1. Introdução
A busca por postos de trabalho é influenciada por marcadores sociais de diferenças que podem ampliar ou cercear as oportunidades. Tais marcadores, como gênero, sexualidade, idade, raça, etnia, podem reconfigurar hierarquias quando a procura por trabalho ocorre no exterior, revelando impactos ainda mais expressivos do que os vivenciados no país de origem, somado ao status legal (Andrijasevic, Rhodes, & Yu, 2019; Castles, 2010; Fraga & Rocha-de-Oliveira, 2020; Rodrigues, Guest, & Budjanovcanin, 2016). Mulheres imigrantes, ainda que altamente qualificadas em âmbito educacional e em suas competências profissionais, costumam encontrar barreiras para o ingresso em ocupações equivalentes às suas formações nos países de destino (Riaño, 2016). Essa desvantagem pode ser explicada pela combinação de duas características: origem geográfica e gênero (Ballarino & Panichella, 2017; Donato, Pya, & Jacobs, 2014).
Para além das limitações com o idioma e o estereótipo cultural, conforme a região e o contexto de origem, mulheres são mais vulneráveis a assédios e a diferentes formas de violência nos espaços organizacionais e sociais. Nesse sentido, é relevante analisar as vivências de mulheres imigrantes, pois as possibilidades de inserção e de permanência no mercado de trabalho se apresentam dependentes de contextos sócio-históricos. Mulheres encontram, ainda, obstáculos para a mobilidade em razão das restrições impostas por políticas migratórias ou legislações nacionais que inibem ou proíbem que mulheres trabalhem em determinadas profissões (Fraga, Antunes, & Rocha-de-Oliveira, 2020; Wasserman & Frenkel, 2015). As limitações sociais e geográficas são elementos que devem ser considerados quando se analisa a feminização das migrações, inevitavelmente trazendo outros marcadores sociais de diferença interseccionados Fraga & Rocha-de-Oliveira, 2020; Oltramari, Bitencourt, Fraga, & Tonelli, 2020; Scherer & Prestes, 2021).
No caso do fluxo migratório do Brasil para o exterior, constatou-se que mulheres se deslocam, sobretudo, para trabalhar em atividades reprodutivas, como empregadas domésticas, faxineiras, babás, cuidadoras de pessoas idosas e doentes, e na indústria do sexo (Carpenedo & Nardi, 2013), bem como naquelas com salários baixos, tais como o comércio e outros serviços, como garçonetes, dançarinas, modelos, atendentes de supermercado e de loja de roupas. Mesmo países que compartilham o idioma, como ocorre com Brasil e Portugal, as diferenças culturais são significativas, sendo que o imaginário colonial prevalece no olhar à estrangeira: seu corpo, suas roupas e suas expressões são tomadas de modo hipersexualizado (Gomes, 2018). Adicionalmente, percebe-se que as últimas ondas migratórias em Portugal são majoritariamente formadas por mulheres (Fernandes, Peixoto, & Oltramari, 2021; (Peixoto, 2018). Houve ondas migratórias estudantis (Iorio, 2018), de mulheres (França, 2012; (França; Padilla, 2018) e de diferentes classes (Oltramari, Scherer, & Fraga, 2020) Imigrantes do Brasil são o principal grupo estrangeiro em Portugal, situando-se espacialmente em diferentes lugares, mas com maiores comunidades na capital, Lisboa, seguido da cidade do Porto, Setúbal, Braga e Faro (Fernandes, Peixoto, & Oltramari, 2021).
Somado a esse contexto pré-existente, a crise generalizada - social, econômica, política e sanitária - consequente do surto de COVID-19 produziu implicações adicionais para a vida e o trabalho de mulheres imigrantes. Para enfrentar a crise, medidas como o fechamento de estabelecimentos comerciais, demissões, redução salarial, teletrabalho, e flexibilização de contratos implicam mudanças aceleradas das relações de trabalho (RT), indicando maior precarização das condições de trabalho, sobretudo nos setores reconhecidamente feminizados. É o caso do trabalho doméstico e de outros que, comumente, empregam imigrantes, tais como comércio, turismo, estética e saúde.
Nesse sentido, esta pesquisa tem o objetivo de levantar as influências da pandemia de COVID-19 na vivência da imigração e nas relações de trabalho para imigrantes brasileiras em Portugal. A seguir, encontra-se a revisão de literatura que privilegia a discussão acerca da situação das mulheres migrantes e a pandemia do coronavírus (COVID-19). Na sequência, são apresentados os aspectos metodológicos e, após, os resultados e análises das entrevistas biográficas. Por fim, foram elaboradas considerações finais e sugestões de encaminhamentos para futuras pesquisas.
2. Revisão de literatura
2.1. Migrações, mulheres e a pandemia do novo coronavírus (COVID-19)
No âmbito das mobilidades, as migrações internacionais se encontram, de todo modo, atreladas às consequências da pandemia de COVID-19. Diversas pessoas que pensavam em mudar de país, seja para deixar o de origem ou para retornar, já não podem fazê-lo (Dumont, 2020). Comparados com outras categorias de migrantes internacionais, como estudantes internacionais, é visível que trabalhadores e trabalhadoras migrantes encontram mais barreiras no acesso aos serviços de saúde nos países anfitriões (por exemplo, seguro de saúde inadequado), principalmente trabalhadores e trabalhadoras domésticos/as (Hargreaves et al., 2019).
Essa situação se agravou durante a pandemia do COVID-19 devido à perda de renda e às características específicas dessa atividade laboral, por exemplo. Muitos/as trabalhadores e trabalhadoras domésticos/as se encontram em quarentena com as famílias para as quais trabalham e nem sempre conseguem seguir as medidas de isolamento e segurança recomendadas (Liem et al., 2020).
Historicamente, já era recorrente, no contexto laboral de países de imigração, o cenário de um mercado de trabalho destinado para migrantes e refugiados, com características de flexibilização, direitos diminuídos, precarização e desvalorização social (Scherer & Grisci, 2022). A crise econômica causada pelo atual surto de COVID-19 intensificou as dificuldades relativas ao trabalho de imigrantes e trouxe implicações particulares para as mulheres, que se fazem presentes durante a crise e serão relevantes na recuperação subsequente. Comparada às recessões “regulares”, que comumente afetam mais o emprego dos homens do que o das mulheres, as medidas de distanciamento social têm um grande impacto nos setores com alta participação feminina. Além disso, o fechamento de escolas e creches aumentou significativamente as necessidades de cuidados infantis, o que tem um impacto particularmente grande para as mães que trabalham (Alon et al., 2020).
Há de se considerar que a migração internacional está desacelerada para Portugal, considerando o contexto pandêmico. O estudo de Fernandes, Peixoto, e Oltramari 2021) objetivou descrever algumas notas da migração brasileira recente em Portugal. Para tanto, os autores e autora buscaram mobilizar e interpretar diversas fontes estatísticas que permitissem analisar o fluxo mais recente de brasileiros para Portugal. Observaram que o crescimento da imigração brasileira em Portugal, nos últimos anos, foi expressivo: as concessões de títulos legais aumentaram de 5.716, em 2015, para 28.210, em 2018. O número de mulheres foi sempre superior ao de homens - tendência já habitual na imigração brasileira em Portugal. Em 2018, as mulheres totalizavam 52,4% dos fluxos ou 14.777 mulheres. Dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras ((SEF, 2020) também referem que, entre 2009 e 2019, o percentual de mulheres estrangeiras residentes em Portugal cresceu 34%. Dentre as nacionalidades, as mais recorrentes, além do Brasil, são Cabo Verde, Ucrânia, Reino Unido e Romênia.
Especificamente sobre a migração brasileira, a quarta onda migratória se estende de 2015 até 2020, quando é abruptamente interrompida pela pandemia de COVID-19 (Fernandes, Peixoto, & Oltramari, 2021; (Oltramari, Scherer, & Fraga, 2020). Esse fluxo de imigrantes é considerado particular, pois é, ao mesmo tempo, um dos mais volumosos e diversificados quanto ao perfil de imigrantes, e também o de menor duração (Fernandes, Peixoto, & Oltramari, 2021). A quarta onda, já finalizada, apresenta diferentes grupos de trabalhadores no que tange à inserção profissional: 1) qualificados que atuam em sua área de formação (jovens com cidadania europeias); 2) qualificados ou com baixa qualificação e under-employed (desqualificados no destino); 3) estudantes altamente qualificados e under-employed e 4) altamente qualificados, que atuam em sua área de formação e, em geral, têm mais de 45 anos e pertenciam a classes sociais de alta renda no Brasil (Oltramari, Scherer, & Fraga, 2020). As contribuições preliminares desses estudos aprofundam as análises sobre a quarta onda migratória brasileira em Portugal (Fernandes, Peixoto, & Oltramari, 2021) e apontam para a relevância de abordagens interseccionais no campo das migrações, mais especificamente, gênero, classe e raça (Oltramari, Scherer, & Fraga, 2020). Adicionalmente, para além da perspectiva interseccional (Fraga & Rocha-de-Oliveira, 2020; Scherer & Prestes, 2021; Oltramari et al., 2020), é importante problematizar a inserção laboral sob o ponto de vista jurisdicional das profissões (Abbott, 1988).
Na esteira de debates sobre o imaginário colonial destaca-se a reinterpretação e a mobilização do estigma da sensualidade por mulheres brasileiras. (Malheiros & Padilla, 2015), em estudo com empreendedoras do ramo da beleza, observam que elas ressignificam a imagem estigmatizada, de modo a torná-la um recurso empresarial de valor agregado. Além dos discursos institucionais sobre as mulheres brasileiras e africanas (França, 2012; Gomes, 2018; Pontes, 2004), acredita-se, nesse estudo, tal como Gomes, 2018, que os papéis sociais construídos para homens e mulheres impactam, indubitavelmente, na vida de imigrantes. Para (França, 2012, há duas formas de inserção laboral no mercado de trabalho português, considerando as mulheres brasileiras: a) uma parte das mulheres se inserem abaixo das suas qualificações laborais e, após algum tempo, conseguem melhorar nessa inserção; contudo, nunca alcançam os mesmos níveis que tinham no Brasil; e b) há também mulheres, mesmo que em número menor, que conseguem inserção laboral qualificada, como empresárias, médicas, dentistas, professoras, pesquisadoras, dentre outras profissões. Afora a preocupação por essa dificuldade de inserção, a autora aponta que a mídia portuguesa também vem reproduzindo os padrões distorcidos das brasileiras, seguindo a manutenção do imaginário colonial estereotipado (França, 2012; Gomes, 2018).
Há, contudo, centros de apoio a imigrantes que surgem para fazer frente ao combate a esses estereótipos, como a sensualidade aflorada, a hipersexualização e o gingado tropical. (Gomes 2018) já apontava duas associações relevantes na cidade de Lisboa na defesa dos direitos de migrantes: a Casa do Brasil de Lisboa e a Associação Lusofonia Cultura e Cidadania. Fortalecem-se, também, as redes de acolhimento e afeto (Dias, 2007; Lencioni, 2010).
3. Aspectos metodológicos
Este estudo está constituídos por uma abordagem qualitativa, entrevistas biográficas e análise de narrativas. A pesquisa narrativa, segundo Creswell (2014), consiste em coletar histórias de pessoas e contar suas experiências atribuindo significado a estas. Para a coleta de relatos, esta pesquisa contou com entrevistas biográficas com 27 mulheres brasileiras residentes em Portugal a partir de 2018, isto é, há cerca três anos ou menos, no momento de realização das entrevistas, contempladas na chamada quarta onda migratória (Fernandes et al., 2021; Oltramari et al., 2020).
Os relatos biográficos compreendem “uma forma de estudo narrativo no qual o pesquisador escreve e registra as experiências da vida de outra pessoa” (Creswell, 2014, p. 69); partindo dessa perspectiva, os materiais foram coletados em encontros online e presenciais, ao longo do ano de 2020 e parte do ano de 2021. Nos momentos presenciais, levou-se em conta as medidas restritivas sanitárias vigentes para o período da pandemia. A observação participante de uma das autoras também contribuiu para a coleta de informações, em especial as reuniões na Casa do Brasil de Lisboa, na Associação Diáspora sem Fronteiras, na Plataforma Geni, e em sessões informativas da Rede sem Fronteiras. Foi por meio da inserção nesses espaços que a primeira autora se aproximou de interessadas em participar da pesquisa. A partir delas, utilizou-se o recurso da bola de neve (Handcock & Gile, 2011), em que uma pessoa indica outra, permitindo, então, o contato facilitado com as demais participantes. Ressalta-se que todas receberam nomes fictícios para proteger suas identidades.
Foram elencados alguns tópicos guia para a coleta biográfica, divididos em duas sessões. Na primeira, as participantes abordaram vivências anteriores à pandemia: relato da trajetória de vida; caminhos profissionais; motivo da migração; chegada no país de destino; facilidades e dificuldades de acessos. Na segunda, foram exploradas as vivências após o início da pandemia do novo coronavírus (COVID-19): trabalho e isolamento social; mudanças no trabalho; mudanças na vida pessoal e familiar; aspectos emocionais e financeiros; impactos relativos à situação específica de migração (como, por exemplo, restrição da sua mobilidade ou de alguém da família) no país de origem, de destino ou entre fronteiras internacionais; preocupações com a saúde; e reflexões sobre as dificuldades e insegurança da vida distante do lugar de nascimento em um contexto de crise sanitária mundial.
A análise narrativa seguiu as orientações de (Creswell 2014), que indica a prática de “reestoriar” as histórias das participantes, organizando uma estrutura a partir de elementos-chave do estudo em questão, que podem vir a ser os temas que emergem nas histórias em consonância com o referencial teórico. Esta pesquisa contou com dois eixos centrais, definidos a priori: a) as vivências das brasileiras imigrantes, destacando os motivos da imigração, as condições e a relação com o trabalho; e b) a análise das mudanças no contexto do trabalho e os desafios pessoais e familiares após a instauração da crise sanitária mundial.
4. Apresentação e análise dos resultados
4.1. Síntese das vivências de mulheres imigrantes: motivos da migração, condições e relação com o trabalho
As imigrantes brasileiras participantes da pesquisa têm faixa etária de 25 a 65 anos. Em relação à idade, cor, sexualidade e origem geográfica, 25 são brancas e 2 são negras; 26 heterossexuais e 1 é lésbica, e residiam em 8 estados brasileiros distintos - o que apresenta uma importante heterogeneidade no que se refere à espacialidade (Santos, 2014); a saber, os locais são: Bahia, Ceará, Pará, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Corroborando trabalhos anteriores sobre a migração de mulheres brasileiras (Oltramari et al., 2020), as razões para sair do Brasil são, em geral, associadas a situações pessoais e/ou do contexto coletivo, tais como: demissão, conflitos familiares, (re)começar a vida após tratamento de saúde, violência doméstica, violência urbana e instabilidade política. Há também as que migraram para estudar (Iorio, 2018), trabalhar (Malheiros & Padilla, 2015) e acompanhar os maridos na carreira (Donato, Pya, & Jacobs, 2014).
A partir dessas evidências, elaborou-se o Quadro 1, apresentado a seguir, contendo uma síntese de informações sobre as entrevistadas com destaque para os motivos da migração e os aspectos das RT no Brasil e em Portugal.
As mudanças na carreira também fazem parte das decisões relativas a emigrar (Wehrle, Kira, & Klehe, 2019), tal como relata Agata, mulher jovem (30 anos), que trabalhava em uma empresa como advogada no Brasil, mas cansou da violência e da falta de perspectiva do país. Atualmente, deseja, mesmo com a pandemia, ficar em Portugal e investir na área de coaching de carreiras para brasileiros em Portugal, em parceria com seu chefe, que é português. Com a possibilidade de atuar remotamente, por meio de plataformas digitais, a permeabilidade das carreiras foi facilitada. Essa nova forma de organização do trabalho também favorece a transição de um campo profissional para outro.
A concomitância do trabalho com os estudos é uma realidade enfrentada pelas participantes da pesquisa. Trabalhar também diz respeito a arcar com o alto custo para a validação de diploma, que, atualmente, ronda os 600 euros, sem a garantia de aprovação pela Instituição de Ensino Superior (IES) contratada. Conseguir a equivalência é, para muitas das participantes, a esperança de serem efetivadas, via contrato formal e sem tempo determinado, em suas ocupações de origem. Se na partida do Brasil a maioria se identifica com sua formação, na chegada ao país de destino essa identidade pode se perder. Nesse aspecto, é interessante pontuar as considerações de (Abbott 1988) sobre a jurisdição entre as profissões, ou seja, a proteção que certo grupo profissional estabelece, com base em status e conhecimento especializado, de modo que cria regras para impedir a inserção de outras pessoas ou grupos em determinado campo profissional.
Tal situação remete ao relato de Anita, que é Fisioterapeuta e formada em Educação Física no Brasil, com nacionalidade portuguesa. O trabalho em restaurantes por um ano foi necessário para conseguir o dinheiro suficiente e pagar a equivalência, segundo ela: “na área da saúde é difícil trabalhar em Portugal sem equivaler diploma. Durante a pandemia, fiquei sem dinheiro e trabalho. Faço drenagem linfática e poucos pacientes quiseram manter meu trabalho”. A partir das dificuldades enfrentadas, ela decidiu voltar para o Rio de Janeiro, sua cidade natal no Brasil.
Cabe aqui citar também a rede de apoio mútuo que vem se apresentando em Portugal, para fazer frente aos movimentos que se apresentam xenofóbicos e racistas, tais como os grupos: Calcinhas em Lisboa, que conta com página de discussão na rede social Facebook; e a Casa do Brasil em Lisboa (CBL). A CBL, recentemente, lançou o blog “Emergência Covid 19”, que contém informações e atualizações acerca de saúde, moradia e mercado de trabalho. Além disso, abriga projetos como “Brasileiras não se calam”, na rede social Instagram, e algumas novas associações de imigrantes, tal como a “Diáspora sem Fronteiras”. A rede de apoio e a coletividade nos espaços de trabalho tornam-se imprescindíveis para a saúde mental dessas mulheres, tal como já dizia (Dejours, 2004), trabalhar é viver junto. Nesse sentido, fortalecem a cooperação, o senso de pertencimento e os laços de solidariedade, construindo estratégias de defesa coletivas, que revelam caminhos possíveis para enfrentar violências, assédios e outras formas de opressão relativas a gênero, classe e raça/etnia.
Ademais, dificuldades em negociar valores com locadores de residência foram relatadas. O fato de serem brasileiras, revelam algumas, dificulta a negociação (Oltramari et al., 2020). Destaca-se, ainda, que não foram incomuns relatos de assédio durante essas situações de negociação de moradia. As barreiras de assédio moral e sexual no trabalho, na negociação e na procura de moradia antecedem a inserção profissional e se caracterizam especialmente pelo histórico de colonialidades que perduram até os dias atuais.
4.2. Influências da COVID-19: mudanças no contexto do trabalho, desafios pessoais e familiares diante das incertezas ocasionados pela crise mundial
Diante da realidade da pandemia da COVID-19, em meados de março de 2020, o governo português adotou medidas severas e importantes para a prevenção da disseminação do coronavírus, como o lockdown. Muitas organizações pausaram ou descontinuaram suas atividades, algumas adotaram medidas de trabalho remoto. No geral, as pessoas se viram por, pelo menos, três meses, em isolamento social completo. Tal situação pandêmica trouxe significativos reflexos tanto para as configurações de trabalho das imigrantes brasileiras em Portugal, como para as suas questões pessoais e familiares. O Quadro, a seguir, ilustra o mapeamento das situações de trabalho modificadas pela pandemia das imigrantes brasileiras entrevistadas.
A partir do Quadro 2, é possível notar as diferentes configurações de trabalho das imigrantes brasileiras. É comum ter mais de uma fonte de renda, combinando emprego, “bicos” (trabalhos ocasionais, geralmente sem relação com a profissão principal), estudo, auxílio financeiro de cônjuge ou familiares e renda proveniente do Brasil (como aposentadoria ou aluguéis) - o que se caracteriza como um cenário do mercado de trabalho para imigrantes (Scherer & Grisci, 2022). Com a pandemia, a maioria das participantes sentiu os impactos no seu trabalho, tais como: (i) a intensificação de horas no local de trabalho; (ii) o início ou a intensificação de trabalho online/home office, ou teletrabalho vinculado a empresas ou de forma autônoma por plataformas digitais ou rede de contatos; (iii) a demissão que impulsionou a busca por novas atividades - também de forma autônoma, online ou fazendo comida para fora, por exemplo; ou até mesmo, para aquelas que não tinham outras fontes de recursos financeiros, a demissão acarretou no retorno ao Brasil associado ao sentimento de fracasso; (iv) o desemprego com dificuldades e restrições de oportunidades ainda maiores, sendo somente possível se manter em Portugal com o apoio financeiro de familiares.
Antigos problemas enfrentados por imigrantes, como a xenofobia, foram intensificados durante a pandemia. Suelen relatou que sentiu que a família para a qual trabalha se tornou mais xenofóbica durante a pandemia:
“Devo levar de casa a comida, pois não posso comer a deles no almoço ou jantar. A patroa implica com a minha cor de pele e com o meu cabelo. Ela não puxa a descarga do banheiro quando ela usa, sempre deixa para eu fazer. Além disso, como ela (a patroa) se sente muito sozinha durante a pandemia, sem amigos, ela me pede para levar ela para viajar, mas não me paga hora-extra. Eu até ganho bem, mas não quero mais ficar com ela”.
A narrativa de Suelen permite inferir que, em linha com Liem et al. (2020), devido à necessidade de acompanhar a patroa, ela fica mais exposta em espaços coletivos que não seguem protocolos da COVID. O confinamento com famílias portuguesas, no caso de trabalhos domésticos, intensificou as relações de colonialidade simbolizadas por dominação e poder (Castles, 2010; Gomes, 2018; Scherer & Prestes, 2021), que ainda persistem até hoje.
Novas questões relativas à saúde mental emergiram em função da pandemia. Os impactos emocionais dialogam com a ansiedade e o medo de perder o emprego, além do receio de ficar muito mais tempo na situação de desemprego, pois, devido à instabilidade do contexto sanitário e, consequentemente, político, essa ameaça está muito mais presente, conforme relata Ivana:
“(...) toda a semana medo, medo de ficar desempregada, missões de vida por água abaixo. Para meu marido não teve impacto financeiro. Ele foi colocado como subcontratado, mas, agora, ele está com contrato formal. Para a área dele (tecnologia da informação) tem muitas vagas; já para mim, acho que a COVID diminuiu um pouco, para essa área ambiental”.
O medo do desemprego associado à pandemia também estanca a possibilidade de projetos pessoais, como rever a família: “compramos as passagens e estamos com medo de ir ao Brasil. Medo de ficar preso no Brasil e a empresa demitir meu marido. Sobre nossos planos para o futuro: tento não ficar com medo”, conta Ivana. Também emergiram narrativas de ansiedade e medo por não conseguir realizar projetos que acompanhavam o imaginário da migração, como se refere Ivana, cuja poupança para investir nos estudos teve que ser colocada como reserva por estar desempregada: “E também a própria questão do plano do Mestrado, balança, vai que eu precise desse dinheiro, está difícil investir no futuro”. Situação semelhante ocorreu com Margot, conforme relata:
“Passamos dois anos planejando vir para cá. Eu tinha decidido que não iria mais trabalhar na área de psicologia. Pensei em abrir um negócio próprio, uma cervejaria pequena de cerveja artesanal. Vendemos tudo lá, casa, carro. Guardamos o dinheiro e queríamos iniciar o negócio aqui. Chegamos em fevereiro de 2020. Aí teve a pandemia. O real disparou, tudo fechou. Dinheiro parado, sem renda”.
Margot, que migrou junto com o marido e os dois filhos, teve que recuar no seu planejamento e pensar em possibilidades:
“Vou acabar trabalhando com psicologia de volta. Em plataforma online de atendimento psicológico (...) me parece também que as relações aqui de trabalho são muito do fulano que conhece o fulano e eu não conheço ninguém. Vou ter que cavar sozinha. Aí também pensei no Doutorado”.
Nota-se que, por ser imigrante, a rede de contatos é mais limitada e a tecnologia, portanto, a permite recorrer à sua profissão de origem via atendimento online, mantendo os pacientes do Brasil mesmo estando em Portugal. Percebe-se que, na imigração, não somente as mercadorias são desterritorializadas (Haesbaert, 2004), mas sobretudo o exercício do trabalho. É preciso lançar mão de estratégias distintas das do país de origem para conseguir se reterritorializar enquanto profissional estando em um espaço-tempo até então desconhecido.
O trabalho em casa, seja por atendimento online das autônomas ou home office, possibilitado pelo vínculo de emprego, embora sejam situações de privilégio em relação àquelas que perderam emprego ou trabalho na pandemia, também trazem consequências relativas à saúde mental, sobremaneira, para as mulheres com filhos. A demanda dos cuidados com os filhos também foi motivo de cansaço e, por vezes, adoecimento (Carpenedo & Nardi, 2013). Margot relata que, inicialmente, suas filhas iniciaram os estudos em Portugal, mas não houve tempo de adaptação. Como as aulas passaram a ser online, as crianças voltaram para a escola do Brasil tendo que readaptar sua rotina ao fuso-horário do país de origem, Margot relata que: “As meninas começaram o ano sem conhecer colegas. Aí não levaram muito a sério o ano letivo de aula. Aí a vida das meninas continuou no Brasil. Acordava às 4 da tarde, dormiam às 7 da manhã”.
Outro aspecto emocional evidenciado foi o medo constante de infecção por coronavírus. O temor estava relacionado sobretudo ao adoecer e precisar do sistema nacional de saúde de um país que não é o seu, já que as mulheres entrevistadas têm ciência que, tal como aponta Hargreaves et al. (2019), há mais barreiras de acesso à saúde para imigrantes como elas. A preocupação se manifesta de forma mais evidente quando as imigrantes dividem quarto ou casa com outras pessoas, que não familiares. O fato de morarem em coletivos acentua o problema da contaminação em escala, em especial porque muitos dos e das colegas de apartamento trabalhavam em construções, entrega de comida, limpeza e em atividades correlatas aos cuidados da casa e da saúde. Tais atividades, que exigem a presença física no trabalho e, consequentemente, propiciam uma maior exposição ao vírus, são típicas de imigrantes que não conseguem colocação na sua área.
A pandemia também deixou as fronteiras mais rígidas, dificultando ou impedindo entradas e saídas (Dumont, 2020). Heloisa embarcou com destino a Portugal em abril de 2020, para reintegração familiar, já que seu companheiro já estava no país a trabalho, na área de Tecnologia da Informação. Ela foi presa, ficou três dias retida dentro do aeroporto e quase foi deportada:
“(...) fiquei três dias. O único contato que tive com meu companheiro foram os cinco minutos de ligação que o [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras] SEF permitiu. Depois disso, fiquei esperando para ver se era deportada, ou aceitavam meus documentos de reintegração familiar. Depois, fiquei sabendo que os mesmos policiais que mataram o ucraniano [imigrante assassinado por espancamento no Centro de Instalação Temporária, popularmente conhecida como ‘salinha da imigração’], foram os mesmos que guardavam a nossa cela. Até hoje, quando vejo a polícia, aqui em Lisboa, sinto medo e pânico”.
A situação vivenciada por Heloisa ilustra o tipo de tratamento que muitos imigrantes recebem nas zonas de migração, mesmo em países onde há leis que garantem direitos básicos. Com a pandemia, os procedimentos se tornaram ainda mais rígidos e como no caso de Heloisa, mesmo depois de receber permissão de entrada no país, permanecem os prejuízos relativos à saúde mental.
O enrijecimento das fronteiras também incita sentimentos de solidão devido à perda de familiares decorrentes de adoecimento pela COVID-19, situação essa relatada por algumas mulheres. Helvia relata que sua avó faleceu enquanto Helvia estava em Portugal e ela não pôde voltar ao Brasil para a despedida: “Foi claustrofóbico, no lockdown, minha avó faleceu de COVID no Brasil, tive muitos sentimentos de solidão, estava muito preocupada com minha família no Brasil, mais com eles do que comigo. Meus pais viriam em setembro me visitar e cancelamos”. Dos sentimentos relativos às adversidades vivenciadas na pandemia, Helvia compreende que há referências de um contexto histórico colonial (Castles, 2010), que impedem ou dificultam o imigrante brasileiro em Portugal a viver a vida em sua plenitude, tal como relata: “Ser migrante é ser corajosa, lidar com sacrifícios diários e de resiliência, porque você não está no seu país, nem com seu povo, e você tem que se esforçar para estar com aquele povo, e ser reconhecido como cidadão”. Mesmo com documentos legalizados e direitos adquiridos, ainda permanecem barreiras sociais e burocráticas, assim como a busca por um espaço de reconhecimento.
5. Considerações finais
O objetivo deste artigo foi levantar as influências da pandemia de COVID-19 na vivência da imigração e nas relações de trabalho (RT) para imigrantes brasileiras em Portugal. Em que pese ser imigrante, há de se reconhecer que essa situação por si só já se configura como desvantagem: são várias as barreiras simbólicas e concretas que entram em jogo: cultural, linguística, gênero, cor de pele, origem, regionalidades (Ballarino & Panichella, 2017; Donato, Pya, & Jacobs, 2014; Riaño, 2016). Tais marcadores sociais de diferença (Fraga & Rocha-de-Oliveira, 2018, 2020; Oltramari et al., 2020; Scherer & Prestes, 2021) definem, limitam e constrangem as e os imigrantes em seus planos, projetos e sonhos migratórios (Dumont, 2020).
Somam-se a essas barreiras a situação de crise sanitária decorrente da pandemia de COVID-19 enfrentada pelas participantes da pesquisa em um país distante ao de origem, tanto em termos geográficos como culturais. A limitação de ir e vir, a restrição para o trabalho, e as preocupações decorrentes da própria doença são fatores que intensificaram e dificultaram as vivências das mulheres imigrantes.
Para analisar este contexto, primeiramente, buscou-se sobre as vivências das 27 brasileiras imigrantes prévias à migração, destacando motivos e condições da imigração, bem como relação com o trabalho. Como já antecipado pela literatura, verificou-se que ser imigrante não é uma sonoridade uníssona. Algumas decidiram migrar por motivo de demissão, violência urbana e doméstica, conflitos familiares, (re)começar a vida após tratamento de saúde. Outras, porém, migraram para estudar (Iorio, 2018), trabalhar (Malheiros & Padilla, 2015) e acompanhar os maridos na carreira (Donato, Pya, & Jacobs, 2014). As participantes elaboram narrativas, individual e coletivamente, sobre os preconceitos e as dificuldades socioculturais, legais e financeiras para buscar moradia, validação de diploma e inserção no mercado de trabalho. Pôde ser notado que, em muitos casos, buscam atividades inferiores à sua qualificação, a depender da rede de brasileiros e instituições de apoio a imigrantes. Por serem mulheres, também emergiram narrativas sobre discriminação, misoginia e casos de assédio moral e sexual, corroborando com o que França (2012), Carpenedo e Nardi (2013) e Gomes (2018) apontavam sobre o estigma das mulheres brasileiras e os requintes de crueldade que reverberam até hoje, fruto das colonialidades.
A partir desse panorama, foi possível analisar as mudanças no contexto do trabalho e os desafios pessoais e familiares após a instauração da crise sanitária mundial. Os resultados indicam que as principais influências da COVID-19 no âmbito das relações de trabalho para as imigrantes brasileiras foram: demissão e busca de novas atividades remuneradas; necessidade de distintas fontes de renda; intensificação de horas de trabalho, sobretudo nos casos de home office; teletrabalho vinculado a empresas de forma autônoma, plataformas digitais ou rede de contato; e continuidade em Portugal dependente do apoio financeiro e emocional de familiares.
Também se destacam nas narrativas as mudanças na vida pessoal e familiar, os aspectos emocionais e os impactos financeiros relativos à situação específica de migração, tal como a restrição da sua mobilidade ou de algum familiar no país de migração, de origem ou entre fronteiras internacionais; a prioridade em atendimento de saúde e a reflexão sobre estar fora do seu país em um momento de crise sanitária mundial. A respeito disso, cabe salientar, que a solidão de uma imigrante parece uma constante possivelmente agravada pela pandemia. Nas situações em que a imigrante se sente solitária, principalmente pela distância da família, as redes (Lencioni, 2010; Dias, 2007) e os capitais sociais mobilizam formas espontâneas de apoio e principalmente de afeto ( Oltramari, Scherer, & Fraga, 2020).
Ressalta-se ainda a tecnologia e sua característica de atravessar fronteiras como amenizadora dos problemas advindos da pandemia. O trabalho em home office e o atendimento a clientes por videoconferência foram alternativas que mantiveram as imigrantes no mercado de trabalho, inclusive com o retorno da clientela que estava no Brasil. A tecnologia também permitiu manter laços com o Brasil, como o caso dos filhos de uma imigrante que, mesmo estando em Portugal, continuaram a frequentar, de forma online, a escola no Brasil.
Por fim, ressalta-se que, por contar com uma rede próxima, o perfil das mulheres analisadas se restringe a uma maioria branca, heterossexual, com ensino superior (maioria com Pós-Graduação já realizada no Brasil e algumas com Pós-Graduação, Mestrado ou Doutorado em andamento em Portugal), estrutura econômica e familiar estável. Embora tais achados contribuam para uma visão interseccional dos estudos de imigração com recorte de gênero e classe social, por não abranger uma diversidade maior de mulheres e vivências, considera-se esta uma limitação; afinal, falar sobre imigração requer estar atento à interseccionalidade, já que diz respeito “a um grupo heterogêneo, mesmo quando se trata de um grupo de mesma nacionalidade” (Scherer & Prestes, 2021, p. 10). Nessa linha, sugere-se a continuidade desse estudo, com foco para as mulheres imigrantes sem ou com menor qualificação, que perpassem diferentes marcadores sociais, como aquelas atendidas pelas associações de migração, a fim de verificar os efeitos da crise pandêmica em uma população mais vulnerável e diversa.