1. Introdução
Paulo Freire (1921-1997) e sua práxis educativa são fundamentais quando se fala em Educação, especialmente Educação de Adultos (o que remete sempre às questões do trabalhar). Freire é o patrono da Educação no Brasil e continua sendo uma referência importante, inclusive internacional, no campo das Ciências Humanas em geral, bem como para movimentos populares e organizações da sociedade civil de luta por direitos. Em 2021 se deu o centenário de seu nascimento, o que renovou o interesse por suas obras e permitiu uma ampla divulgação de seu pensamento e influências múltiplas. Aqui reiteramos nosso registro e homenagem.
Foram realizados numerosos seminários por todo o Brasil e em diversos países, produzidos certamente milhares de documentos entre artigos, vídeos documentais, lives e livros de afirmação do seu legado e de diálogo com sua obra, promovendo encontros que, para além das temáticas em si, traziam a marca da resistência contra a desumanização e a afirmação da práxis libertadora.
No atual momento, - ainda tão grave - da pandemia de Covid19, de desmonte dos já frágeis serviços e políticas públicas, de agravamento das diferentes formas de desigualdade e da propagação de uma cultura de ódio e intolerância, é inspirador poder homenagear Paulo Freire e revisitar criticamente a teoria e prática da liberdade, em busca de meios e pistas para o enfrentamento da escalada neofascista no Brasil e no mundo. Esta vitalidade e contemporaneidade da obra freireana certamente está ligada à potência de suas análises, propostas e intervenções concretas, frente à manutenção e perpetuação das estruturas e processos de exploração e dominação por ele denunciados e combatidos.
O presente texto tem também por objetivo contribuir para a sistematização da apropriação da teoria e da epistemologia freireana por quem se interessa por compreender(transformar as situações de vida e trabalho real, privilegiando o ponto de vista da Atividade. Desta forma, trazemos para o diálogo (noção que nos é fundamental) algumas abordagens deste campo “da Atividade”, com destaque para a perspectiva da Ergologia. A Ergonomia da atividade, a Psicodinâmica do Trabalho, a Clínica da Atividade e o Movimento Operário Italiano de luta pela Saúde e Produção de Conhecimento (MOI) serão mobilizados também, de forma que alguns aspectos teóricos e metodológicos de tais abordagens e da perspectiva ergológica sejam postos “lado a lado” às formulações freireanas, buscando sinergias e desenvolvimentos mútuos.
Sustentamos que há potentes ressonâncias que tornam possível mais do que uma interlocução profícua entre tais perspectivas e abordagens. A impregnação das noções e encaminhamentos ético-epistemológicos e teórico-metodológicos freireanos à “caixa de ferramentas” das intervenções e pesquisas que são animadas pelos referenciais do campo “da Atividade”, especialmente em formações sociais tão violentas, desiguais e hierarquizadas como a brasileira, podem contribuir na potencialização de seu uso em sinergia e fortalecer a construção de uma nova e necessária política do trabalhar e viver juntos. Uma política que não teria tão só a ambição de prevenir o adoecimento pelo trabalho, mas que retomaria o domínio sobre as relações sociais e da própria organização do trabalho, para dela obter a potencialidade de recursos na construção da saúde e na realização de si mesmo, de um lado, e na aprendizagem do viver juntos e da recomposição das ligações de solidariedade, de outro (Dejours, 2012).
Defendemos que as perspectivas que se pretende aqui mobilizar desenvolvem-se em campos ético-epistemológicos que, se não são o mesmo, pertencem a uma mesma matriz, tal como as cordas do violão perfazem um conjunto harmônico. Tais convergências estão relacionadas à visão do que seja o humano e suas relações, de suas potencialidades, de seu permanente inacabamento e de sua capacidade de interferir no mundo, modificando-o e modificando-se. Relacionando-se com o outro a partir do diálogo, ensinando-aprendendo.
Paulo Freire e aqueles que trabalham tendo sua obra como norteadora partem destes princípios para atuar preferencialmente pela chave da Educação como caminho para compreender↔transformar. Sabemos, no entanto, como outros já apontaram, que a perspectiva freireana é fértil para pensar a atividade humana, o trabalhar, a atividade de trabalho. Pesquisadores construtores e estudiosos especialmente do campo da Ergologia na França (Cornu, 1997; Schwartz, 2003; Durrive, 2006; entre outros) e no Brasil (e.g., Echternacht & Veríssimo, 2016; Borges, 2021; entre outros) já indicaram explicitamente para tais ressonâncias e convergências, com apontamentos fundamentais. Nosso esforço é o de contribuir com tais iniciativas, tendo como base reflexões já sistematizadas anteriormente (Suprani, 2010).
Mesmo tendo em vista que os campos de reflexão/atuação das perspectivas e abordagens colocadas em diálogo são diversos, partimos do princípio que Trabalho e Educação/Formação - ou o trabalhar e o educar(-se)/formar(-se) - são atividades estreitamente imbricadas, atos carregados de sentido, “situados e datados” e portanto, momentos do viver humano abertos à produção de saberes e de novas normas de vida (individual e coletivamente).
Essa posição afasta-se da noção de que o vivente humano é fundamentalmente passivo, submisso, apenas respondente ao meio1 em que vive, privado de qualquer iniciativa. Ao contrário, o patrimônio aqui mobilizado afirma o humano como um ser potencialmente ativo, dinâmico, com capacidade de criar suas próprias normas e de recriá-las quando lhe convém e quando lhe é possível, em seu meio, bem como de criar seu próprio meio - como um ser normativo, na linguagem de (Canguilhem 1990). Entende-se, portanto, que a produção de saberes deve estar, necessariamente, atrelada também a essa dinâmica.
Tal leitura parte do pressuposto ontológico de que todos são potencialmente capazes de produzir saberes nos mais variados espaços de vida. E que, produzindo e sendo também produzidos (n)estes espaços e encontros com as coisas do mundo, os homens e mulheres criam também suas próprias “leituras de mundo”. Para uma parcela majoritária das pessoas, trata-se de encontros marcados pela experiência da dominação e exploração, do racismo, do sexismo, da discriminação sexual, da desigualdade... e da naturalização de tudo isso por meio de processos violentos construídos ao longo de séculos de um sistema colonial escravista ainda vivo sob vários aspectos (Gonzalez, 2020). Experiências concretas de desumanização, seja no sentido econômico, social, de produção de subjetividade... Também - e sobretudo -, experiências de resistência, de criação, de manutenção e afirmação de formas de ser, estar e viver no mundo guiadas por lógicas e sistemas de valores outros. Que são herdeiros também de tradições culturais não ocidentais, de matrizes africanas, dos povos originários indígenas, e de uma religiosidade cristã popular de base concreta, de ajuda mútua que, embora minorizadas, perpetuam-se na solidariedade oriunda da experiência compartilhada da opressão, constituindo os modos de vida populares.
Tais modos de vida, de construção de saberes, de produção e reprodução social compõem o que Freire irá chamar saberes de experiência feitos, produzidos e transmitidos através do corpo em ato (os saber-fazer) e da atividade linguageira, da oralidade. Formas presentes em toda atividade desde que há o humano, desvalorizadas e invisibilizadas pela cultura disciplinar e livresca animada pela lógica positivista e utilitarista dominante.
O vivente humano se define por suas relações. São os encontros e desencontros que tivemos e temos ao longo da vida, inseridos nos modos de vida dos quais participamos que definem o que somos e o que podemos. É à potência de afetar e ser afetado que nos referimos quando falamos de encontros. Por isto o que caracteriza os viventes é o que conceituamos por Atividade. Como dissemos, a vida é relação, é debate, luta, jogo. E como afirmou (Canguilhem 1990 p. 208), “a vida procura ganhar da morte em todos os sentidos da palavra ganhar, sendo um jogo contra a passividade e a inércia”. Neste sentido, nos parece extremamente pertinente a observação do médico e psicólogo Ivar Oddone sobre os operários da Fiat italiana, no contexto das lutas pela saúde em meados da década de 1960, contrariando a tese do trabalhador alienado e massacrado pelo trabalho:
“a pré-determinação dos tempos e dos gestos como condição necessária, não leva, entretanto, os trabalhadores a chorarem o seu destino e o destino da humanidade, mas leva-os a tirar o melhor de si mesmos e dos outros para conseguir mudanças. É uma luta dura e contínua, vivida como um jogo em que se batalha para vencer, nunca para perder” (Oddone et al., 1977/2008, p. 233, tradução nossa).
Assim, o critério último de valor da vida está no quanto as relações que estabelece com o meio ampliam sua potência e possibilidades de agir e de se relacionar, transformando o meio e transformando-se neste processo, sempre em uma perspectiva coletiva de luta pela saúde.
É com esta linha filosófico-epistemológica (ética, estética, política...) que identificamos as propostas da perspectiva educativa freireana e das perspectivas presentes nas e nos autores que compõem o campo “da Atividade” e do trabalho real. Mas qual seria o ponto nodal desta “afinidade” ético-epistemológica (e política) que advogamos unir em um mesmo vetor tais proposições? Arriscamo-nos a dizer que este vetor pode ser exatamente o da saúde, quando a entendemos como definimos acima, como uma relação que se estabelece e que amplia a potência de afetar e ser afetado, a potência de agir e se relacionar com os outros e com o mundo.
A Ergologia, a Psicodinâmica do Trabalho e a Clínica da Atividade já têm como orientadora explícita esta noção e valor de saúde amplamente baseado na filosofia neovitalista de Canguilhem. No caso de Paulo Freire advogamos que, embora não esteja dito desta forma em momento algum de sua obra, a bússola aponta para o mesmo sul. É uma brisa que se recebe no rosto quando abrimos seus livros. Em sua obra, Freire irá referir-se a essa “vocação” da vida para a atividade e para a expansão ora como humanização, ora como libertação, ora como “ser mais” (Freire, 1992), p. 51).
Para desenvolver um pouco mais o sentido que damos à saúde nesta linhagem filosófica materialista vamos recorrer ao fundador da Psicodinâmica do Trabalho, Christophe Dejours, que expos a proposta de uma “nova definição de saúde” (nova em relação à concepção adotada pela Organização Mundial de Saúde, que ele toma como referência e critica). Esta proposta coaduna-se e explicita de forma clara o sentido do que vimos dizendo. A saúde é entendida como um processo dinâmico, uma sucessão de compromissos que se assume com a realidade - ligados a todas as dimensões da vida, compromissos que se assumem e mudam, se perdem e ganham. A saúde é algo que se busca permanentemente, que se defende, que se conquista e que se arrisca. Neste sentido a saúde não é domínio dos especialistas ou de outras instâncias, não vem do exterior, é algo que diz respeito a cada uma e a todas as pessoas (Dejours, 1986).
Karl Marx (1818-1883) é autor central nesta linhagem filosófica materialista radical, referência importante tanto para a perspectiva educativa de Paulo Freire quanto para as perspectivas do campo da Atividade.
É exatamente em Marx 1845/1982) que encontramos operando o dispositivo que dará força imperativa à consigna compreender ↔ transformar. É esta consigna que une de maneira indissociável Atividade, Educação/Formação e Trabalho. Marx afirma que o que define o humano é o devir. É o transformar o mundo e, no mesmo movimento, transformar-se. A este processo (Marx, 1867) conceitua por Trabalho (1867/1999). Não obstante, em sua forma hegemônica na sociedade capitalista, o trabalho apresenta um duplo aspecto: é trabalho concreto de intervenção intencional sobre os recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana e, como compra-venda de força de trabalho é trabalho abstrato. Marx centra seus escritos nesta segunda forma, dados seus objetivos de análise do funcionamento do modo de produção capitalista e sua possível superação.
Mas o que importa aqui é a centralidade do devir, nisto que chamamos o trabalhar (Dejours, 2012). Para Bernard Charlot 2003), educação e trabalho sempre estiveram separados na tradição ocidental, tanto nas propostas daqueles que se propunham a pensar as práticas sociais, quanto nestas próprias práticas. Para este autor, é a partir de Marx que a ligação entre educação e trabalho se torna virtualmente muito forte (Charlot 2003). Trabalhar é transformar o mundo, o que também transforma o sujeito que trabalha. Neste sentido, a educação (a prática educativa) só pode ser o ato recíproco de transformar o outro, no processo transformando-se.
O que nos leva explicitamente ao texto de Marx sobre Feuerbach em sua terceira tese, cara a Paulo Freire (encontramo-la textualmente em pelo menos quatro dos seus livros), que nos dirá que:
“A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos das circunstâncias e da educação, de que seres humanos transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio de ser educado. (...) A coincidência do mudar das circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada e racionalmente entendida como práxis revolucionante” (Marx, 1845/1982, p. 1).
Ou seja, é preciso partir da própria realidade, do modo como esta se apresenta, para transformá-la. É no próprio movimento do real que se deve buscar os possíveis que neste sempre estão presentes, ainda que frágeis e diminutos. É no trabalhar de agora que um outro trabalhar é e será gestado; é no educar(-se) de agora que um outro educar(-se) é e será gestado. A denúncia da exploração exige por um lado cada vez maior conhecimento científico sobre a sociedade no qual esta exploração se dá, e por outro, o anúncio de uma outra sociedade demanda uma teoria da ação transformadora desta mesma sociedade denunciada (Freire, 1979).
2. A Atividade no centro
As abordagens que se construíram buscando compreender(transformar o trabalho real operam em uma linhagem que rompe de forma radical com paradigmas centrais do cientificismo positivista. Isto se traduz em uma postura que será proposta pela Ergologia como de humildade epistemológica, assumindo a incultura recíproca2, a atitude de desconforto intelectual (Schwartz, 2003) e a busca pela construção coletiva do conhecimento. Estes construtos devolvem (ao menos parcialmente) o protagonismo àqueles que efetivamente vivem de investir a vida na atividade de trabalho, além de proporcionar aos pesquisadores um retorno que, sem abandonar o rigor próprio da atividade científica, colabora para sua fertilidade, tornando-a menos artificiosa e asséptica.
Entre as perspectivas e abordagens que mobilizamos, a que já vem de forma mais explícita e sistemática desenvolvendo o diálogo com a perspectiva freireana é a Ergologia, que tem como seu principal construtor o filósofo Yves Schwartz. O esforço epistemológico e teórico-metodológico-empírico representado pelo encaminhamento ergológico foi instigado inicialmente por iniciativas no campo da educação (ou formação) continuada, que na conjuntura política francesa do início dos anos 1970, levou profissionais pesquisadores e professores das universidades a tomarem contato com o mundo das demais organizações, especialmente as empresariais (Schwartz, 2000). Desde então, partiam da preocupação de repensar o regime de produção de conhecimento e de gestão social sobre o trabalho, incorporando neste regime os saberes produzidos pelos trabalhadores sobre suas próprias atividades (e sobre a gestão das mesmas), visando desenvolvimentos mútuos.
Quando Freire afirma que a leitura do mundo vem antes da leitura da palavra, ele nos remete diretamente a um debate caro a Canguilhem e que a Ergologia, acompanhando-o, irá denominar “debate de normas em um mundo de valores” (Schwartz & Durrive, 2007). Há sempre valores em jogo na Atividade. Se é preciso mobilizar-se e agir para fazer frente às prescrições e realizar o que a situação (de trabalho) pede (de forma mais ou menos impositiva), forçosamente se fará escolhas, microescolhas. E se há escolhas, mais ou menos conscientes, elas ocorrem em função de critérios anteriores, que remetem a questões que vão desde o mais “pessoal” (à produção desejante e à economia do corpo), passando pelo microssocial (as relações de parceria e subordinação, as relações entre a própria atividade e o conjunto de atividades) até o macro (as questões relativas à cidadania e à sociabilidade em geral). Critérios construídos sobre o próprio tecido da vida concreta em suas contradições, de forma mais ou menos consciente, carregando sonhos, medos, frustrações, desejos, sofrimento... carregando também formas de agir, sentir e compreender o (próprio) trabalho e a vida em seus múltiplos aspectos.
A produção sinérgica de saberes sobre a atividade humana, que se constitui como objetivo e objeto da Ergologia, tem e terá sempre como norte a ampliação das possibilidades de renormatização e de recentramento do meio de vida (luta pela ampliação das reservas de alternativas) tanto daqueles que efetivamente se engajam nas atividades, quanto para aqueles que trabalham nos “mundos do conceito”. Mantemo-nos sob a consigna conhecer ↔ transformar.
Um dos construtos teórico-práticos desenvolvidos no sentido de catalisar este projeto é o dispositivo dinâmico de três polos (DD3P) (Schwartz, 2000). Ele é proposto a partir do conceito-dispositivo desenvolvido por Ivar Oddone, Alessandra Re e colaboradores de “comunidade científica ampliada” (CCA) no curso da experiência do Modelo Operário Italiano de luta pela saúde (MOI)3.
Esta ferramenta conceitual/dispositivo metodológico nos permite cartografar as diferentes instâncias em sinergia num processo de confrontação de saberes. Saberes disciplinares manejados/articulados pelos pesquisadores/educadores/formadores; saberes de experiência feitos (no vocabulário de Freire) investidos (na atividade de trabalho) pelos trabalhadores/educandos/formandos: temos aqui dois polos. O terceiro introduz o debate de valores, a dimensão ético-epistemológica que vetoriza as forças engajadas nesta confrontação a impulsionar os sujeitos para além das normas dadas anteriormente, possibilitando o desenvolvimento dos saberes postos em sinergia, o que aponta para a construção da confiança e compromisso. Este dispositivo vem sendo experimentado no Brasil na forma dos Encontros sobre o Trabalho, no seio de Comunidades Ampliadas de Pesquisa-Intervenção (Athayde & Brito, 2021).
A transdisciplina que é a Ergonomia da Atividade, influência importante para a Ergologia, também entra no campo do diálogo e incorpora às suas análises os saberes de experiência feitos. Ao apontar para o hiato entre o trabalho prescrito e o realizado e questionar (via método de confrontação) o próprio trabalhador sobre o vivido do trabalho, constata que tais saberes(-fazeres) são essenciais para a qualidade do trabalho e da luta pela saúde. Isto porque a própria experiência de trabalhar implica a construção de saberes pertinentes à atividade situada, concreta e ao meio social onde esta se dá e porque há uma experiência coletiva da qual os trabalhadores são depositários, como co-construtores.
Existem saberes já presentes - e que se forjam - nas atividades de trabalho sobre os quais aquele (a) que pesquisa-intervém não terá acesso sem o auxílio das próprias trabalhadoras e trabalhadores. Surge assim a Análise Ergonômica do Trabalho (AET), que irá introduzir no método científico a busca por dar visibilidade a esta experiência acumulada como patrimônio para a garantia da qualidade e a defesa da saúde e do bem-estar no trabalho.
Inserido na tradição ergonômica e tendo em vista a formação no/para o trabalho, desenvolve-se a partir de Portugal (Marianne Lacomblez, na Universidade do Porto) e da França (Catherine Teiger, no CNAM4) o “Paradigma da formação dos atores na e pela análise do trabalho para e pela ação” (Lacomblez et al., 2014), que se constrói historicamente a partir do princípio de confrontação entre os saberes advindos da experiência de trabalho e os saberes constituídos a partir do campo científico multidisciplinar. A formação é entendida como “uma situação de aprendizagem mútua com vista a um objetivo comum, qual seja o de transformar o trabalho” (Lacomblez et al., 2014, p. 4). Para tal proposta, a análise crítica do trabalho (abrangendo a atividade real, o ambiente e suas consequências) é a “ferramenta cognitiva” básica desse processo e pode levar a um outro olhar sobre o trabalho, mais rico e apresentando novas possibilidades. “A conexão da tríade pesquisa-ação-formação aponta para benefícios múltiplos para a construção de conhecimento e a ampliação do campo de ação coletiva dos atores envolvidos” (Teiger & Lacomblez, 2013, p. 3).
A partir da França, Yves Clot propõe uma abordagem que denomina Clínica da Atividade. Toma como referenciais a Ergonomia da Atividade, a Psicopatologia do Trabalho, o MOI, as contribuições de autores russos como Lev Vigotski e Mikhail Bahktin e, para além da própria atividade de trabalho, centra sua atenção na subjetividade. (Clot, 2006, Clot, 2010) insiste no fato de que o trabalho se encontra entre a atividade e subjetividade e que não podemos tratar da atividade sem considerar a subjetividade.
Ao partilhar dada situação de trabalho com outros profissionais, os sujeitos herdam toda uma história das técnicas e dos coletivos, modos de fazer e de viver juntos uma dada situação dinâmica que conformaram e dão densidade histórica a determinado gênero profissional (Clot, 2010). Herdam e devem sempre a reconstruir, colocando o gênero profissional sempre à prova na história real das atividades no momento de agir em função das circunstâncias. O que dá novamente visibilidade e importância à questão da experiência e da aprendizagem mútua, socialmente produzida e compartilhada. Neste sentido o gênero é sempre inacabado.
O processo de intervenção↔pesquisa orientado por esta Clínica do Trabalho almeja então induzir a uma (re) fabricação do gênero profissional a partir das contribuições dos trabalhadores em um processo de análise conjunta do trabalho, envolvendo os pesquisadores e os próprios trabalhadores, em uma perspectiva dialógica. A pesquisa é então entendida como coprodução de um meio para transformar o trabalho através da exploração das relações entre dialogia, pensamento e ação.
Outra abordagem que se desenvolve na França, tendo também como centro de sua atenção o trabalho real é a Psicodinâmica do Trabalho (PdT). Originada da Psicopatologia do Trabalho, também sob o impacto das descobertas da Ergonomia da Atividade, esta abordagem vem desenvolvendo-se como uma teoria do sujeito e como uma microssociologia do trabalho, em que a cooperação e a atividade deôntica (de produção de regras) inserem-se em uma dinâmica que remete por derivação ao político e à vida na cidade (Dejours, 2012).
Trabalhar, na perspectiva clínica adotada pela PdT, é sempre uma experiência, uma vivência afetiva, corporal, sujeita sempre às resistências do mundo à ação dos sujeitos (incluindo o mundo social) e à necessidade de composição com outros na construção da cooperação. Tal é o duplo aspecto apontado pela PdT em relação ao trabalho, como atividade de produção (de um produto, um serviço) e de construção e manutenção de relações de convivialidade, um “viver juntos”. O que aponta para a necessidade de abertura de espaços de diálogo, aprendizagem e reconhecimento mútuos. Isto implica riscos, a construção de um campo de inteligibilidade e julgamento (um espaço público interno) em que a confiança possui papel fundamental.
Nestes breves apontamentos sobre essas abordagens, buscamos dar visibilidade aos pontos de contato mais evidentes com as proposições de Paulo Freire. Passaremos agora a tais proposições, dando destaque a duas das ideias-força centrais para a práxis freireana - o diálogo e a conscientização - e a uma noção central para sua plena compreensão, a de amorosidade.
3. La pedagogía del oprimido
Embora tenha uma produção textual extensa, Paulo Freire ficou mundialmente conhecido com o livro “Pedagogia do Oprimido” (Freire, 1979), escrito quando de seu exílio no Chile (em razão da ditadura civil-militar instalada no Brasil) e lançado primeiramente em espanhol, em 1970. Neste trabalho seminal funda a perspectiva (epistemológica) em Educação nomeada no título, aprofundando algumas análises de seus trabalhos anteriores, reforçando o caráter político do processo educativo e a necessidade de uma educação-movimento para a libertação (problematizadora)5. Esta perspectiva será lapidada ao longo de toda sua trajetória.
Esta identificação entre o ato educativo e o ato político dá-se de maneira contundente em Freire, principalmente porque o compromisso que assume em sua obra e práxis é o da transformação social. A Educação torna-se intermediária de uma ampliação da criticidade na leitura do mundo, exercendo um papel de conquista e de denúncia.
Desta forma, Paulo Freire apresenta uma concepção da relação educativa em bases fundamentalmente diferentes da relação hierarquizada e autoritária apresentada pela pedagogia tradicional, amplamente hegemônica (especialmente naquele período). Esta é representante do que vai denominar cultura do silêncio, denunciada como a marca da violência secular da colonização e da escravização que dividiu a sociedade entre opressores e oprimidos, herança ainda presente em todos os espaços da formação social brasileira desigual, patriarcal e racista. Esta cultura se materializa na família, nos espaços de trabalho e, claro, no espaço escolar, onde se manifesta como educação bancária, aquela em que o educador é o que educa; o que sabe; o que pensa; o que diz a palavra; o que disciplina; o que opta e prescreve sua opção; o que atua; o que escolhe o conteúdo programático; o que personifica a autoridade do saber/do poder; o educador, finalmente, é o sujeito do processo. Os educandos, meros objetos (” (Freire, 1979), p. 34, negrito nosso).
Paulo Freire denomina de saberes de experiência feitos às concepções não científicas (embora atravessadas pelos conhecimentos científicos) construídas pelos homens e mulheres sobre si próprios e suas atividades cotidianas, sobre a sociedade em que vivem, sobre o mundo e a história. Saberes carregados de sentido, valores, sentimentos. E nos afirma que se não é possível desenvolver o trabalho educativo apenas contando com este saber “da prática”, também não é possível aceitar a prática educativa que “zerando este saber, parta do conhecimento sistemático do educador”. Não é possível ao educador dialógico “desconhecer, subestimar ou negar os saberes com que os educandos chegam à escola6” ((Freire, 1992, p. 31).
Ao contrário, a busca incessante deve ser para que se instaure e mantenha o diálogo entre todos os envolvidos, enquanto parceiros, o que significa que aquele que ensina também está aprendendo. Não há ninguém que possa ser considerado definitivamente educado ou formado. Cada um, a seu modo, junto com os outros, pode ensinar, aprender e descobrir novas dimensões e possibilidades da realidade da vida. A Educação torna-se um processo de formação e construção mútua e permanente.
Quando Freire afirma que a leitura do mundo vem antes da leitura da palavra, ele nos remete diretamente a um debate caro a G. Canguilhem e que a Ergologia, acompanhando-o, irá denominar “debate de normas”. Nas palavras de Louis Durrive:
“A atividade humana, seja lúdica ou laboriosa, se constrói sobre as formas de fazer, sobre as regras, os procedimentos, os encadeamentos lógicos ou as instruções mais ou menos explícitas. O agir concreto é assim equipado racionalmente, armado para encarar o mundo real que oferece resistência a todo projeto de transformação. Sob um certo ângulo, este arsenal de exigências precede o momento da ação, o que nos autoriza a reconhecê-las como “normas antecedentes”, segundo os termos de Yves Schwartz. No entanto, tais exigências não são primeiras, contrariamente à ilusão de perspectiva que lhes dá prestígio: Elas são precedidas pela vida corrente, a vida humana em todas as suas dimensões. A existência precede a exigência” (Durrive, 2006, p. 55, tradução livre).
Aqui, Durrive dá outra formulação à precedência que Freire dá às leituras de mundo com as quais as e os educandos já chegam ao encontro educativo/fomativo/de trabalho. Restaurar a ordem temporal da experiência humana apresenta a vantagem imediata de nos fazer compreender a especificidade das próprias normas. Trata-se de um movimento de antecipação que procura reunir, organizar, regular um material que lhes é preexistente, transformando-o em patrimônio. As normas não estão, desta forma, associadas à ideias de harmonia, mas preferencialmente à de conflito na medida em que vem combater os hábitos, as maneiras de fazer já existentes nos modos de vida nos quais estamos inseridos e dos quais participamos. Entendemos que a questão é de debate de normas, bem como de infidelidade do meio.
4. Linguagem e ação: diálogo e conscientização
Entramos agora então, em um ponto fundamental tanto nas proposições freireanas quanto nas dos construtores das perspectivas que se preocupam com o trabalho real. Trata-se da relação entre linguagem e ação. De nosso ponto de vista, esta relação está na base de ambos projetos, na medida em que se propõem a “compreender(transformar” tendo como centro de análise/intervenção a Atividade.
Ao falar de linguagem e de ação, não pretendemos deixar de fora outros agenciamentos que compõem o viver humano. Ao contrário. Para que a ação pudesse tornar-se ação humana e qualquer forma de comunicação arcaica pudesse tornar-se linguagem, foi necessária uma longa estrada. Outro autor que ao nosso ver pode ser colocado neste diálogo, o biólogo chileno Humberto Maturana (1928-2021), afirma que “o humano surge, na história evolutiva da linhagem hominídea a que pertencemos, quando aparece a linguagem” (Maturana, 1998), p. 159). Para ele, a linguagem funda o humano e, para que esta pudesse se instaurar, uma forma específica de viver e conviver foi necessária. Esta forma era a cooperação. Maturana sustenta que os humanos se constituíram como animais cooperadores. A conservação de um modo de vida fundado na intimidade, na confiança mútua e no respeito mútuo proporcionaram o surgimento e o desenvolvimento de conversações e a estruturação da linguagem.
A emoção básica, condição sine qua non para que a evolução tomasse este caminho é - ainda segundo Maturana (1998) - o amor (ou o amar, como depois vai preferir denominar). O que estamos aqui chamando de amar é a disposição para a ação sob a qual se reconhece o outro como sujeito legítimo em coexistência conosco. Repetindo: intimidade, respeito, confiança, reconhecimento do outro. Nesta concepção, o amar é, assim, a emoção que funda o fenômeno social.
Maturana vai além ao dizer que outras características também foram fundantes do que denomina ‘o humano’, características ligadas ao “fazer” e ao cooperar em comunidade. O compartilhar comida, o cuidar das crianças como tarefa de “machos e fêmeas” (ao contrário de outros primatas), todo um saber de experiência feito, gestado e conservado coletiva e amorosamente que, num processo dialético, reforçava os vínculos de convivência e instigava a inteligência a ampliar-se. Assim, a gênese e constituição do humano, para além da condição física animal da espécie, está no estreitamento dos laços societários e nas infinitas possibilidades de cooperação. E este estreitamento e possibilidades só se concretizam a partir dos modos de (re)produzir a vida dos homens e mulheres.
A Escritora, professora e ativista feminista e antirracista estadunidense bel hooks7 (1952-2021), interlocutora de Freire, também entenderá que o amar é do campo da ação. “Se nos lembrássemos constantemente de que o amar é o que o amor faz, não usaríamos a palavra de um jeito que desvaloriza e degrada o seu significado. Quando vivemos segundo uma ética amorosa, expressamos cuidado, afeição, responsabilidade, respeito, compromisso e confiança” (hooks, 2021, p. 48). Para a autora, só podemos viver segundo uma ética amorosa de modo bem-sucedido ao cultivar a consciência crítica. Este exercício reflexivo permite que examinemos nossas ações criticamente para “ver o que é necessário para que possamos dar carinho, ser responsáveis, demonstrar respeito e manifestar disposição de aprender.” Entender o conhecimento como um elemento essencial do amar é vital (p. 111).
Admitindo a plausibilidade das proposições de Maturana e hooks, temos um bom arcabouço para nos debruçarmos sobre a relação entre linguagem e ação, e sobre o diálogo. Não se trata de naturalizar tais propostas, mas de admitir que o emocionar-se e o cooperar estão na base do viver coletivo. Pensamos que qualquer proposta teórico-empírica que busque nos próprios homens e mulheres em atividade as ferramentas para a produção de conhecimentos e da transformação destas mesmas atividades e da própria vida coletiva, deva ultrapassar o racionalismo positivista.
Voltando a Freire, a relação educando-educador deve desenvolver-se de forma dialógica. O diálogo, que é um encontro amoroso8, ocorre entre sujeitos com pontos de vista diferentes, em uma relação de confiança em que se reconhece o outro - e seus saberes - como legítimo. Ao trazer a amorosidade para o centro do diálogo, Freire aponta para a inescapável corporeidade e afetividade do encontro dialógico. O diálogo, como força motriz da práxis problematizadora, recusa a indiferença e assepsia de toda uma lógica e tradição disciplinar, patriarcal/colonial/judaico-cristã de negação do corpo e dos sentimentos, considerados expressões da fraqueza ou do pecado que inscreve nos corpos, nas formas de múltiplas opressões, a cultura do silêncio (Freire, 1979). E que tem no ethos do trabalho e seus múltiplos signos hierárquicos uma de suas principais expressões. Para romper:
“É preciso ousar, no sentido pleno desta palavra, para falar em amor sem temer ser chamado de piegas, de meloso, de a-científico, senão de anti-científico. É preciso ousar para dizer, cientificamente e não bla-bla-blantemente, que estudamos, aprendemos, ensinamos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e também com a razão crítica. Jamais com esta apenas. É preciso ousar para jamais dicotomizar o cognitivo do emocional” (Freire, 1997, p. 8).
Esta ousadia presta-se à construção de novos territórios: subjetivos, afetivos, técnicos, políticos... Presta-se àquilo que Freire irá chamar de “Ser-mais” (Freire, 1992, p. 57), que segundo ele é a própria vocação do humano. Afirmar a potência da vida na transformação constante dos homens e mulheres, ampliando sua capacidade de agir e refletir no mundo. Este processo de transformação dos homens e mulheres entre si, mediatizados pelo mundo, cabe insistir, tem um caráter sempre aberto, provisório, contingente.
Sobre isto nos dirá também Canguilhem, ao discutir se a tendência fundamental da vida é a conservação ou a expansão que, o “instinto de conservação” não é a lei geral da vida, mas sim a lei de uma vida limitada. Assim, “o homem sadio não foge diante dos problemas causados pelas alterações - às vezes súbitas - de seus hábitos; ele mede sua saúde pela capacidade de superar as crises para instaurar uma nova ordem” (Canguilhem 1990, p. 161).
Voltamos então ao diálogo. Ao tentarmos nos aproximar do diálogo como fenômeno humano, este se revela para nós tendo como constitutiva a palavra. Mas esta não é uma palavra solta, um meio onde o diálogo ocorreria. Não, a busca da palavra na relação que engendra o diálogo nos leva a surpreender, nela, duas dimensões: ação e reflexão, “de tal forma solidárias, em uma interação tão radical que, sacrificada, ainda que em uma parte, uma delas, se ressente, imediatamente, a outra” (Freire, 1979, p. 44) Assim é que a palavra, dita por homens e mulheres na relação dialógica, é sempre práxis. Daí que a palavra sempre traz em germe a transformação.
Esta relação entre trabalho e linguagem (trabalho linguageiro), constituindo uma práxis, encontraremos na PdT quando este nos diz que “A ação refletida e deliberada, a práxis, só é visível quando passa por um processo de mediação. Não se pode julgar a ação sem a narrativa do agente, ou dos agentes. Desta forma, a ação está irremediavelmente ligada a atos de linguagem” (p. 247). Há que se constituir uma vontade coletiva para sustentar um processo dialógico, assumindo os riscos da fala e da escuta, entre eles os das dificuldades de intercompreensão, interesses divergentes e do fato de que “a inteligência do trabalho está muitas vezes à frente de sua elaboração” (Dejours, 2012, p. 177), o que também traz para primeiro plano a mobilização dos afetos e a construção da confiança.
A partir da Clínica da Atividade, Yves Clot irá apontar para os limites do diálogo em relação à experiência vivida (2010), apontando tal dimensão do que “não se consegue explicar” como o real do diálogo, aquilo que se sente, procura-se ver, mas ainda não se encontra no campo do dizível. Colocando-se como limite do diálogo e tensionando-o, só será superado através da mobilização da curiosidade (p. 243), o que também implica um interesse e abertura recíprocos.
Para Freire, o humano se realiza quando caminha para o ser-mais. Apesar de sua formação católica e ligação à Teologia da Libertação (que possui inegável influência em sua obra), esta noção freireana não possui em nosso entendimento um caráter transcendente. Ao contrário, aponta para a construção de um campo de imanência na medida em que ser-mais é uma construção coletiva de homens e mulheres que aprendem uns com os outros de forma dialógica, ampliando sua potência de compreender(transformar as possibilidades do viver na luta pela emancipação/liberdade.
Segundo Freire, este caminho para o ser-mais é trilhado tendo por base a trídade eu-mundo-outro e como categorias catalíticas da relação entre os componentes desta tríade o dialogismo e a conscientização. Sobre o primeiro catalisador do ser-mais, o diálogo, já discorremos brevemente. Iremos nos deter agora sobre a conscientização. Comecemos com este pequeno trecho, da obra de mesmo nome:
“O trabalho humanizante não poderá ser outro senão o trabalho da desmitificação. Por isso mesmo a conscientização é o olhar mais crítico possível da realidade, que a “desvela” para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante” (Freire, 1979b, p. 17).
A desmistificação implica apontar para o caráter complexo e contraditório da realidade concreta, desnaturalizando o “já dado” das situações de opressão. Assim, da dialética entre concreto e abstrato, da confrontação entre a atividade engendrada pelo encontro de educandas(dos) e educadoras(es) e as outras relações de saber/poder encontradas na vida (patrão/empregado, pai/filho, homem/mulher, branco/não-branco etc.), todos podem fazer a crítica do que é e a aposta no vir-a-ser, construindo possibilidades e problematizando limites e limitações. Que nunca será um processo fechado e completo. A conscientização só pode ser encarada como um processo que se afirma na práxis transformadora. Como bem assinala Paulo Freire, ao analisar o trabalho político-educativo que acompanhou e do qual participou em Guiné-Bissau, logo após a independência deste país do colonizador português em 1974:
“O importante, na verdade, num tal trabalho com o povo, é o exercício daquela postura crítica diante da realidade, em que esta começa a ser tomada, cada vez mais rigorosamente, como objeto de conhecimento, na análise da própria ação transformadora sobre ela. É ter na atividade prática um objeto permanente de estudo de que resulte uma compreensão da mesma que ultrapasse o seu caráter imediatamente utilitário. É ter nela não apenas a fonte do conhecimento de si mesma, da sua razão de ser, mas de outros conhecimentos a ela referidos” (Freire, 1978, p. 23).
Proposta semelhante encontraremos na experiência do Modelo Operário Italiano de luta pela saúde (MOI), através do trabalho de Ivar Oddone, Alessandra Re e colaboradores Oddone et al., 1977/2008). Ao proporem aos operários da Fiat a construção de um mapa de riscos à saúde e a elaboração de propostas para solucionar os problemas encontrados, as quais seriam debatidas com os profissionais de saúde do trabalho, irão forjar a noção de “grupo homogêneo”. Um coletivo de trabalhadores é homogêneo por compartilhar das mesmas situações de exposição à nocividade no trabalho e por compartilhar de uma homogeneidade que possui uma inescapável dimensão política, na medida em que:
“(...) o modelo de mudança só pode ser representado: primeiro, pela satisfação da condição de que a luta contra o dano é um dos aspectos da luta de classes, um aspecto importante e prioritário, e que, portanto, deve ser integrado aos demais aspectos; segundo, da consideração de que a consciência de classe se enriquece e, de uma pura consciência solidária, torna-se consciência hegemônica” (Oddone et al., 1986/2020, p. 122, negrito nosso).
Esta conscientização deverá passar pela validação coletiva. Daí, a partir da emergência e validação do saber coletivo, a interrogar-se sobre o papel dos especialistas e colocar a hipótese de um novo tipo de relação, não só com eles mas também com todas as instâncias tradicionalmente encarregadas de resolver o problema das nocividades (pois detentoras do saber/poder legitimado). Ampliando assim a comunidade científica de forma a incluir os saberes operários e seu papel na luta pela saúde (Oddone et al., 1977/2008). Oddone e parceiros apontam para o caráter eminentemente coletivo deste processo, ainda que manifestado individualmente de forma singular.
Também o “paradigma de formação dos atores na e pela análise do trabalho para e pela ação” parte do diálogo entre trabalhadores e pesquisadores para buscar, além da construção de novos conhecimentos:
“A análise do que recobre, para cada um, a realização de sua atividade de trabalho e sua ligação com a saúde, no sentido amplo, sustenta o processo de tomada de consciência individual e coletiva que deveria permitir a elaboração de um “outro possível” relativamente ao trabalho” (Lacomblez et al., 2014, p. 162).
Transformar o trabalho a fim de transformar a sociedade. Dessa forma, a conscientização é compromisso e consciência histórica para a ação concreta sobre seu meio de vida e atividade. É inserção crítica na história, implica que as mulheres e os homens “assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece...” (Freire, 1979, p. 15).
5. Considerações finais
Buscamos com este artigo apontar alguns pontos de interseção entre a proposta de Educação Libertadora formulada e operada por Paulo Freire, a perspectiva ergológica e algumas das abordagens do campo da “Atividade”. Partimos de convergências já indicadas e apontamos para a centralidade do diálogo e da práxis problematizadora (conscientização), bem como para a força operativa da amorosidade na potencialização do encontro educativo/formativo/cooperativo e no cultivo de relações mais solidárias. Sabemos que vários pesquisadores(as) e ativistas brasileiros (mas não só) que se interessam pelo trabalho real tem em Paulo Freire uma referência. Sua influência ética, política, teórica e metodológica já foram apontadas em diversas publicações e relatos de pesquisas e intervenções que não teremos como referenciar neste espaço. Nosso texto se nutre deste patrimônio e continua este diálogo potente e afetuoso.
Paulo Freire foi preso e exilado por 15 anos exatamente por seu trabalho político e educativo. Retornou e participou ativamente da reconstrução da democracia após 21 anos de ditadura civil-militar, sempre também escrevendo e publicando novas reflexões. Desde então, muito mudou no Brasil e no mundo. No entanto, as relações entre opressores e oprimidos - para manter os termos freireanos - que apontou incessantemente em suas obras e combateu em sua práxis continuam presentes e ganharam novo fôlego e complexidade frente aos impasses e contradições da sociedade neoliberal que emergiu e se extremou desde sua partida. A precarização do trabalho e da vida, a degradação ecológica, o risco de guerra generalizada, o aumento das desigualdades tem trazido desamparo, medo e desalento, irrigando neofascismos e desejos de eliminação das divergências e submissão das diferenças. Forças que trazem as marcas antigas do colonialismo e do patriarcado novamente se levantam e buscam (re)afirmar a cultura do silêncio em meio à cacofonia algorítmica das redes digitais, propõem a violência (real e simbólica), a desinformação e o recurso ao autoritarismo como forma de gestão social da competição generalizada. Os espaços educativos e de trabalho são arenas centrais na luta contra as diversas formas de dominação e exploração, bem como instrumentos de sua reprodução. A análise crítica e a práxis transformadora nunca foram tão importantes.
Os referenciais mobilizados aqui em sinergia vêm buscando constituir reflexões e experimentar/desenvolver dispositivos dialógicos que sejam instrumentos de produção de conhecimento e instrumentos da luta coletiva pela emancipação na perspectiva de compreender(transformar. É preciso estar atento para a necessidade de abertura à diferença manifestada sempre nas situações concretas. Situações em que pessoas devem deparar-se e fazer frente a um mundo sempre em certa medida antecipável e sempre em certa medida desconhecido, construindo coletivamente soluções aos problemas concretos que se apresentam, forjando saberes e construindo suas leituras de mundo.
Freire nos conclama a afirmar a amorosidade no diálogo e o compromisso inescapável com a humanização para dar conta da tarefa de transformar positivamente e em conjunto os espaços de trabalho e de vida, problematizando nossas próprias práticas no processo de ação-reflexão. Tal encaminhamento, em oposição frontal à lógica de promoção do individualismo e da competitividade, pode indicar pistas importantes para contribuir com a luta pela saúde, ampliando os espaços de intercompreensão e de reflexão sobre as novas e antigas formas de assujeitamento e desumanização, na busca por superá-las.