1. Apresentação do artigo
Este artigo visa apresentar a Psicologia Social do Trabalho (PST) como uma perspectiva profícua para investigações sobre o mundo do trabalho. Para realizar tal intento, o artigo se inicia com um texto introdutório sobre a perspectiva em tela, de modo a expor sua história, objeto de estudo, aproximações teórico-metodológicas e compromissos ético-políticos. Em seguida, como possibilidade de elucidação do uso da PST em investigações científicas, são analisadas informações acessadas por meio de duas pesquisas de doutoramento, as quais adotam a PST e focalizam as vivências de pessoas que trabalham informalmente no Brasil. Por fim, nas Considerações Finais, apresentamos de forma sintética elementos que permitem pautar a PST como perspectiva crítica e engajada de pesquisa.
2. Sobre a Psicologia Social do Trabalho (PST)
A PST, tal qual discutida por (Sato et al., 2017), construída em solo brasileiro desde meados da década de 1980, surgiu no contexto de derrocada da ditadura e de intensas lutas por melhores condições de existência para a população. Em distintos espaços de atuação profissional em Psicologia, emergiu a necessidade de adotar referenciais que permitissem compreender as situações vividas pelas pessoas que trabalham em seu cotidiano, bem como reconhecer os impactos da contradição entre capital e trabalho em suas experiências. A constituição deste enfoque está em curso, tratando-se de um processo recente, que foi particularmente “motivado pelo sentimento de indignação com a percepção da injustiça em nossa sociedade, que é bastante desigual, e, em especial, pelo modo como se dá a exploração em nosso país” (Sato et al., 2017, p. 11). Assim, as particularidades históricas do continente latino-americano são relevantes para a PST, uma vez que questões como a colonização, escravização e espoliação são estruturantes da lógica de mercado de trabalho, impactam continuamente as formas de trabalho na região e trazem características ainda mais específicas em cada país.
Ao longo do processo de seu desenvolvimento, a PST vem se configurando como um enfoque que se dedica à compreensão da realidade do trabalho a partir das pessoas que trabalham, considerando essenciais os seus interesses, às suas demandas e histórias, encarnadas na realidade contraditória, conflituosa e excludente do mundo do trabalho no modo de produção capitalista. Este é um dos pontos que diferencia a PST da Psicologia Organizacional e do Trabalho, entendida aqui como uma perspetiva que se dedica ao trabalho a partir das demandas advindas da gestão das empresas. Em contrapartida, na PST, compreende-se o trabalho “em sua materialidade e historicidade, o que exige a consideração das relações de poder presentes na divisão social do trabalho e nos valores e ideologias - entendidas aqui no sentido marxista - bem como das condições e das peculiaridades do capitalismo contemporâneo” (Sato et al., 2017, p. 13).
Na PST, o trabalho é reconhecido em sua centralidade na existência humana, entendido enquanto “um fenômeno psicossocial, encarado de modo crítico, complexo e determinado pelas relações de poder que configuram o contexto social mais amplo” (Bernardo et al, 2017, p. 21; Oliveira, 2017), atravessado pelas questões macrossociais que sustentam o modo de produção capitalista. As condições produzidas pelo último são determinantes para as vivências do ser social, para a constituição da subjetividade e para as formas de sobrevivência. Ao mesmo tempo, tais condições não eliminam as potencialidades humanas de usar capacidades pessoais e coletivas para se conquistar uma vida mais digna. Sendo assim, os conflitos da ação no trabalho passam, então, a constituir um eixo primordial para entender a atividade cotidiana de trabalhadores entre as materialidades do contexto social e as intencionalidades produzidas e significadas no dia a dia, as quais potencializam ou constrangem suas disposições orgânicas, sociais e psicológicas.
A fim de examinar as múltiplas determinações da realidade das situações laborais, a PST assume a dimensão do trabalho humano para estudar as questões sociais e psicológicas inerentes aos processos organizativos da atividade prática cotidiana, situando-a concretamente nos contextos micro e macrossocial (Sato et al., 2017). A partir dessas autoras, cabe dizer que as pesquisas que se baseiam na PST utilizam instrumentos conceituais e metodológicos que buscam compreender os processos de trabalho a partir das relações entre o individual e o coletivo, entre o singular e o geral, combinando observações sobre determinantes sociais e a atividade prática singular de cada sujeito.
O trabalho humano é, então, estudado como uma atividade que envolve aspectos materiais e simbólicos. São acontecimentos cotidianos nos quais os objetivos da pessoa se encontram com uma série de determinações sociais que favorecem, ou não, as suas ações. São experiências concretas nas quais se atualiza a dialética entre as estruturas dominantes e as operações reais do sujeito trabalhador. Nestas experiências, as pesquisas que se utilizam da PST buscam observar como os processos organizativos acontecem na gestão (coletiva e individual) do cotidiano de pessoas que atuam entre o controle e a criação tácita - singular - de defesas contra a dominação (Sato & Oliveira, 2008).
Para abarcar o fenômeno trabalho assim estudado, como nos indicam (Sato et al., 2017), a PST se mostra alinhada às perspetivas sociológicas em Psicologia Social, em especial aos estudos e práticas advindas da Psicologia Social Latino-americana, em que se incluem autores relevantes como Ignácio Martin-Baró. Adicionalmente, alinha-se às produções da Medicina social latino-americana, especialmente aquelas de Asa Cristina Laurell e Mariano Noriega, bem como ao campo da Saúde do Trabalhador desenvolvido no contexto brasileiro. São também importantes fontes para a PST o Modelo Operário Italiano de Ivair Oddone e os estudos de Le Guillant.
Adicionalmente, há estudos seminais da década de 1980, desenvolvidos em contexto brasileiro, os quais, a partir da Psicologia Social, questionavam as realidades laborais. Desses estudos, destacam-se aqueles produzidos com trabalhadoras domésticas, operários, funcionários públicos, que se tornaram importantes referenciais (Esteves et al., 2017).
Ademais, as investigações e práticas em PST são também realizadas em interlocução com saberes produzidos por diversas disciplinas das ciências humanas e sociais, tais como a Sociologia, a Economia, a História e a Antropologia, dado o interesse por questões amplas que participam das determinações no mundo do trabalho (Sato et al., 2017; Oliveira, 2014).
Há, ainda, constantes diálogos com estudos e práticas que focam por diferentes ângulos o fenômeno do trabalho, dentre as quais se sobressaem a Ergologia, Clínica da Atividade, Psicossociologia do Trabalho, Saúde do Trabalhador, entre outras (Oliveira, 2014, 2017; Esteves et al., 2017).
Cabe ressaltar que, na PST, são desenvolvidos estudos essencialmente qualitativos, em que observações, entrevistas não-estruturadas, etnografia, pesquisa participante são adotadas frequentemente como estratégias metodológicas (Bastos & Uchôa de Oliveira, 2019).
A partir dos desafios a que a PST se impõe, o fenômeno do trabalho passa a ser investigado sob o enfoque das variadas formas de inserção laboral. Ou seja, cabe estudar e produzir intervenções no trabalho desenvolvido sob a égide do emprego, do trabalho informal, autônomo e/ou pejotizado, em seus mais diversos contextos, tais como nos serviços públicos e privados, no campo, na economia solidária, em associações, cooperativas, nos sindicatos, nas situações de desemprego, entre outras. Ademais, o campo da saúde do trabalhador, política pública partícipe do Sistema Único de Saúde, tem sido, desde os primórdios, um espaço fértil para o que hoje se conforma enquanto a perspetiva da PST.
As pesquisas em PST buscam reconhecer as pessoas que trabalham como sujeitos ativos, que enfrentam, resistem e subvertem as múltiplas determinações do capital que lhes impelem à sujeição. Ainda, a PST assume o compromisso colocado por Martin-Baró, que afirma a importância de desenvolver uma Psicologia Social que, como parte da Psicologia como ciência e profissão, coloque
“o saber psicológico a serviço da construção de uma sociedade em que o bem estar dos menos não se faça sobre o mal estar dos mais, em que a realização de alguns não requeira a negação dos outros, em que o interesse de poucos não exija a desumanização de todos” (Martin-Baró, 1996, p. 23).
Nesta conjunção de forças, a PST assume o desafio de compreender a realidade vivenciada por trabalhadores a partir de seus pontos de vista, focalizando, assim, os aspectos psicossociais que influenciam a produção de sentidos e a organização das condutas no trabalho. Exemplos destes aspectos psicossociais são: a história profissional - compreendida de forma indissociável da história pessoal -, as experiências, as condições espaço-temporais, os conflitos cotidianos, as táticas pessoais do agir, as relações com outras pessoas dos contextos laborais e coletividades, as crenças, a presença da ideologia dominante em suas posições sobre o mundo, além de outros acontecimentos que surjam como relevantes no movimento de aproximação do pesquisador como o seu público de interesse. Tais elementos, em seu conjunto, favorecem a compreensão das vivências no trabalho, evidenciam relações entre sujeitos, organização do trabalho e vida, bem como problemas específicos ligados ao mundo do trabalho em suas mais diversas formas de inserção.
Para nós, tal característica da PST incide num duplo desafio metodológico. Primeiro porque são as próprias informações alcançadas que nos conduzem na busca por sínteses interpretativas e leituras que iluminem a realidade estudada e que permitam a compreensão teórica dentro de um escopo epistemológico coerente. Segundo, porque defender a PST como uma perspetiva engajada de pesquisa é também afirmar o nosso compromisso ético com as pessoas que trabalham, ao legitimar os seus saberes práticos e, a partir das estratégias de pesquisa, mobilizar neles, direta ou indiretamente, reflexões que ampliem a criticidade necessária para a transformação das suas próprias realidades de trabalho.
Considerando essas características da PST, pode-se sintetizar que há, no horizonte ético-político dessa perspetiva, dentre outros muitos pontos, o interesse em investigar atividades laborais historicamente ignoradas na área da Psicologia, reconhecer o trabalho enquanto estruturante das relações sociais e do sujeito, bem como denunciar situações de trabalho degradantes, potenciais produtoras de sofrimento e adoecimento.
3. Pesquisas sobre o trabalho informal: vivências de carregadores de caminhão e trabalhadoras domésticas-diaristas
Conforme mencionado anteriormente, neste artigo trataremos de duas pesquisas realizadas a partir da PST, com trabalhadores/as informais, a fim de elucidar a potencialidade do uso de tal perspetiva. Ambas as pesquisas foram aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa dos centros de pesquisa em que estavam vinculadas antes de serem desenvolvidas, processo em que aspectos metodológicos foram avaliados e considerados adequados para as finalidades das investigações. Neste artigo, as transcrições das falas das pessoas que participaram das entrevistas são acompanhadas pelo ano em que foram realizadas.
Nas pesquisas, o trabalho informal foi assumido como aquele não regulado pelo Estado (Sato, 2017), sem acesso a direitos trabalhistas, e que abre portas para distintas condições de precariedade (Antunes, 2013).
No sentido de compreender os variados meios de sobreviver pelo trabalho não regulado pelo Estado, é pertinente absorver o que (Sato, 2017) apresenta como a polimorfia do trabalho em centros urbanos. Para estudar o heterogêneo campo de trabalhos à margem do mercado formal, a autora ressalta o desafio de perceber e respeitar as singularidades de suas diferentes faces, indicando que “Nesse ‘fora da regulação’ observa-se um conjunto de características de trabalhar e de lógicas próprias para criar trabalho, além de regras que orientam a convivência das pessoas nos contextos laborais” (p. 161). Segundo a autora, a engenhosidade popular para criar trabalhos repercute, na prática, em situações como a combinação de rendimentos, o movimento pendular de trânsito entre a formalidade e informalidade, a construção de distintas redes de sociabilidade, a participação da família como núcleo social de solidariedade, a composição inventiva de materiais, conhecimentos e experiências e, ainda, a influência de aspectos culturais e territoriais para a configuração dos arranjos produtivos.
Ainda, entendemos que os trabalhos que acontecem fora de padrões regulamentares da legislação trabalhista ou fiscal expressam também algumas regularidades quanto à relação do sujeito trabalhador e o seu contexto. Investigar as diversas situações cotidianas do trabalho desprotegido (Sato, 2017) evidencia condições espaciais e relacionais, instrumentos, saberes práticos e negociações que não acontecem de forma aleatória e imprevisível. São processos organizativos que, mesmo sem alguma proteção regulamentar, acontecem sob os cuidados de pessoas que buscam a sobrevivência pelo trabalho.
Concordamos que, tanto pelo seu enorme contingente populacional como pela realidade concreta em que tais processos se constroem, os trabalhos ditos “informais” possuem na verdade múltiplas formas, formas estas que devem, sim, ser estudadas pelas ciências do trabalho e pela ciência psicológica.
Para a composição deste artigo, as escolhas realizadas a partir dos acervos de dados das pesquisas a serem apresentadas no item a seguir, orientaram-se por seus pontos em comum. Além da adoção da PST que sustenta escolhas teóricas e metodológicas, são convergentes nas pesquisas desenvolvidas o aprofundamento do conhecimento sobre situações de trabalho de categorias profissionais historicamente pouco estudadas no país, bem como aspectos que evidenciam os desafios cotidianos que as pessoas participantes das pesquisas relataram vivenciar. Para este artigo, a análise dessas informações selecionadas foi estruturada de modo a demonstrar as vivências no trabalho informal em seus contornos específicos nas categorias profissionais estudadas e as conexões entre trabalho e sobrevivência, identificadas como transversais às vivências.
Como poderá ser visto a seguir, tratamos da sobrevivência em sentido amplo, uma vez que esta diz respeito à busca por formas de garantir renda e acessos que permitam a manutenção da vida, bem como o enfrentamento no cotidiano do trabalho para atingir esse fim. Ademais, ao compreender a intrínseca relação entre trabalho e sobrevivência em seus contornos específicos na informalidade, conecta-se sobrevivência a situações de trabalho que, precárias em diversos aspectos, vão produzir potencialmente ameaça de degradação da vida. Ao situar este artigo na perspetiva da PST, pretendemos demonstrar como o trabalho em condições de informalidade se produz no cotidiano de ações desprotegidas e inseguras, as quais expressam alguma subordinação da pessoa em relação ao contexto, mas que não anulam seus saberes práticos e astúcias na busca pelos objetivos pessoais.
Considerando que as contribuições da PST nos abrem a possibilidade de compreender as experiências de pessoas em situação de trabalho desprotegido, afirmamos que as duas pesquisas que apresentaremos a seguir objetivam estudos a partir das vivências enunciadas por trabalhadores. Percebam que o próprio movimento de aproximação desafia a novos procedimentos para o alcance de informações, demanda categorizações produzidas a partir do que foi observado nas aproximações com as pessoas e em suas falas, mobiliza a busca por leituras que permitam compreender de forma contextualizada o que foi vivido, bem como sintetiza interpretações sobre a configuração psicossocial da realidade em questão.
3.1. Trabalho informal e sobrevivência entre os carregadores de caminhão
Nesta seção, elucidamos a adoção do enfoque da PST através da exposição de resultados de uma pesquisa de doutorado (Silva, 2023) que teve como foco trabalhadores por conta própria no Brasil, aqui entendidos como os que atuam como autônomos, informais, e/ou como Pessoa Jurídica, individual ou com sócios, e que não têm trabalhadores subordinados de forma contínua (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2021). A investigação, realizada entre os anos de 2018 e 2023, teve como pano de fundo o questionamento da noção de que o trabalho por conta própria seria a saída adequada para todas as pessoas que necessitam trabalhar, expressa em notícias da grande mídia, em mudanças na legislação trabalhista que incentivam essas modalidades de inserção laboral, em discursos oficiais sobre empreendedorismo, entre outras situações.
Na pesquisa de doutorado, o critério de participação foi pertencer às categorias profissionais de interesse há, no mínimo, seis meses, dada a relevância da experiência nas atividades profissionais para os objetivos da pesquisa. Ainda, foram consideradas potenciais participantes as pessoas que se enquadrassem como trabalhadoras por conta própria, sendo, portanto, trabalhadores individuais, que consolidavam sua renda exclusivamente através de seu trabalho, independentemente de contribuírem ou não com a Previdência Social, de terem ou não cadastro como Pessoa Jurídica.
Neste artigo serão apresentados relatos e reflexões relativos ao informado por cinco participantes que são carregadores de caminhão, categoria profissional que congrega uma diversidade significativa de atividades de movimentação manual de materiais, em que se incluem alimentos, matéria-prima e produtos industrializados. O tipo de produto movimentado varia de acordo com o local em que atuam, assim como a modalidade de inserção no mercado de trabalho. As pessoas entrevistadas para a pesquisa desenvolvem suas atividades informalmente no interior do estado de São Paulo, fazem parte desta categoria profissional há, no mínimo, 15 anos, e têm mais de 55 anos de idade. Os nomes utilizados para esses participantes são fictícios, visando a proteção de suas identidades: Carlos, Paulo, Francisco, Luiz e Raimundo.
O contato com esses trabalhadores se deu após uma busca intencional daqueles que pudessem relatar as vivências profissionais pertinentes à categoria profissional estudada. Além dessa estratégia, foi utilizada a indicação, por parte de pessoas entrevistadas, de outros potenciais participantes, sendo que ambas as formas de aproximação foram essenciais para que a pesquisa se tornasse possível.
Tal busca passou por contatos com profissionais de unidades de saúde próximas aos locais de seus trabalhos, conversas informais com pesquisadoras(es) que anteriormente investigaram essa categoria profissional, com membros de uma associação de Psicologia Social, e, por fim, por um contato telefônico com a administração do entreposto público em que parte desses trabalhadores atuam. No conato com o entreposto, a indicação de uma liderança local permitiu uma primeira conversa de apresentação da pesquisa, a partir da qual se iniciou um processo de aproximação do entreposto de mercadorias e o contato com carregadores de caminhão que ali trabalhavam. Tal liderança apresentou os carregadores que se tornaram participantes da pesquisa e, um deles esteve presente nas demais visitas ao entreposto, e também intermediou o contato com outros dois carregadores de caminhão, que trabalham à beira de uma estrada próxima ao entreposto. Ainda, depois de um longo período transcorrido do contato com as profissionais da unidade de saúde, uma delas compartilhou o contato de mais um carregador de caminhão que aceitou participar da pesquisa.
Durante o desenvolvimento da pesquisa, foram realizadas observações do cotidiano de trabalho, bem como conversas informais e entrevistas com os trabalhadores que aceitaram participar da pesquisa, após tomarem contato com seus objetivos. As entrevistas tinham como norteadores a trajetória laboral e temas relativos ao trabalho. No entanto, no lugar de uma entrevista estruturada, foram privilegiadas as formas singulares que relatavam sobre seus trabalhos e, a partir de suas falas, se tornava possível aprofundar os temas de interesse da pesquisa. É válido ressaltar que parte da pesquisa se deu no contexto de pandemia, tendo sido realizada uma entrevista por telefone, devido à necessidade de isolamento social, bem como contatos telefônicos breves com outros participantes, relacionados ao interesse nos impactos do contexto de emergência sanitária em suas vidas e trabalhos. Os relatos utilizados neste artigo foram retirados do diário de campo da pesquisa, em que foram centralizados todos os registros referentes aos contatos com as pessoas participantes da pesquisa.
3.1.1. Um breve contexto do trabalho dos carregadores de caminhão entrevistados
O cotidiano de trabalho dos carregadores de caminhão tem em comum a demanda de movimentação manual de materiais, para a qual utilizam o corpo como principal instrumento de trabalho. Vejamos algumas características das situações de trabalho informadas pelos participantes da pesquisa.
Duas das pessoas entrevistadas, Carlos e Paulo, trabalham em um entreposto público, no qual fazem a carga, movimentação e descarga de frutas, legumes e hortaliças. Movimentam manualmente itens que variam de 20 a 90 quilos por unidade, que são organizados em um carrinho de propulsão humana que comporta cerca de 700 quilos. Após organizar a carga no carrinho, o puxam até os caminhões ou carros dos clientes, retiram os produtos um a um do carrinho e organizam a carga nos veículos. A cada “carrinhada” concluída, recebem a quantia fixa de R$20, valor pago por compradores que levarão os produtos para supermercados e feiras, ou empresários que revendem os produtos no local, chamados de permissionários. No entreposto, são movimentadas cerca de 13 mil toneladas de alimentos por mês e, para comportar tamanha circulação de produtos, a estrutura física do entreposto é composta por grandes galpões de corredores estreitos, conectados por rampas a amplos estacionamentos descobertos, com ruas esburacadas e mal asfaltadas. O local funciona em dias alternados, com comercialização de produtos durante a madrugada, para atender as necessidades dos compradores. Em geral, os carregadores trabalham três noites por semana, e iniciam sua jornada às duas horas da manhã, sem prazo para encerramento.
As outras três pessoas entrevistadas, Raimundo, Francisco e Luiz, trabalham como chapas de caminhão, carregadores que oferecem seus trabalhos à beira das estradas, em locais construídos por eles, chamados pontos de chapas. Seus contratantes principais são caminhoneiros que transitam nas rodovias e precisam de alguém que carregue e/ou descarregue os mais variados produtos em seus destinos - de pneus a móveis pesados, por exemplo -, ou que conheça a região e que possa guiar os contratantes quando estes a desconhecem. Trabalham usualmente de segunda a sexta, dias de maior movimento nas estradas, chegam ao ponto por volta das cinco horas da manhã e não conseguem prever o encerramento da jornada de trabalho, o que depende de cada contratação. Os valores que recebem pelo trabalho são negociados com cada contratante, e variam de acordo com o tipo de produto a ser movimentado e o destino. Entretanto, qualquer mudança em relação ao negociado não produz pagamento adicional, embora o valor possa ser reduzido caso haja menos carga do que o previsto.
3.1.2. Os elos entre trabalho, renda e sobrevivência
(Prandi, 1978), autor da Sociologia que produziu relevante pesquisa sobre trabalho por conta própria no contexto brasileiro, aborda o rendimento decorrente dessa modalidade de inserção no mercado de trabalho como renda-trabalho, ressaltando que se trata de um valor dependente do uso direto da força de trabalho, bem como dos meios que o trabalhador tem para realizar suas atividades. O autor afirma ainda que a renda-trabalho é “componente da realidade do cotidiano, medida de oportunidades, indicador de desigualdades sociais, o rendimento do trabalho (renda-trabalho ou salário) é a expressão mais direta, mais facilmente observável e iniludivelmente a face mais exposta, mais aparente, das condições materiais de vida” (p. 76). Esse apontamento convida a refletir sobre as situações vividas pelos carregadores a partir da renda que obtêm de seus trabalhos.
Considerando os relatos dos entrevistados, o valor recebido por suas atividades profissionais girava em torno de R$1.500,00 e R$1.800,00 mensais, o que equivalia a pouco mais de um salário-mínimo nacional à época da pesquisa. Ainda, como aponta Francisco, o trabalho como carregador tem a incerteza da renda como um elemento relevante:
“O dia que tem serviço, a gente trabalha; o dia que não tem, a gente não ganha nada. Tem dia que ganha 50, tem dia que ganha 300, é assim, é um dia pelo outro. Tem dia que você vem aqui e não tem nada, passa o dia todinho aqui e não pega nada” (2019).
A fala de Francisco revela a precariedade a que esses trabalhadores estão expostos, se considerada uma das acepções de precariedade identificadas por (Aquino e Moita, 2018), qual seja, aquilo que se mostra “instável, incerto, fugaz, delicado e frágil” (pp. 306-307). Tal situação também pode ser identificada no relato de Carlos, que aponta ainda que há custos relativos ao trabalho com os quais precisam arcar, como a compra e manutenção dos carrinhos no entreposto, e nos casos de perda ou avaria dos produtos manuseados. Todos esses custos, assumidos pelos trabalhadores, evidenciam o risco de comprometer uma parcela da sua renda para poder continuar trabalhando.
Analisando os valores recebidos, há uma significativa distância entre o que recebem e o Salário-Mínimo Necessário (SMN) para se possa garantir as necessidades vitais básicas, segundo métrica desenvolvida pelo (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, 2020). Em 2019, ano em que os participantes mencionaram os valores supracitados, o SMN era de R$ 3928,73 em janeiro e R$4342,50 em dezembro 1. Logo, os trabalhadores perfaziam menos da metade da renda necessária para a sobrevivência digna naquele ano no país.
Ao considerar que, no modo de produção capitalista, o dinheiro é o principal mediador do acesso a bens essenciais ou desejados (Prandi, 1978), conhecer a renda desses trabalhadores revelou um aspecto crucial de suas vidas: a baixa renda proveniente do trabalho e as incertezas a ela associadas geram dificuldades no acesso a alimentos e moradia.
Luiz, ao falar do cotidiano de trabalho como chapa, contou que já passou “por semana inteirinha sem pegar nada. Aí a gente tem que ter guardado, tem que ter comida guardada” (2019). Francisco, na mesma direção, relatou que, devido à incerteza sobre a renda mensal, ele armazena mantimentos suficientes para cobrir suas necessidades básicas de alimentação por longos períodos. Em suas palavras:
“eu quando faço uma compra lá em casa, eu faço compra pra dois, três meses. Já abasteço a casa de tudo, aí fica só comprar verdura, mistura... agora as coisas necessárias mesmo eu já compro bastante. Eu já comprei até 14 pacotes de arroz [risos]. Aí eu falo pra mulher: “Se eu trabalhar, trabalhei, se não trabalhar, comer nós vamos”. Óleo eu compro de caixa fechada, vem 20 litros de óleo dentro da caixa e eu compro de caixa fechada. Eu compro óleo duas vezes por ano. Eu fiz uma compra faz mais de quarenta dias, tá tudo lá ainda” (2019).
O trabalhador afirmou também que, como estavam em um período de poucas contratações, com muitas semanas sem nenhum trabalho, pediu para que seu irmão fosse pescar para garantir parte da refeição do dia. Na mesma direção, um carregador do entreposto descreveu contar com doações dos permissionários para garantir as verduras, legumes e frutas da semana, o que permite economizar cerca de cinquenta reais no período.
Acerca da moradia, duas pessoas entrevistadas apontaram que, por conta de quedas nas contratações e, consequentemente, da renda mensal, passaram a ter dificuldades para pagar o aluguel de onde moravam. Para lidar com tal dificuldade, o chapa Luiz mudou-se para uma creche pública abandonada, passando, portanto, a viver em condições irregulares.
“eu tava pagando aluguel até pouco tempo atrás, mas aí o serviço caiu muito que não tava dando. Eu tava já pedindo ajuda pra amigo, pra parente, pra Deus. Agora arrumamos aqui atrás nessa creche, entramos lá nuns quatro, cinco, arrumamos a luz, lavamos, pintamos uns pedaços, estamos lá dentro” (2019).
Já o trabalhador Paulo, carregador do entreposto, passou a viver em situação de rua, tendo relatado que dorme diariamente em uma grande avenida da cidade, o que relatou com importante constrangimento, em um contato posterior à entrevista realizada para a pesquisa. Na ocasião, durante uma visita no entreposto, ele me interpelou dizendo “Você sabe que aquele dia que a gente ficou conversando, eu queria ter te contado melhor que... Sabe onde moro agora? Moro na rua, lá na General Carneiro (longo silêncio). Eu queria ter te contado por que era a verdade” (2019). Seu relato se somou a outro, em que contou que “eu sou um cara vaidoso, eu gosto de andar o melhor possível, só que eu não tenho nem condição de entrar numa casa, arrumei casa, mas é que aqui não tá entrando dinheiro” (2019).
Paulo também evidenciou em seu relato que usa a estrutura do entreposto como uma espécie de substituto de alguns itens de casa, como espaço para banho e cuidado com as roupas. Ademais, por conta dos longos anos de trabalho no local, recebe doação de refeição de um restaurante local, a respeito do que mencionou “eu pego comida lá, só três horas da tarde também. Aí eu pego comida pra mim comer e pra mim se manter no dia seguinte, porque o café da manhã é algo sustentável pra que a gente não fique... fraco” (2019). Ou seja, essa doação garante que tenha acesso a alimentação no dia em que a recebe e no dia seguinte, desde que os legumes e frutas sejam de fácil consumo, uma vez que não possui local para cozinhar e/ou armazenar alimentos.
A situação vivenciada por Paulo converge com o apontado por (Sato, 2017), quando indica que “a sociabilidade do lugar e as relações próximas e pessoalizadas acolhem e incentivam a criação de determinados tipos de trabalho e constroem relações de trabalho e de ajuda. Vida e trabalho estão imbricados e situados antropologicamente” (p. 170). Isso porque a organização do cotidiano e a sustentação da vida do trabalhador estão diretamente conectadas com o local em que trabalha e com as relações ali estabelecidas. Ainda, Paulo, assim como Luiz, impossibilitados de garantir suas condições de moradia através da renda proveniente de seus trabalhos, se colocaram em situações de risco de despejo e de violência física e simbólica, por estarem em situação irregular e/ou de rua, além de viverem restrições das mais diversas.
Adicionalmente, a incerteza relativa à renda ainda faz com que os trabalhadores entrevistados busquem outros trabalhos informais para composição da renda mensal, o que passa por pequenos trabalhos como motorista de caminhão e como vendedor ambulante de frutas e legumes, o que amplia ainda mais a jornada de trabalho já extensa, extenuante e sem previsão de término. A respeito dessa busca por outros trabalhos, Carlos descreveu que:
“eu tava indo fazer uns bico numa lanchonete aí, mas assim, eu falei pra minha esposa, daqui uns dias eu vou procurar uma camarada aqui, aí a gente faz feira de sábado aqui também, mas tá difícil viu? Hoje aqui eu mandei uns currículos pra fora, aí, se me chamarem, você pensa que eu não vou? Pra vir de madrugada aqui, que entra oito horas, trabalhinho em marcenaria, em oficina, entendeu, em outros trabalhos” (2019).
A fala do trabalhador demonstra que construir arranjos de diversos trabalhos para a composição da renda também se faz desafiador e demanda buscar de forma sistemática por bicos e oportunidades de trabalho que tragam certa regularidade financeira. Estratégias como essas indicam o que (Sato, 2017) chamou de ‘juntar pedaços’, ou seja, trata-se de uma situação em que a “condição para sobreviver depende de recursos provenientes de diversas fontes” (p. 164).
O mesmo trabalhador ressaltou sua preocupação com a perda do poder de compra que vinha sendo experienciada no país no período em que a entrevista foi realizada, em 2019, o que trabalhador indicou repercutir em dificuldades em comprar alimentos e pagar contas mensais. Disse que, depois dessas despesas, não sobra nenhum valor excedente para poupar, comprar itens não essenciais ou pagar a previdência.
O não pagamento da previdência também foi mencionado por outros três entrevistados, o que evidencia que a parca proteção social a que poderiam acessar por meio da contribuição com o sistema previdenciário brasileiro fica dificultada ou mesmo impossibilitada, dada a insuficiência de renda para cumprir com essa contribuição. Esse elemento foi apontado por Luiz como uma das vantagens do trabalho com carteira assinada, o qual busca “Faz tempo, faz uns 10 anos (...) Eu acho melhor tá registrado e pagar o INSS do que pagar avulso, aí já vem descontado em folha, né. Mas só que o direito é um só” (2019). Dada a importância que atribui ao trabalho com direitos, contou que “A hora que aparecer eu vou. Xé, eu tô aqui como provisório, quer dizer... é uma chuva que eu espero cessar, mas não cessa” (2019).
Aqui, vemos o indicado por Sato, 2017), quando afirma que “A urgência e as circunstâncias da vida determinam as possibilidades e os limites em termos de trabalho e de formas de sobrevivência possíveis” (p. 166). Nas situações vividas pelos participantes, ficam evidentes as distintas estratégias que, presentes em seus horizontes de ação, possibilitam a manutenção da sobrevivência, ainda que em níveis significativamente precários.
Essas reflexões reverberam nas discussões de (Castel, 2005), que ressalta que a vida é repleta de situações que podem conduzir os indivíduos à degradação. Dando como exemplos “a doença, o acidente, a velhice sem recursos, as circunstâncias imprevisíveis da vida que podem culminar, em casos extremos, na decadência social” (Castel, 2005, p. 7). O autor defende que, na ausência de proteção contra essas situações, faz-se presente a incontrolabilidade em relação ao presente e ao futuro. Há uma impossibilidade de projetar-se, o que mantém os indivíduos em constante condição de insegurança social. De acordo com o mesmo autor, “o sentimento de insegurança é a consciência de estar à mercê dessas eventualidades” (p. 27). Ele acrescenta que esse quadro “faz da vida um combate pela sobrevivência dia após dia, cuja saída é cada vez mais incerta” (p. 31), assim como se pode ver nos relatos dos trabalhadores entrevistados.
3.1.3. Trabalho, saúde e sobrevivência
As questões ligadas à sobrevivência podem ser discutidas também em suas relações com questões de saúde, como mostrado por um carregador do entreposto. Carlos descreveu que, após vinte anos de uma cirurgia no joelho, voltou a sentir intensas dores, que se agravam em madrugadas frias, devido às exigências físicas impostas por seu trabalho, expressas nas longas caminhadas com os carrinhos carregados e na necessidade de subir e descer muitas vezes dos caminhões. A possível indicação de uma cirurgia no joelho, e outra demanda cirúrgica ligada ao sistema respiratório, o levaria a um afastamento de longo prazo do trabalho, o que desencadeou intensas preocupações que se somaram àquelas relativas à renda. Ele contou que “O médico diz que é desgaste, tem que operar, e o duro é que vou ter que ficar afastado daqui [entreposto], vai diminuir o dinheiro e já viu” (2019).
Tal cenário produziu, de acordo com o trabalhador, grande carga de estresse, bem como dores abdominais relacionadas pelos médicos a seu estado emocional. Em suas palavras:
“Tem dois meses pra cá que eu não tomo remédio, amiga. Andei com umas dores na barriga, amiga do céu, bem no pé da barriga, até pensaram “ah, é apendicite”, que nada! Era uma dor que eu urrava que nem elefante, cara. Me mandaram pra Salto de Itu, fui pra Itapetininga fazer os exames computadorizados, não deu nada. Sistema nervoso [faz gesto com a mão apontando o galpão central do entreposto]. Foi acúmulo, amiga. Eu falei “olha, eu vou operar a perna, vou operar o nariz”, aí se torna psicológico um pouco também (...) aí o entreposto desse jeito que você tá vendo, as contas chegando, sempre sobrou e de repente passou a não sobrar mais. Aí você fala (...), tô trabalhando igual, trabalhando a mesma coisa! Só que financeiramente não tava sobrando nenhum. Aí o que acaba acontecendo? Sistema nervoso!” (2019).
(Seligmann-Silva (2011), ao focalizar a dimensão do desgaste mental, expressa a necessidade de ter em conta sentimentos, pensamentos, cognição, para além das questões ligadas à estrutura e ao funcionamento do sistema nervoso, de modo a superar o olhar biologizante que se pode dedicar a tais situações. Na história desse entrevistado, a apreensão de afastar-se do trabalho, que impactaria em sua renda, já menor do que o necessário para a manutenção de sua vida, e em suas condições de sobrevivência, se mostrou produtora de desgaste à saúde global do trabalhador.
As relações entre saúde e sobrevivência também foram evidenciadas no relato do chapa Raimundo, que sofreu um acidente de trabalho. Ele descreveu que estava voltando para a cidade em que residia com o caminhoneiro que o havia contratado, quando o caminhão tombou em uma curva muito fechada. Por conta do acidente, não conseguia respirar adequadamente devido a inúmeros ferimentos e grandes hematomas, mas considerou ter tido “sorte, porque não quebrou nada” (2021). Apesar desse ponto, disse que ficou:
“três meses sem trabalhar, de cama, e tomando um monte de remédio. Perdi Natal, perdi Ano Novo, fiquei sem serviço. Tive que negociar aluguel, falei pro dono da casa: ‘olha, sofri um acidente, o senhor sabe que eu trabalho por conta, não pago INSS, minha mulher também tá desempregada’. Foi um período muito duro” (2021).
Esse mesmo trabalhador testemunhou um acidente de um colega, também chapa, na beira da rodovia em que trabalhavam juntos. Seu colega estava atravessando a rodovia, foi atropelado por um carro e, na sequência, por dois caminhões, e seus restos mortais foram recolhidos com uma pá, sendo possível reconhecê-lo por causa da mochila e do tênis que usava. O trabalhador relatou que esse foi um dos momentos mais difíceis de sua história de trabalho, vivido com grande tristeza e temor.
Em estudo anterior (Silva, 2018) foi possível identificar que as vivências relativas aos acidentes de trabalho produzem impactos significativos em termos das relações simbólicas e materiais com a atividade, bem como podem ser propulsoras de quadros de transtorno mental. Logo, cabe colocar o relatado pelo trabalhador em um quadro mais amplo de sofrimento decorrente do que viveu em sua vida e na perda do colega, que repercutiu significativamente em suas emoções.
A ameaça à vida presente no contexto de trabalho, descrita pelo entrevistado, também foi evidenciada entre os trabalhadores durante o período da pandemia do Coronavírus, em que se viram impelidos a continuar trabalhando pelas preocupações com a renda e sobrevivência. Trabalharam ininterruptamente e ficaram expostos a um alto risco de contágio, já que, em suas atividades, precisam ter contato com pessoas que estão continuamente em trânsito e não conseguem trabalhar a distância. Carlos, ao falar da situação vivida ao longo da pandemia no entreposto, expressa sua intensa preocupação, enfatizando que
“Deveria haver uma fiscalização, sabe? ...Mas viu, tá largado. Largado... Não tem ninguém nem aí, quem entra, quem trabalha, menos da metade tá de máscara. Desde o começo foi assim... É perigoso, bota perigoso nisso. Que nem eu, eu tô sarado, tô sadio, mas sou grupo de risco, pô. Você entendeu? E se você quisesse fazer alguma coisa, quisesse multar por estar sem máscara, tals, eles têm como, eles têm fiscalização, têm segurança, mas ninguém quis não. Tem ninguém pela gente, viu?” (2021).
Já o chapa Francisco, ao contar sobre seu cotidiano de trabalho na pandemia, relatou que foi necessário negociar constantemente com os caminhoneiros que o contrataram, com vistas a proteger sua saúde. Nesses momentos, disse ter deixado de aceitar trabalhos quando o motorista não aceitava seus termos, os quais incluíam o uso permanente de máscara e de álcool em gel, além de manter as janelas do caminhão abertas para garantir a ventilação. Contou também que comprava álcool em gel para as viagens, de modo a usá-lo a cada nova superfície tocada, o que tornou a rotina de trabalho complexa e dilemática. Francisco afirmou que
“Pro lado de doença, com esse negócio aí, como é que a pessoa vai trabalhar? Não tem jeito! Tudo o que você vai fazer com medo, você vê uma coisa, você vai pegar, você já pensa no tal do vírus. Você vê outra coisa, você vai pegar, você já pensa no vírus de novo!” (2021).
Mesmo diante do contexto de pandemia e das expressivas preocupações com a contaminação pelo vírus, todos os trabalhadores entrevistados se mantiveram trabalhando de forma ininterrupta, tanto pelas preocupações referentes à renda naquele momento, quanto referentes ao futuro, por não saber quais seriam os rumos do trabalho após o período de pandemia. Diante desse cenário, tanto Carlos quanto Francisco ressaltaram que as preocupações com o contágio eram perturbadoras, provocando estresse, desesperança, aumento dos níveis de ansiedade e intensificação dos ritos de limpeza propagados como importantes para evitar contágio.
Renda insuficiente e incerta, dificuldades para garantir sustento, moradia, e previdência, exposição a riscos no trabalho que ameaçam a sobrevivência, a qual, como demanda implacável, impele os trabalhadores a continuar em atividade constante, a qualquer custo, são elementos que têm como ponto transversal a precariedade que se faz presente nas condições de vida e trabalho. Assim como apontam (Aquino e Moita, 2018), a precariedade diz respeito a uma condição multidimensional, que envolve tanto condições de trabalho e insegurança material, quanto aspectos subjetivos e simbólicos relacionados à incerteza e às dificuldades de projetar-se no futuro.
Ainda, dado que o trabalho das pessoas entrevistadas não as garantiu de alçar posições que efetivamente as afastassem da luta diária pela sobrevivência, é possível afirmar que a precariedade se encontra com a inclusão perversa (Sawaia, 2006), uma vez que são trabalhadores inseridos no mercado de trabalho e que acessam algum nível de renda, mas estão continuamente à beira da escassez e das condições de vida das mais precárias. Logo, trata-se de um processo que mantém ou amplia a marginalização e a desigualdade social, ao passo que o trabalho não se torna instrumento para equidade, mas mantém os trabalhadores sob sujeição frente às demandas de sobrevivência. Diante do conteúdo aqui exposto, ressaltamos a impossibilidade de considerar o trabalho informal como saída adequada para todas as pessoas que trabalham, pois o que se evidencia nas situações enfrentadas pelos carregadores é que as incertezas e a falta de direitos se mostram importantes mecanismos de manutenção da abissal desigualdade social estruturante do modo de produção capitalista, e que se reproduz historicamente no mercado de trabalho.
Em síntese, nesta pesquisa, a adoção do enfoque da Psicologia Social do Trabalho sustentou a compreensão de uma ocupação pouco estudada e permitiu evidenciar situações de trabalho historicamente ignoradas. As entrevistas nesta pesquisa permitiram ir muito além da noção de renda enquanto um dado estritamente numérico, uma vez que mostraram a relação da renda com as condições singulares de vida relatadas pelos entrevistados, as quais produzem efeitos significativos do ponto de vista emocional, bem como a exposição a riscos à saúde e às dificuldades em termos de manutenção da vida. Outrossim, a abrangência da PST criou condições para interpelar a ideologia capitalista presente no discurso do trabalho por conta própria, em que se inclui o trabalho informal, que se mostra mais como um mecanismo que oculta a exclusão e a miséria, demarcando as possibilidades distintas de sobrevivência e constrangendo as possibilidades de vida das pessoas entrevistadas.
3.2. Os dramas do trabalho e da sobrevivência de domésticas-diaristas
Apresentamos agora os principais aportes e resultados de uma pesquisa de doutorado que focalizou as relações entre o trabalho e a sobrevivência tomando como base aproximações com a realidade concreta vivida por 42 trabalhadoras domésticas-diaristas residentes na cidade de Fortaleza, no estado do Ceará (Lima, 2022).
O projeto escolhido para executar a pesquisa foi o Centro do Trabalhador Autônomo (CTA), o qual cadastra e encaminha trabalhadores autônomos sem a necessidade de contratos formais. Nele, verificou-se a amplitude histórica, a representação numérica e a riqueza dos fatos narrados pelas trabalhadoras que realizam serviços domésticos na modalidade de diaristas. Essa era a grande maioria dos encaminhamentos da instituição. Assim, as aproximações aconteceram a partir de conversas nas filas de espera, em oficinas temáticas, entrevistas individuais agendadas e depois - com a necessidade de adaptação ao contexto de distanciamento devido a pandemia - as aproximações progrediram para conversas via aplicativos de mensagens e vídeos, ligações, visitas domiciliares, conversas em ambientes abertos e reservados. A sequência de aproximações não seguiu uma lógica linear e foi constantemente desafiada pela necessidade de adaptação aos tempos, ambientes e exigências das trabalhadoras, bem como adaptação das expectativas do pesquisador em relação àquilo que elas realmente queriam relatar sobre os conflitos vivenciados em seus cotidianos de trabalho.
O interesse pelas domésticas-diaristas foi corroborado pela possibilidade de identificar nesta categoria a conjunção de determinações históricas, políticas e econômicas que ilustram as vulnerabilidades e as lutas dessas mulheres pela sobrevivência através do trabalho. Ao longo da pesquisa, ficou evidente que tais conflitos estão diretamente relacionados ao processo de valorização-desvalorização que elas enfrentam ao exercerem serviços domésticos, ou outros trabalhos. São experiências concretas nas quais diferentes condições, habilidades, atores, vínculos e objetivos entram em cena no intercurso de experiências socialmente determinadas, mas também singularmente produzidas nas suas relações.
Para compreender como a sobrevivência envolve acontecimentos do cotidiano juntamente com os processos interacionais e significativos a partir dos quais as trabalhadoras organizam a sua conduta, a pesquisa fez uso de duas fundamentações teóricas que têm em sua base a crítica aos métodos abstratos em Psicologia e, numa perspetiva histórica, priorizam construir essa ciência a partir dos processos sociais e dialéticos que envolvem o desenvolvimento da experiência humana. São elas a psicologia concreta de (Politzer, 1998) e a psicologia histórico-cultural de (Vigotski, 1995). Utilizar tais contribuições para uma pesquisa construída na perspetiva da PST se torna viável porque ambas as bases estabelecem a relevância das condições sociais de vida para interpretar as relações dialéticas do sujeito em seu meio de atuação, configuração de sentidos e organização da conduta.
Sinteticamente, a observação dos dramas do trabalho e da sobrevivência se vale da noção de drama humano em (Politzer, 1998) ao considerar que a tarefa da psicologia concreta é interpretar a singularidade dos fatos psicológicos tomados como “segmentos de vida do indivíduo particular” (p. 67). Nesta perspetiva, os dramas humanos configuram-se como modulações da experiência do sujeito, segmentos de vida enunciados com a originalidade de seu ponto de vista e dos sentidos que ele elabora para as suas experiências.
Por isso, para uma apreensão dialética dos conflitos vividos, se fez necessário aprofundar o entendimento sobre como a consciência se produz nas experiências e organiza a conduta das pessoas, quer dizer, como a sequência de fatos psicológicos enunciados são significados e medeiam as ações do sujeito. Para tanto, a pesquisa se vale das contribuições de (Vigotski, 1995) sobre os processos de significação. A partir deste aporte, foi possível examinar as dimensões concreta, relacional, teleológica e valorativa que envolvem a atividade de trabalho em sua dinâmica funcional, entre os significados culturais e os sentidos pessoais que organizam a conduta particular.
Após seguidas aproximações durante os anos de 2019 e 2020, a pesquisa avançou na interpretação dos conflitos enfrentados ao identificar as principais similaridades e diferenças dentre os acontecimentos enunciados pelas trabalhadoras, organizando-os em três enredos dramáticos, os quais integram as maneiras de agir destas mulheres em seus processos sociais de trabalho. No entanto, tais enredos dramáticos não devem ser entendidos como processos completamente determinantes e que sirvam como roteiros fechados da vida no trabalho. A diferenciação entre os enredos dramáticos deu-se pela intencionalidade significativa (Politzer, 1998) das enunciações, ou seja, dos sentidos atribuídos às ações enunciadas ao se submeterem aos objetivos dos contratantes, ou ao reagirem às submissões pela valorização de si, ou ainda ao participarem de coletivos horizontalizados que influenciam as escolhas no trabalho. Para explorar as configurações dos enredos dramáticos enunciados, a pesquisa constata que são processos sociais complexos (com múltiplas determinações); simultâneos (com sobreposição de enredos num mesmo segmento de vida); interdependentes (há correlação funcional de sentidos e ações dentre diferentes enredos); e heterogêneos (expressões plurais do drama).
Os três enredos identificados apontam para a possibilidade de interpretar a dinâmica dramática da sobrevivência por meio da historicidade das ações e significações no percurso pessoal das experiências profissionais, revelando a multiplicidade de interações sociais, sentidos e intencionalidades do trabalho. A dinâmica inacabada dos enredos dramáticos se revela a partir de conflitos interligados entre si e em constantes transformações. Sendo assim, a partir da pesquisa, propõe-se que a caracterização dos dramas humanos no trabalho não significa uma visão dicotômica da vida real, não representa a descrição de práticas sociais que são “isso ou aquilo”. Ao contrário, e de uma forma ambígua, a simultaneidade dos conflitos dramáticos expressos pelas domésticas-diaristas descrevem acontecimentos que são “isso e aquilo” ao mesmo tempo, interpretando-os dentro de uma lógica que envolve a polissemia das práticas sociais (Chauí, 1994). A seguir caracterizamos os três enredos dramáticos - que não são necessariamente os únicos, mas foram os três que o pesquisador delimitou em suas análises a partir das informações acessadas. Cada enredo é devidamente argumentado e exemplificado com enunciações que denotam algumas vivências dramáticas alcançadas. Nas transcrições incluímos os nomes reais das trabalhadoras - elas autorizaram a sua divulgação a partir de assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
3.2.1. O Servir
Neste enredo, observam-se os processos de dominação no trabalho desvalorizado. Aqui não se enquadram os serviços voluntários e altruísticos, mas o trabalho realizado em meio às coerções expressas na submissão de pessoas que vivenciam violências físicas e simbólicas para sobreviver. Trata-se de vivências como a relatada por Antônia: “às vezes chego na casa da cliente e ela pede que faça serviços gerais, eu digo que sou cozinheira, faço cara feia, mas a mulher faz outra cara mais feia que a minha e eu termino fazendo o que ela pede” (2019). Neste enredo observa-se que a vida e o trabalho das domésticas-diaristas estão inicialmente marcados pelas necessidades mais imediatas em busca de sobrevivência, nas quais as ações assumem feições de desvantagem para a trabalhadora, e de controle coercitivo pelas pessoas que as contratam.
Nesta linha de raciocínio, os dramas do servir representam as expressões do sofrimento ético-político (Sawaia, 2006) em meio aos processos de exclusão social, vivenciados como necessidades não atendidas e como deslegitimação social. Situações como a relatada por Fátima não são tão incomuns no cotidiano das trabalhadoras domésticas: “às vezes você chega na casa e já tem um copo e um prato separado para você. Acho isso ruim porque parece que a gente é sujo. Acho isso humilhante” (2019). Nos diferentes serviços desprotegidos, engendrados e enunciados pelas trabalhadoras, abre-se também caminho para análises psicológicas que integrem as condições de dominação social e a saúde destas trabalhadoras.
Podemos, então, entender esse sofrimento no interior daquilo que (Seligmann-Silva, 2011, p. 183) define sobre o trabalho dominado, ou seja, “a conjunção existente entre produção da submissão, da fadiga e da desvitalização”. A pesquisa destaca também que os dramas do servir se fazem nas trocas desiguais e nas frustrações entre os compromissos do serviço doméstico e a forma como são tratadas pelos contratantes. Outro exemplo de como a dominação coercitiva tem implicações na autopercepção das trabalhadoras está na enunciação de Auricélia quando afirma:
“o que perturba o meu juízo é a desconfiança. É que a gente quando chega nas casas a gente mostra a bolsa pra mostrar que é pobre, e quando sai mostra de novo para mostrar que continua pobre. Mas eu tenho que obedecer, apesar de achar errado eu obedeço” (2019).
Pelo ponto de vista teórico, interpretamos que esse fato se aproxima do que (Le Guillant, 2006) identifica como vivências de ressentimento, uma dinâmica afetiva conflitiva entre a obediência e a decepção. São sentimentos ambivalentes que incluem memórias de pertencimento, de hostilidade e de culpa, as quais se ancoram mais profundamente numa consciência de aniquilamento da identidade, ou alienação de si.
Na interpretação dos fatos psicológicos que compõem os dramas do servir, a pesquisa em questão identifica como núcleos de significação (Aguiar & Ozella, 2006) mais comuns aqueles que denotam a sobrevivência familiar, a desproteção permanente em relação ao Estado, as discriminações no mercado de trabalho e a esperança na misericórdia de Deus como única via de proteção em relação às vulnerabilidades vividas. Em suas experiências dramáticas de servir aos interesses dos contratantes, a necessidade de sobreviver converte-se em sentidos que justificam as ações destas mulheres na vida e no trabalho, mesmo em situações de sofrimento, de dominação e de ressentimentos. Vejamos como Rosa descreve a desproteção de seu trabalho:
“Eu me sinto bem. Mas tem a parte negativa porque não tem estabilidade. A gente não sabe se vai acontecer algum acidente, ninguém aqui tem a segurança de um trabalhador normal. Mas eu não posso mais escolher. Eu preciso aceitar e lutar” (2020).
Culturalmente presas às experiências concretas de desvalorização, elas passam cada vez mais a aceitar que as possibilidades de mudanças destas realidades são remotas e a única alternativa para sobreviver é permanecer em trabalhos submissos, isoladas umas das outras e sem forças para combater o sistema dominador, racista e patriarcal.
3.2.2. O Reagir
Identificar somente as declarações de coerção e sofrimento feitas pelas empregadas domésticas não seria suficiente para uma leitura concreta dos dramas enunciados. As lutas diárias pela sobrevivência também são manifestadas e interpretadas como potencialidade da ação individual. Viver as necessidades evidencia também a ativação da disposição para trabalhar em argumentos como: “então eu corro atrás de todo jeito, é isso que faz eu me mexer” (2019). Nesta urgência, os conflitos em busca do reconhecimento do valor pessoal e profissional são gradualmente evidenciados em reações concretas às submissões vivenciadas nos processos de trabalho.
Neste enredo dramático, as oportunidades de resposta das trabalhadoras à desvalorização social surgem de justificativas que remetem às suas experiências e às potencialidades de seus trabalhos. Sendo assim, as informações alcançadas mostram que, nos dramas do reagir, há uma transferência das experiências de desvalorização social para vivências em que a escolha de reagir a tais condições é baseada no reconhecimento da própria dignidade.
“Tem uma coisa que eu encontrava muita dificuldade, mas que agora eu não falo e não fico calada. Elas [patroas] não querem aceitar as oito horas de serviço, elas querem impor as nove horas, e isso não existe. Então eu estou dizendo isso antes mesmo de começar a diária” (2019).
Em tais acontecimentos, contraditoriamente à submissão, as ações enunciadas revelam a relutância em aceitar passivamente a desvalorização que lhes são impostas. Tais contradições evidenciam a dinâmica dramática com que (Vigotski, 2000) caracteriza o “choque de sistemas” dentre os papéis sociais conflitantes do sujeito em seu desenvolvimento psicológico concreto.
Na busca pelo posicionamento conceitual desses acontecimentos, o estudo em evidência propõe que tais reações à submissão se fazem perante práticas de uma subjetividade revolucionária (Sawaia & Silva, 2019) contra as estruturas sociais dominadoras e alienadoras de si. A orientação para o concreto requer considerar, nos estudos da vida dramática das diaristas, aspectos que apontam caminhos de emancipação para as ações de servir aos interesses alheios, utilizando intencionalmente argumentos que organizam a conduta objetivando uma sobrevivência mais digna e estável. Como aponta Alice,
“Se ficar calado ninguém vai entender a sua parte, mas se você conversar vai criar alguma proximidade (...) Também não pode chegar se achando a maioral, você chegar inteira, segura do seu serviço. Você tem que se valorizar para as pessoas poderem valorizar também” (2019).
Os processos sociais de reagir à submissão parecem se alimentar de ressentimento sem culpa, concretizando-se em episódios de revolta em que brotam a semente de rebeldia descrita por (Fanon, 1979). Essa autorreferência não acontece fora das relações constrangedoras, mas sim com elas e através delas. Neste enredo dramático, identifica-se três realidades características do reagir.
A primeira realidade é o uso de táticas desviantes. Utilizando-se dos estudos de (Certeau, 2014) sobre a antidisciplina das práticas cotidianas, a pesquisa aponta que, em alguns esquemas operacionais de trabalhos, as domésticas-diaristas enunciam astúcias inventivas produzidas nas ocasiões de trabalho, uma liberdade astuta das práticas que oportunizam alguma proteção e exigem a autovalorização. Sobre isso, vejamos a fala de Rosa Alexandre:
“Quando eu vejo que a cliente não me trata bem, sabe o que faço? Faço mais bem feito ainda, essa é a minha resposta. Aí no final quando chega para mim e diz assim: poxa eu gostei muito da senhora, vou lhe chamar de novo. Mas eu respondo: ô senhora... a senhora me desculpe mas eu só vim hoje porque a minha patroa está viajando. Por isso que eu peguei uma carta. É mentira, eu digo. Mas eu não volto lá nem a pau. Eu chego é aqui [no CTA] e esculhambo a cliente para todo mundo, inclusive pro gerente e pro povo do balcão. É sim, eu faço isso para eles saberem da cobra que é aquela mulher” (2019).
Sendo assim, a reação dessas mulheres em relação aos interesses controladores de contratantes constitui-se por experiências nas quais as operações tácitas - aquelas que revelam as astúcias do agir em situação de desvantagem - são testadas e incorporadas (ou não) às práticas cotidianas.
A segunda realidade dos dramas do reagir é o uso potencial dos argumentos. Trata-se do uso intencional de argumentos que negociam o melhor reconhecimento por seus esforços e requerem a valorização de si e do próprio trabalho em relações assimétricas de poder. São as ações transformadoras (Sawaia & Silva, 2019) efetivadas quando os argumentos de ambas as partes (trabalhadora e contratante) disputam a lógica a qual deverá ser priorizada na organização do trabalho. Ainda com relação às vivências de Rosa Alexandre:
“Olhe meu filho, eu já tô nessa vida de diarista há mais de vinte anos. Eu já passei por muita coisa. Já baixei a cabeça pras mulher maluca. Mas hoje eu sei a importância do meu trabalho. Eu sei que a faxina que faço não é pra qualquer uma não. Eu levanto os móveis, eu me trepo no cavalete, eu limpo os vidros tudinho da casa, eu rasgo meus dedos tirando mancha de sofá, eu faço tudo e muito rápido, viu? Eu já num baixo cabeça não porque eu sei que eu me garanto no serviço. É difícil encontrar outra que nem eu. A patroa pode até sair de casa que quando voltar vai estar tudo bem limpinho. Não mexo em nada que é que dela e só peço que meu pagamento venha inteiro. Sou de confiança e mostro muita produção. Se ela não gostar que se dane, eu vou continuar meus serviços noutras casas que me tratem como eu mereço” (2019).
Percebemos nesta enunciação um exemplo de como à medida que as circunstâncias de submissão constrangem as capacidades de ação da trabalhadora, a habilidade de reagir a essas imposições depende da utilização perspicaz e convicta de suas argumentações. Convicção que potencializa as justificativas para as ações e que, quando falta, coloca em risco as chances de conquistar os objetivos pessoais na relação de trabalho.
A terceira realidade dos dramas do reagir descrita na pesquisa é a criação de trabalhos alternativos ao serviço doméstico. As informações alcançadas revelam que os serviços como domésticas-diaristas não representam a única atividade de trabalho pelas quais elas buscam sobrevivência. Aqui se percebe a concretude da “engenhosidade cotidiana necessária, de que lançam mão os trabalhadores, para fazer o trabalho acontecer” (Sato et al, 2008) posta em prática por estas trabalhadoras ao concatenar elementos históricos, relacionais, habilidades e ocasiões em seus respectivos arranjos de trabalho. Na pesquisa com as trabalhadoras domésticas-diaristas, foi comum escutar exemplos de atuações paralelas como vendedoras ambulantes, representantes de cosméticos, merendeiras, feirantes, cuidadoras, costureiras e outras atividades que proviam renda. As experiências de trabalho alternativo enunciadas pelas trabalhadoras se articulam com o histórico pessoal de relações (o que inclui o pertencimento a redes de sociabilidade), com o desenvolvimento de saberes práticos (as habilidades aprendidas e praticadas) e com a disposição para criar e aproveitar ocasiões (o senso de oportunidade construído na experiência adquirida).
3.2.3. O Devir
Por último, o estudo apresenta os processos de coletivização por objetivos comuns, que são os dramas do devir. O termo devir foi tomado a partir de seu significado dicionarizado, se referindo a transformação, movimento, fluxo. Logo, foram analisados os acontecimentos nos quais as trabalhadoras consideram compromissos com determinados grupos externos às relações diretas de trabalho, como família, vizinhos, grupos religiosos, colegas de profissão e outras pessoas que vivem situações semelhantes de vida e trabalho. Incluem-se neste enredo as vivências compartilhadas e que evocam intenções de transformação ou aprimoramento da vida cotidiana. Aqui são destacados vínculos centralizados em interesses comuns como aqueles informados por uma trabalhadora que fundou e gerencia um grupo de trabalhadoras dedicado a informar e encaminhar para vagas de trabalho em aberto, Silvinha: “eu digo para elas que enquanto há vida há esperança e que a gente tem que ficar juntas nos momentos difíceis, botar a mão no arado e não voltar pra trás” (2020). São motivos variados e compartilhados que organizam a conduta das trabalhadoras nos serviços domésticos ou em outros trabalhos. Nos dramas do devir, os sentidos para a conduta ampliam a responsabilidade das trabalhadoras por outras pessoas que convivem com elas. São nestas relações que se fortalecem e se compartilham os saberes práticos da vida e do trabalho.
Para elucidar características dos dramas do devir, a pesquisa exemplifica, primeiramente, o devir da resistência política através de associações e sindicatos. Vejamos o exemplo das experiências de luta, solidariedade e conquistas narradas - em entrevista para a pesquisa - pela presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), Luiza Batista:
“E aí eu digo para você, para ser trabalhadora doméstica no Brasil, é preciso ter muita força de vontade, ter muita coragem. E também entender que o trabalho doméstico, mesmo ele tendo importância, a sociedade não valoriza o quanto deveria. As mulheres estão aí no mundo do trabalho, graças à força de trabalho de outras mulheres que não tiveram as mesmas oportunidades que elas, as mulheres negras e analfabetas, que somos a maioria negras e analfabetas, que estamos dando esse suporte para outras mulheres, as mulheres brancas estejam no mundo do trabalho. E aí a gente sempre lutou pela valorização. Para dar visibilidade ao trabalho doméstico no Brasil. Mostrar as nossas necessidades e defender os nossos direitos. Por exemplo, nessa pandemia, agora muitos governadores deixaram trabalho doméstico essencial, né? Na hora da servidão trabalho doméstico é essencial, mas na hora de reconhecer o valor do nosso trabalho não é valorizado. Infelizmente, não é? No Brasil, eu acho que pessoalmente no momento que estamos vivendo, é complicado, muito complicado. Nós temos que ficar unidas, foi só assim que nesses 23 anos de existência da FENATRAD nós conseguimos as nossas conquistas” (2020).
A pesquisa também revela alguns dramas do devir em situação comunitária. São esses os processos sociais com maior número de justificativas para as ações no trabalho devido aos compromissos e saberes compartilhados com a família, com pessoas da vizinhança e com pessoas que frequentam a mesma instituição religiosa. Por último, como um desdobramento direto do devir comunitário, desponta o devir do trabalho associado. São os acordos em torno de pequenos negócios, tais como brechós, venda de lanches e artigos de feiras, pequenos comércios na porta de casa, manutenção de utensílios domésticos, reparos de roupas e aparelhos celulares, indicações para serviços, estabelecidos com pessoas de confiança com o objetivo de gerar renda a partir da divisão de responsabilidades e de habilidades.
A compreensão dos dramas do devir exige, portanto, a discussão de suas concretudes em torno da territorialidade dos acontecimentos. Não é por acaso que, para discutir a polimorfia do trabalho nos centros urbanos, (Sato, 2017) menciona que as relações proximais de bairro criam “trabalhos que fazem sentido para aquele lugar, dados os costumes, os valores, os padrões econômicos e de consumo” (pp. 170-171). São nestas relações proximais que as enunciações dão sentido aos locais, atores, cenas e valores sociais que dinamizam justificativas, lutas e transformações possíveis na vida e no trabalho. Os dramas do devir abrangem conflitos que ultrapassam a sobrevivência e problematizam os futuros destas trabalhadoras em sociedade.
De uma forma integrativa e concreta, os dramas descritos descrevem uma possível leitura do fenômeno do trabalho pela perspetiva da PST. Objetivando a compreensão das situações e ações no dia a dia dos serviços domésticos remunerados, a pesquisa abordou uma categoria de trabalhadoras fora do modelo hegemônico das organizações do trabalho. Aprofundando o olhar sobre as causas e sentidos das enunciações alcançadas, a pesquisa se aproxima dos pontos de vistas das trabalhadoras como meio de interpretar as vivências de submissão às desigualdades estruturais do modelo de produção capitalista. Mas também, simultaneamente, abre-se a possibilidade de valorizar os saberes práticos destas mulheres ao reagirem a tal modelo por meio de suas próprias experiências, habilidades, relações proximais, ocasiões, enfim, de suas maneiras de fazer no cotidiano. Entender os dramas humanos em meio aos conflitos enunciados por essas mulheres no trabalho se estabelece como eixo de funcionamento para um estudo psicológico com bases histórica, dialética, concreta e crítica - bases estas sustentadas e desenvolvidas pela PST.
3.3. Integrando as pesquisas
Após a exposição sintética das justificativas, meios e resultados das pesquisas elucidadas no artigo, evidenciamos agora os principais aspectos que as aproximam e as incluem na perspetiva da PST, para além dos já citados.
Primeiramente, ambas as pesquisas demonstram como os métodos e fundamentações utilizados se constituem mais como um processo em construção do que um modelo estruturado prévio. Neste processo, o que poderia ser criticado como uma abertura metodológica indefinida é, na verdade, um compromisso ético com a objetividade factual narrada pelas pessoas que representam o público de interesse. Neste sentido, tanto as suas descrições sobre as condições sociais de trabalho como as suas intencionalidades do agir dentro de tais condições são fatos importantes para compreender os processos organizativos do trabalho cotidiano. Tal esforço inclui considerar as ambiguidades dentre os compromissos e as narrativas de nosso público de interesse.
Os estudos apresentados também comungam ao evidenciar as potencialidades da PST em compreender aspectos psicossociais da realidade vivenciada por trabalhadores através de estratégias que, assumindo a não neutralidade, se dispõem a buscar meios (diálogos via aplicativo, presença em campo, observações situacionais, entrevistas abertas e semiestruturadas, gravações de áudio, fotografias, diário de campo, redes sociais e reuniões) para fortalecer os vínculos necessários ao alcance de informações relevantes sobre o cotidiano de trabalho. Com as informações devidamente registradas, ambas as pesquisas demonstram como as análises partem da objetividade observada e constroem interpretações através da organização daquilo que foi registrado. A diversidade de meios e a permanente disposição para a pesquisa social permitiram que as aproximações com a realidade estudada acontecessem, por exemplo, num período de difícil contato pessoal, como foi a pandemia de 2019 a 2021. Buscando superar os desafios impostos pelo contexto, as pesquisas conseguiram alcançar e incorporar acontecimentos de como as pessoas estudadas enfrentavam e sobreviviam à pandemia.
Abordar a sobrevivência como tema transversal é outro aspecto integrador para as análises desenvolvidas para este artigo. Ainda que a sobrevivência seja uma categoria ampla, que contempla outros aspectos para além da renda e acesso a bens e serviços, esses são, obviamente, de grande relevância para a compreensão das vivências das pessoas que trabalham. Nas pesquisas aqui pormenorizadas foi possível demonstrar como a dependência do trabalho no contexto da informalidade pode colocar as pessoas em situações de risco à saúde e à sobrevivência. São situações precárias de trabalho, de limitadas possibilidades de mudanças, organizadas de acordo com a necessidade de obtenção de renda, conectadas a situações produtoras de sofrimento e adoecimento, às quais demandam grande sujeição pela imprevisibilidade a que estão expostas.
No entanto, mesmo diante das situações mais desfavoráveis, os estudos demonstram como as pessoas que trabalham na informalidade constroem cotidianamente estratégias de enfrentamento para vivenciar as situações de trabalho e vida da forma mais favorável - dentro dos limites apresentados em seus horizontes de ação. São suas possibilidades de criar e recriar, no uso de capacidades tipicamente humanas, que constituem novas chances de conectar-se a outras pessoas, de produzir novos fatos cotidianos, de modo a apontar para futuros com menos limitações.
Numa apreensão concreta do mundo do trabalho, as pesquisas se alinham com o entendimento de (Sato, 2017) ao defender que as iniciativas de alguma proteção social para trabalhadores informais devem partir do reconhecimento de sua existência, bem como “encontrar meios que dialoguem com a realidade que lhe é própria. É importante não naturalizar ou romantizar situações de precariedade” (p. 161). Desse modo, ressaltamos a importância de reconhecer as situações vividas pelas pessoas que trabalham em seus cotidianos no trabalho informal, sem deixar de demonstrar tanto as dificuldades, quanto a potencialidades de ação diante de cenários desfavoráveis, em um movimento de denúncia e de exposição de situações que demandam transformações em favor da classe trabalhadora.
4. Conclusão
Concluímos que a PST se constitui como uma perspetiva que permite aprofundar a compreensão das vivências concretas de trabalhadores em seus contextos de vida e atuação profissional, e isso inclui aqueles que sobrevivem à margem dos trabalhos formalizados. Nesta compreensão, a PST se destaca por focalizar os aspectos dialéticos entre as condições sociais da atividade de trabalho e os processos de subjetivação de cada trabalhador/a, aprimorando o olhar científico acerca da relação entre as determinações sociais da ação e a organização da conduta pessoal. Consideramos, nesta (re)produção da vida cotidiana, que a categoria trabalho deve ser entendida em suas dimensões pessoal, social, histórica e política de agir, focalizando nesta intersecção as várias formas nas quais diferentes segmentos populacionais resolvem a sobrevivência. Em meio aos apelos ideológicos hegemônicos, constroem-se maneiras de agir eivadas de determinações econômico-políticas alienantes, mas também de saberes práticos e relações de solidariedade que denotam suas potencialidades emancipadoras.
Ao abordar a categoria trabalho como um fenômeno psicossocial, a perspetiva da PST mantém o seu compromisso ético-político ao identificar e compreender os conflitos e dificuldades que estas pessoas enfrentam para garantir a sobrevivência, contextualizando-os em suas várias determinações sociais. Tal interesse se consolida como via de resistência política em favor daquelas categorias mais oprimidas, mas também como via de valorização das habilidades e relações construídas por estas pessoas em busca de uma vida mais digna.
Por fim, acreditamos ter contribuído com as ciências do trabalho ao apresentar a PST como perspetiva objetiva de pesquisa comprometida com o ponto de vista de pessoas reais que lutam pela sobrevivência e que, pela própria complexidade dos fatos, exige do pesquisador esforço interdisciplinar e sensibilidade interpretativa suficientes para sintetizar as informações alcançadas numa compreensão integradora do que é observado. Um exercício engajado, crítico e potente de pesquisar.