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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.18 no.2 Porto dez. 2022  Epub 30-Dez-2022

https://doi.org/10.4000/laboreal.19574 

Introdução ao dossier temático

Modos de vida e trabalho: pesquisas-intervenções do ponto de vista da atividade

Modos de vida y trabajo: investigaciones-intervenciones desde el punto de vista de la actividad

Modes de vie et travail: recherches-interventions du point de vue de l’activité

Ways of life and work: research-intervention from the activity point of view

1Departamento de Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal Fluminense (UFF) - Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis - Bloco N - Campus Gragoatá - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil - CEP: 24.210-201 myale@uol.com.br

2Universidade Federal Fluminense (UFF) - Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis - Bloco N - Campus Gragoatá - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil - CEP: 24.210-201 heldermuniz@uol.com.br

3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - R. São Francisco Xavier, 524 - Maracanã, Rio de Janeiro - RJ, Brasil - CEP 20550-013 katia.santorum@gmail.com


A cooperação sistemática - iniciada nos anos 1990 - entre docentes/pesquisadores(as) de diferentes regiões e instituições do Brasil, com distintas formações em psicologia, linguística, engenharia, sociologia e design, tem como premissa comum a articulação de estratégias de pesquisa, formação e intervenção sobre diversas situações de trabalho. Tal interação resultou, em 2004, na criação do Grupo de Trabalho (GT) “Modos de Vida e Trabalho”, vinculado à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), que tem como objetivo principal investigar, intervir e debater questões relativas ao trabalhar no cenário brasileiro. Para tanto, privilegia-se o ‘ponto de vista’ da atividade nas situações de trabalho, por meio de compromissos éticos, epistêmicos e políticos entre docentes/pesquisadores(as) e protagonistas do trabalho em análise, de modo a compreender↔transformar os modos de vida e trabalho.

Esses(as) docentes e pesquisadores(as) mobilizam, em sua maioria, a perspectiva ética e epistemológica da Ergologia (Schwartz, 2016; (Schwartz & Durrive, 2021) e/ou algumas outras abordagens acerca do trabalho, tais como a Ergonomia da Atividade (Daniellou, 2004), a Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 2012; Molinier, 2018), a Clínica da Atividade (Clot, 2013) e a Psicossociologia do Trabalho ((Luilhier, 2014). Ao mesmo tempo, buscam incorporar em várias de suas reflexões e análises a ótica das relações sociais de gênero e da divisão sexual do trabalho (Abreu et al., 2016; Kergoat, 2018).

Para efeito deste dossiê, reúnem-se aqui seis artigos procedentes de alguns dos trabalhos apresentados no XVIII Simpósio da ANPEPP, realizado em outubro de 2020, em versão online, e que teve como objetivo o compartilhamento de reflexões e desenvolvimentos de pesquisas realizadas por integrantes do grupo, tendo em vista suas potencialidades e desafios.

O contexto brasileiro, em que foram realizadas as pesquisas e intervenções, apresenta como característica marcante o aprofundamento do neoliberalismo, cujo efeito tem sido devastador sobre algumas políticas públicas construídas a partir da década de 1980. Os embates então travados pelos movimentos sociais lograram introduzir na constituição cidadã de 1988, o direito à saúde e à educação, para todos, além de direitos trabalhistas importantes. Entre os campos concretos de luta, pode-se explicitar a construção e a manutenção do Sistema Único de Saúde (SUS) e a defesa pela qualidade de instituições já existentes, como as universidades públicas federais e estaduais de qualidade e organismos de pesquisas, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Além disso, as lutas para que permanecessem sob controle público estatais como Petrobrás, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. Nos últimos seis anos - aproximadamente dois anos e meio do governo de Michel Temer, que assumiu presidência da república após o impeachment da então presidente Dilma Roussef, e, principalmente, nos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro - vários ataques foram desferidos. Como exemplos dessas investidas, a contrarreforma da previdência, que resultou, entre outras perdas, no aumento da idade limite e do tempo de contribuição requeridos para a aposentadoria; a contrarreforma trabalhista, que trouxe perda de direitos aos trabalhadores; além da política, a longo prazo, de privatização dos serviços públicos, iniciada a partir do enfraquecimento das instituições decorrente do corte de verbas ou da redução de financiamento, passando por uma campanha ideológica massiva de desqualificação do trabalho executado pelos seus servidores.

Cumpre destacar que, nessas circunstâncias, desenvolver pesquisas e intervenções implicou tanto verificar os efeitos dessas políticas neoliberais no cotidiano de trabalho como também a possibilidade de criar, com as pesquisas↔intervenções, instrumentos de ação em prol das lutas dos trabalhadores pela qualidade do seu trabalho, sua segurança e saúde (Odonne et al., 2020). A perspectiva ergológica (Schwartz & Durrive, 2021) teve um papel relevante nesses processos, na medida em que orientou um olhar que articulasse o global e o local, o macro e o micro. Essa perspectiva e as abordagens teóricas citadas anteriormente deram o suporte na construção de diálogos e parcerias com os(as) trabalhadores(as) que vivenciavam diferentes situações no serviço público ou na indústria do petróleo e gás, por exemplo, de modo a compreender as relações entre a gestão e o gerenciamento do trabalho com a saúde dos trabalhadores.

Nessa direção, abrem esta publicação dois artigos que abordam o trabalho em serviços públicos de educação. O primeiro, intitulado “Atividade de trabalho em cena: estratégias de pesquisa↔intervenção em saúde com trabalhadoras de uma escola pública”, incita a reflexão acerca das estratégias metodológicas de uma pesquisa↔intervenção, com ênfase nas relações entre saúde e trabalho, desenvolvidas em conjunto com trabalhadoras de uma escola pública de ensino fundamental, localizada em um município do estado do Rio de Janeiro.

O segundo artigo, “As estratégias coletivas de gestão da equipe responsável pela análise da lotação dos servidores técnico-administrativos de uma universidade pública federal”, como o título indica, visa compreender as estratégias coletivas de gestão das atividades desenvolvidas pela equipe responsável pela análise da lotação dos servidores técnico-administrativos recém-empossados de uma universidade federal, enfatizando os desafios que a equipe enfrenta na luta por uma gestão do trabalho que articule saúde, produtividade e qualidade em prol da universidade pública, gratuita, autônoma e de qualidade, em um contexto de disputa com forças do polo mercantil, permeadas pela lógica neoliberal.

Um outro agravante da conjuntura em pauta foi a pandemia da Covid-19, deflagrada no Brasil no final de fevereiro de 2020 em decorrência da disseminação do coronavírus (SARS-CoV2), que trouxe novos desafios e dificuldades para os(as) trabalhadores(as) em geral. Dificuldades essas terrivelmente acentuadas devido ao fato do Governo Federal, presidido por Jair Bolsonaro, adotar uma posição de negação da gravidade do problema, desestimulando ao máximo as medidas de prevenção propostas pelos cientistas da saúde pública e referendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) tais como o isolamento social e a vacinação da população. Apenas depois de ostensiva pressão política e graças à ação de vários governadores de estados, finalmente se iniciou - com irreversível atraso - a campanha de vacinação. Em decorrência desse fato, posteriormente foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no país.

Relacionando-se ao cenário relatado, também estão presentes neste dossiê quatro artigos que discorrem sobre pesquisas empreendidas durante os primeiros anos da pandemia (2020-2022) e que revelam os desafios metodológicos implicados na realização das pesquisas e intervenções, levando os(as) docentes e pesquisadores(as) do GT a desenvolverem estratégias não presenciais de modo a sustentar o ponto de vista da atividade (Daniellou, 2004).

O distanciamento físico necessário à prevenção ou à contenção da doença acentuou as desigualdades econômicas e sociais. No Brasil, os efeitos derivados da contaminação pelo coronavírus foram muito graves, levando o país a ocupar o terceiro lugar dentre os países com maior número de casos registrados, em termos absolutos, deixando o rastro de mais de seiscentas e oitenta mil mortes no país (OMS, 2022). Medidas sanitárias impostas pelos órgãos de governos estaduais, impedindo o funcionamento de determinados estabelecimentos ou a realização de algumas atividades, visando evitar as aglomerações que favorecem a disseminação do vírus, resultaram em uma transformação, a princípio temporária, no modo de realização ou na oferta de atividades ou serviços. Instauram-se o trabalho remoto, o home office e as aulas online, por exemplo.

Se, por um lado, a globalização e os avanços tecnológicos favorecem a continuidade das atividades de trabalho, por outro, surgem inquietações sobre o uso de recursos próprios e sobre os limites da infraestrutura das residências. O esmaecimento das fronteiras entre trabalho, descanso e lazer também precisa ser investigado, nesse novo cenário. Além do mais, com a crise sanitária, novas competências foram requeridas dos(as) pesquisadores(as) e trabalhadores(as) em geral, convocados(as) a se reinventarem no uso das tecnologias de informação e comunicação, ensejando alto investimento físico, psíquico e cognitivo. Ademais, chama atenção a necessidade de dirigir o olhar para as consequências do isolamento social e do receio do desemprego que ronda grande parte das categorias profissionais.

Ainda, não se pode deixar de tecer comentários sobre aqueles(as) trabalhadores(as) que, em virtude da natureza da sua atividade profissional ou da sua necessidade de subsistência, permaneceram desempenhando as suas funções, muitas vezes na linha de frente do combate à doença ou nas chamadas atividades essenciais. Assim, além dos impactos econômicos e sociais, há também danos psíquicos em consequência da ameça de desemprego, da escassez de recurso para manutenção pessoal ou familiar ou do medo de contrair a doença, que precisam ser examinados. Este dossiê convoca os leitores a um olhar acurado sobre muitos desses aspectos.

Nessa direção, “Precarização e intensificação do trabalho em situações de alto risco: o caso da perfuração de poços de petróleo”, o terceiro artigo desta publicação, evidencia e analisa a exposição dos trabalhadores que atuam na exploração e na produção petrolífera a riscos à sua saúde devido à precarização e à intensificação do trabalho, agravados no período da pandemia.

Em “Apoio psicológico online, clínicas do trabalho e ergopsicologia: reflexões a partir de uma experiência de estágio”, questiona-se a possibilidade de articular práticas de apoio psicológico breve online às perspectivas de uma Ergopsicologia e das abordagens do trabalho que têm como premissa o ponto de vista da atividade. As experiências de apoio psicológico breve online para trabalhadores de segurança pública e da assistência social, ofertadas por meio de uma proposta de estágio curricular em psicologia em uma universidade pública são, portanto, alvo de análise no quarto artigo aqui registrado.

Denominado “Vamos escrever sobre o que a gente faz? As vivências coletivas de cuidar da saúde mental dos trabalhadores em uma instituição pública federal durante a pandemia da Covid-19”, o quinto artigo apresenta pistas importantes sobre o lugar de destaque assumido pelo campo da Saúde Mental durante a pandemia, colocando o foco na atuação da equipe de psicólogos da coordenação de saúde do trabalhador em uma instituição pública federal de referência em saúde. O objetivo desse estudo é produzir um diálogo entre a experiência de trabalho dessa equipe e os conceitos oferecidos pela perspectiva ergológica e pela psicodinâmica do trabalho, buscando ampliar tanto a compreensão dos conceitos como da própria experiência de cuidado em saúde mental no contexto da emergência sanitária da Covid-19.

Concluindo o conjunto de textos que compõem este dossiê, o sexto artigo “Uma análise sobre a Saúde de Trabalhadores que estão no enfrentamento à pandemia” apresenta elementos de uma pesquisa realizada no nordeste do país. Seu objetivo consiste em analisar a relação entre o trabalho e a saúde de trabalhadores(as) de diversas categorias profissionais da saúde que atuaram na linha de frente durante a pandemia. Esse estudo utilizou uma abordagem mista quanti-quali, considerando as condições, a organização do trabalho, os treinamentos e os riscos do trabalho, além dos sentidos atribuídos ao trabalhar nesse contexto.

Por fim, cabe mencionar uma dinâmica vivida também pelos(as) integrantes do GT em suas práticas de pesquisa e intervenção, algumas delas registradas neste dossiê, ainda que tal tema necessite de um tempo de distanciamento e de amadurecimento para gerar reflexões apuradas. Tanto o trabalho do grupo quanto os seus modos de vida enquanto pesquisadores(as), extensionistas e docentes foram atravessados pelos efeitos do contexto referido acima, do avanço do neoliberalismo, principalmente a partir das eleições de 2018, bem como pelo impacto da pandemia de Covid-19. Inevitavelmente envolvidos(as) em uma duplicação da atividade, que requer conciliar a investigação e ao mesmo tempo fazer frente a esse contexto, demandou desses(as) pesquisadores(as) se reinventarem, recriando outros modos de vida junto aos(às) parceiros(as) protagonistas das atividades de trabalho com os(as) quais desenvolviam pesquisas e intervenções. Nessa dinâmica, a necessidade de alto investimento em todos os planos nos campos dizimados da existência permitiu-lhes constatar, com a ajuda do poeta Carlos Drummond de (Andrade, 2010), que “onde não há jardins, as flores brotam de um secreto investimento em formas improváveis”.

Referências Bibliográficas

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