (através da emissão de alarmes) as opções que os operadores poderiam executar, restringindo assim a margem para a variabilidade. Ora, tais regras acabaram por ser materializadas e cristalizadas nas características e funcionalidades da ferramenta tecnológica por intermédio das decisões de concepção. A este nível, foi notório que os engenheiros responsáveis pela definição material da tecnologia optaram, naturalmente, pela codificação da emissão de alarmes em todo e qualquer momento, sempre que se verificasse um desvio em relação aos níveis regulares da produção e, por vezes, em mais do que um painel, salvaguardando assim o princípio da segurança. Tais ações/decisões de concepção acabaram por ter influência nas ações de uso que os trabalhadores assumiam na interação com a tecnologia. Da análise levada a cabo ressaltaram três elementos cruciais ao nível da apropriação e uso da tecnologia por parte dos trabalhadores:
i) Em situação de arranque, face à quantidade de alarmes gerados, muitos dos quais a reportar desvios aceitáveis dado que a fábrica estava a arrancar, o trabalhador optava por “aceitar” o alarme de modo a continuar a operação que se encontrava a realizar no momento. Num segundo momento, estando já o alarme na listagem do tipo excel, o trabalhador, fruto da experiência profissional, ao ler o código do alarme (e.g., “nível S614”) sabia de antemão se tinha que proceder a uma ação corretiva ou, pelo contrário, ignorar o alarme – optando assim por um não uso. Este saber profissional permitia poupar tempo, para as operações de arranque da instrumentação e cálculos associados, e canalizar a atenção para os alarmes verdadeiramente relevantes. Por exemplo, à altura da pesquisa, numa das fábricas, ao arranque de um único equipamento podia estar associado a emissão de cerca de 450 alarmes, aos quais se somavam todos os outros alarmes referentes aos restantes equipamentos que componham aquela fábrica, o que contrastava grandemente com os 34 alarmes em situação estabilizada. Perante a multiplicação de alarmes em situação de arranque, o operador tinha que descortinar aqueles que, de facto, requeriam ações corretivas.
ii) Nas situações em que um mesmo alarme era gerado em dois painéis diferentes, o trabalhador optava por fechar a janela daquele alarme “exterior”, clicando em “aceitar”, de modo a continuar a operação na sua fábrica. Esta situação era particularmente constrangedora para os operadores de painel, dado que podiam estar a aceitar um alarme cujos desvios e implicações desconheciam. Para atenuar a situação, e como os operadores partilhavam a mesma sala de controlo, o operador procurava aferir junto do colega se a situação já foi corrigida e, como tal, daí não decorrer nenhuma consequência após o alarme ser “aceite”.
iii) Apesar da ferramenta DCS dispor de regras de funcionamento que, supostamente, libertariam os operadores dos cálculos matemáticos e das leituras dos indicadores no terreno (no interior das fábricas), na prática, em certos casos de produção estabilizada, os operadores de painel relatavam que não confiavam na leitura feita pela automação, ou seja, os valores de certos indicadores registados no painel eram diferentes dos valores reais registados no terreno. Com a experiência, os operadores reconheciam quais as leituras que poderiam estar “imprecisas”, podendo isto ser devido a condições de desgaste das válvulas/manómetros nos equipamentos ou ao mau contato de “grampos” elétricos, mas também a uma programação informática para a emissão do alarme que entretanto se revelara incoerente com aquelas ações/decisões que os operadores assumiam antes da introdução da tecnologia. Por exemplo, o DCS podia gerar um alarme a sinalizar que a capacidade de um dado reservatório aproximava-se do seu limite mínimo, aos 5 litros, o que implicaria que o nível teria que ser reposto sob pena da produção parar; todavia, o operador sabia que a sua “margem de segurança” era por volta dos 8 litros de capacidade mínima, ou seja, o operador tinha que corrigir o nível do reservatório bem antes do sistema emitir um alarme. Perante isto, os operadores de painel acabavam por pedir ao operador de exterior para efetuar a leitura no terreno, junto do equipamento em causa; em seguida, e mesmo que o DCS não emitisse um alarme, ao nível das decisões sobre a utilização, os operadores optavam por corrigir manualmente o valor no sistema. Esta “apropriação inesperada” do artefacto tecnológico (Masino & Zamarian, 2003), possível através da produção de regras autónomas, emprestava um importante contributo para a eficiência global do sistema, pois garantia a continuidade e a qualidade da produção, bem como a segurança. Por outo lado, esta situação relativa à discrepância entre valores (do painel e do terreno) chama a nossa atenção sobre a tangibilidade de uma das características mais relevantes dos sistemas complexos (e.g., Gomes et al., 2009), aqueles que, embora sendo dotados de múltiplas camadas de controlo, em inúmeras situações acabam por revelar concepções “tecnologizadas” do trabalho com limitações, seja em função das restrições e limites impostos pelo contexto, seja pelas dificuldades dos conceptores da tecnologia em preverem e programarem as ações que serão efetivamente necessárias a cada momento do processo de trabalho.
Na sequência das propostas de intervenção delineadas no âmbito dos grupos de formação Matriosca, que mais tarde foram validadas pelo comité de acompanhamento, o trabalho da equipa pluridisciplinar seguiu duas vias de ação: i) enunciação dos alarmes com maior incidência em situação de arranque com o intuito de analisar a possibilidade da sua inibição; ii) identificação dos alarmes que, não sendo gerados em grande quantidade, eram redundantes ou pouco informativos na fase de produção estabilizada. O resultado deste trabalho, muito do qual suportado pelo cruzamento de saberes práticos dos operadores de painel com os saberes dos elementos das engenharias, possibilitou uma reconfiguração da lógica informática que emitia os alarmes. Tratou-se, assim, de retornar aos saberes profissionais, mais propriamente às decisões/ações de uso dos trabalhadores, numa tentativa de inscrever as suas regras (desenvolvidas com a experiência de trabalho) na ferramenta tecnológica (Silva, Duarte & Vasconcelos, no prelo).
Em certos equipamentos, assistiu-se a uma diminuição em mais de 50% no número de alarmes gerados, tanto em situação de arranque (de 450 para 155) como em situações de produção estabilizada (de 34 para 17). A diminuição do número de alarmes não implicou necessariamente a sua eliminação completa, foi antes uma reordenação destes em função da fase do processo produtivo. Para além desta redução significativa, foi ainda possível definir que, ao contrário do que acontecia, os alarmes mais importantes passavam agora a surgir no topo da listagem de alarmes, facilitando o processamento de informação e a tomada de decisão dos operadores no painel.
7. Conclusões
O estudo da tecnologia na organização não deve deixar de captar a interação dinâmica entre as diferentes ações/decisões que são processadas nos três níveis analíticos do processo, na medida em que são estas escolhas (concepção/adoção/uso) que determinam a maior ou menor influência dos artefactos na estruturação do trabalho. Contudo, na análise organizacional, a compreensão desta influência deverá transcender os limites das leituras imediatas, em especial das interpretações que se bastam em projetos teóricos preconcebidos da tecnologia como variável independente das dinâmicas sociais e organizacionais. Apesar desta exterioridade da tecnologia, a sua relação com a organização não é negada no espírito das abordagens mais funcionalistas ou subjetivistas, que ora interpretam a tecnologia enquanto garante da racionalidade perfeita e absoluta ( a priori) do sistema, passando a mudança tecnológica a decretar a mudança organizacional, independentemente da ação humana; ora concebem a tecnologia e a organização enquanto produtos reificados da construção social, cuja racionalidade só é reconhecível a posteriori. Em todo caso, na pesquisa empírica, a separação entre os domínios tecnológico e organizacional é um dado adquirido, o que acaba por limitar o entendimento da tecnologia enquanto escolha organizacional que decorre de um processo de ações e decisões.
No seio do debate epistemológico produzido pela TAO, uma terceira via para o entendimento da tecnologia na organização ganha espaço na análise, mais propriamente a perspetiva da racionalidade técnica do processo. A regulação deste processo deve ser vista em constante modificação ao longo do tempo, dado que, contrariamente às posições teóricas que advogam a separação entre tecnologia e agir organizacional segundo racionalidades completas e perfeitas, a racionalidade é aqui intencional, imperfeita e temporária. Deste modo, a tecnologia não é uma realidade externa que é imposta à ação social, é antes um objeto interno à regulação e sobre o qual recaem reinterpretações em virtude da combinação de ações e decisões (concepção/adoção/uso). Logo, o desenvolvimento da tecnologia na empresa é um processo social e dinâmico, cuja inscrição é feita no domínio das ciências humanas. Toda a operação do homem com a tecnologia produz, portanto, uma história, que interessa analisar, mesmo que tal exija ao psicólogo do trabalho mais tempo, mas conduzirá certamente a resultados mais congruentes.
Com o caso da empresa química aqui relatado tentamos mostrar como este modo de ver a tecnologia se materializa na pesquisa e intervenção no terreno. A matriz procedimental do Projeto Matriosca, articulada coerentemente com a proposta pluridisciplinar da Ergonomia da Actividade, revelou-se uma grelha útil para a compreensão dos modos como uma ferramenta de automação é adotada, concebida e utilizada. Neste aspeto, reforça-se a pertinência da recorrente análise ergonómica do trabalho levada a cabo pela equipa de psicólogos do trabalho ao longo de toda a intervenção, bem como da articulação entre sessões de análise guiada em posto com sessões de formação coletiva em sala (núcleo da abordagem Matriosca). Estes foram momentos que, entres outros objetivos, possibilitaram explorar o grau de alinhamento entre as apropriações da ferramenta tecnológica por parte dos operadores de painel e as decisões de adoção e concepção. A partir deste debate foram clareados uma série de constrangimentos e riscos na interface com a tecnologia, bem como algumas apropriações inesperadas de algumas das suas funcionalidades. Mais tarde, através do trabalho cooperativo entre saberes técnicos (dos conceptores) e saberes operacionais (dos utilizadores) foi possível otimizar a lógica informática responsável pela emissão de alarmes no painel de controlo, facilitando tanto a identificação do alarme como a tomada de decisão por parte do trabalhador. Deste modo, pensamos ter sido possível conceber um “processo dialógico” (Béguin, 2008), no qual emerge um novo pólo de reinterpretação do trabalho dos diferentes sujeitos implicados: os operadores de painel interpelam a agência dos conceptores, mais propriamente os motivos pelos quais os projetistas e engenheiros adicionam cada vez mais alarmes ao sistema, fruto das normas de segurança que têm de respeitar; de igual forma, os engenheiros invocam os saberes que estão na gênese da apropriação da novidade técnica pelos trabalhadores, ou seja, as maneiras de fazer, os conhecimentos orientados, os conceitos operatórios, as competências, os valores e as “renormalizações” que nunca cessam (Schwartz & Durrive, 2007). Por outras palavras, trata-se de não só envolver os operadores na concepção da ferramenta, mas também de considerar o processo através do qual o artefacto tecnológico é transformado em instrumento (artefacto-em-uso).
O trabalho de análise e de interpretação em torno dos alarmes da automação tecnológica representa apenas uma parte de um processo mais amplo levado a cabo na empresa no âmbito do Projeto Matriosca, abordagem que, no domínio das possibilidades da pesquisa e da intervenção organizacional, tenta agregar no mesmo palco diferentes atores, cabendo ao psicólogo do trabalho a missão de organizar e mediar o debate de forma a reproduzir propostas e soluções organizacionalmente coerentes.
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Manuscrito recebido em: setembro/2017
Aceite após peritagem: novembro/2017
COMO REFERENCIAR ESTE ARTIGO?
Silva, D. & Santos, M. (2017). Entre a (pre)determinação e as possibilidades de regulação: Uma proposta metodológica para interpretar a adoção e uso de tecnologias enquanto escolhas organizacionais. Laboreal, 13(2), 9-23. http://dx.doi.org/10.15667/laborealxiii0217ds
Notas
[1] Usualmente denominadas por “CAD” (Computer Aided Design).
[2] A segmentação entre concepção, adoção e uso só é possível num plano analítico, isto é, a pesquisa perfila uma ordem lógica e não uma ordem temporal entre as ações/decisões: do ponto de vista lógico, as decisões de concepção são anteriores às de adoção, que por sua vez precedem as de uso. Tal ordenação não seria possível no tempo, pois o sujeito pode simultaneamente realizar ações/decisões interpretáveis em termos de concepção e de adoção ou de uso.
[3] Podendo também ser conhecidos por “acidentes industriais ampliados”, tais eventos de grandes dimensões relacionados com a libertação de substâncias químicas perigosas originaram já consequências graves para os trabalhadores, para as populações envolventes aos complexos industriais e para o meio ambiente, como foi demonstrado pelos acidentes de Bhopal, Toulouse, Enschede ou Seveso. No contexto europeu, a produção de legislação para o desenvolvimento de mecanismos de prevenção e de controlo dos perigos associados a estes acidentes, bem como para a limitação das consequências para a saúde humana e para o ambiente, foi despoletada pelo acidente na localidade italiana de Seveso, em 1976. Desde então, foram já produzidos três quadros diretivos tendo em vista o reforço da prevenção, o último dos quais em 2012 (Diretiva 2012/18/UE), usualmente conhecido por “Seveso III”, e transporto para a regulação portuguesa pelo Decreto-Lei nº 150/2015, de 5 de agosto.
[4] Membros do Serviço de Consultoria em Psicologia do Trabalho, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto.
[5] Para uma análise detalhada do cronograma de pesquisa e intervenção na empresa química, as ferramentas utilizadas e uma representação esquemática sobre as diferentes etapas do processo de formação participativa podem ser consultados os registos de Vasconcelos e colaboradores (2012), Vasconcelos e Silva (2012) ou Duarte e Vasconcelos (2014).