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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa
versão impressa ISSN 1646-5830
Acta Obstet Ginecol Port vol.10 no.1 Coimbra mar. 2016
ESTUDO ORIGINAL/ORIGINAL STUDY
Tratamento cirúrgico da endometriose profunda: série de 16 casos
Surgical treatment of deep endometriosis: a 16 case series
Ana Gonçalves Andrade*, Bruno Nogueira**, José Reis**, Fátima Faustino***, Carlos Veríssimo****
*Interna do Internato complementar de Ginecologia e Obstetrícia, Maternidade Dr. Alfredo da Costa-CHLC
***Assistente Hospitalar Graduado de Ginecologia e Obstetrícia; Hospital Beatriz Ângelo
****Chefe de Serviço de Ginecologia e Obstetrícia; Hospital Beatriz Ângelo
Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
ABSTRACT
Overview and aims: Deep endometriosis is defined as the presence of infiltrating lesions more than 5mm deep to the peritoneum and it corresponds to 5-10% of all endometriotic lesions. Laparoscopy is considered the gold standard for the diagnosis and treatment of endometriosis and it is successful in controlling pain, decreasing recurrence rates and improving fertility. This study aims to evaluate the work of a Laparoscopic unit specialized in the treatment of endometriosis.
Study design, Population and Methods: Retrospective study of all laparoscopies performed for deep endometriosis between January 2013 and December 2014. Clinical presentation, pre-operatory exams, intra and post-operatory surgical data and follow-up were accessed.
Results: Sixteen surgeries were done (15 patients). The patient's mean age was 35 years (28- 43); ten women were nulliparous of which nine were infertile. Dysmenorrhea was the most frequent symptom (n=12), followed by dyspareunia (n=8). In six women a node in the rectovaginal septum was present in the physical exam. In six cases a colpectomy was done in order to accomplish total excision of the rectovaginal node. One discoid excision of the rectum was done. No conversions to laparotomy were needed. The mean operative time was 142±55min, with estimated blood loss < 250ml in 15 surgeries. There was a case of an intra-abdominal abscess. Mean follow-up duration was eight months, with 81% of the patients referring clinical improvement.
Conclusions: Laparoscopic surgery in the treatment of deep endometriosis requires a high degree of surgical expertise and the approach by a multidisciplinary team. Only then, a low rate of complications, symptoms regression and a potential fertility improvement can be achieved.
Keywords: Deep endometriosis; Rectovaginal septum node; Laparoscopy.
Introdução
A endometriose é uma doença crónica que se define pela presença de tecido endometrial (estroma e glândulas) fora da cavidade uterina. Apesar de poder ocorrer em qualquer localização, a presença de tecido ectópico é mais frequente ao nível da pelve1. Aí, três tipos de endometriose devem ser considerados, aos quais se atribui mecanismos fisiopatológicos diferentes: endometriose peritoneal (teoria da transplantação), endometriose ovárica (teoria da metaplasia celómica) e endometriose profunda (teoria da metaplasia mulleriana)2,3.
A endometriose profunda, ou endometriose do septo recto-vaginal, consiste na presença de uma massa endometrial sólida a mais de 5mm de profundidade no peritoneu4 e ocorre em 5-35% das mulheres com endometriose5,6. A endometriose da bexiga e uretero deve, de acordo com Donnez, ser também considerada como originária em remanescentes dos canais de Muller, logo doença retroperitoneal7.
Clinicamente a endometriose profunda caracteriza-se por um quadro álgico intenso que parece estar relacionado com a profundidade de infiltração dos tecidos8. São típicas as queixas de disquesia, dispareunia, dismenorreia e dor pélvica crónica9. A infertilidade tem também uma prevalência elevada nesta população (25%)10, assim como uma diminuição acentuada da qualidade de vida. Apesar de no exame objectivo poderem ser evidentes as lesões de endometriose (nódulo papável, empastamento do fundo de saco de Douglas e ligamentos útero-sagrados, dor à mobilização cervical) a sua correta caracterização implica exames complementares de diagnóstico (ECD) nomeadamente ecografia e ressonância magnética (RM) pélvicas11.
O tratamento da endometriose poderá ser médico ou cirúrgico. A excisão laparoscópica das lesões de endometriose é atualmente o tratamento preferencial na abordagem da endometriose profunda uma vez que, comparativamente à terapêutica médica, não só permite um controlo mais eficaz e duradouro dos sintomas álgicos como garante uma confirmação histológica do diagnóstico12,13.
A eficácia da cirurgia no controlo da dor e na recorrência da doença está comprovada14. A remoção cirúrgica dos vários implantes pode ser alcançada mediante o uso de diferentes técnicas, nomeadamente ablação por electrocirurgia, LASER CO2, ou excisão da lesão. É relativamente consensual que, comparativamente à ablação, a excisão garante um maior alívio da sintomatologia e menor taxa de recorrências15,16. Na abordagem cirúrgica da endometriose profunda o risco de complicações intra e pós-operatórias potencialmente graves (fístula recto-vaginal ou ureterovaginal ou perfuração intestinal com peritonite fecal com necessidade de colostomia) é real. O risco de complicações depende do grau de envolvimento intestinal17, abertura da mucosa vaginal, extensão da doença infiltrativa e experiência da equipa cirúrgica. A possibilidade de realizar este tipo de cirurgias num centro de referência reduz o risco de complicações e melhora os resultados clínicos18,19.
Este trabalho tem como objectivo fazer uma avaliação da atividade cirúrgica de um centro diferenciado no tratamento de endometriose. Secundariamente serão também avaliados os resultados clínicos pós-operatórios no que toca ao controlo sintomático.
Material e métodos
Foi feita uma avaliação dos processos de todas as mulheres submetidas a cirurgia no Hospital Beatriz Ângelo no período decorrente entre Janeiro de 2013 e Dezembro de 2014 cujo diagnóstico pré ou pós-operatório foi endometriose profunda.
Definiu-se endometriose profunda como a presença de endometriose infiltrativa com mais de 5mm de profundidade na superfície peritoneal, tendo-se obtido confirmação histológica em todos os casos. Foram excluídos os casos de endometriose superficial e endometriose ovárica isolados.
Todas as intervenções foram realizadas por uma equipa fixa de três cirurgiões, diferenciada no estudo e tratamento da endometriose.
Os dados avaliados foram obtidos através da consulta do processo clínico. Os sintomas álgicos foram, sempre que possível, quantificados numa escala de 0-10, tendo-se considerado intensa se ≥8, moderada entre 5 e 7 e ligeira se ≤5. A avaliação imagiológica pré-operatória, tanto ecográfica como por RMN, foi sempre realizada por médicos diferenciados na área da endometriose. Todos os casos em que a RM identificou um nódulo do SRV foi realizada colonoscopia por forma a avaliar o envolvimento colorectal e, nos casos positivos, a distância ao ânus.
Todas as doentes foram internadas no dia da cirurgia com jejum de pelo menos 6 horas e com dieta adaptada na semana anterior. Realizaram enema de limpeza na véspera e dia da cirurgia. Está também protocolada profilaxia antibiótica com cefoxitina 1g EV intra-operatório com nova administração para cirurgias com mais de 4 horas de duração.
A técnica cirúrgica padrão engloba a criação de pneumoperitoneu com agulha de Veress e colocação de trocarte óptico de 10mm em localização umbilical, seguida da introdução de três vias acessórias de 5mm em localização supra-púbica e nas fossas ilíacas direita e esquerda. É feita uma avaliação geral da cavidade abdómino-pélvica seguida da abordagem às lesões de endometriose identificadas na avaliação pré-operatória. As lesões do septo recto-vaginal são abordadas após adesiólise, dissecção bilateral dos espaços para-rectais e identificação dos ureteros. A lesão é identificada e é sempre tentada a sua excisão completa. Em casos selecionados é realizada avaliação conjunta com a Urologia (caso haja suspeita pré-operatória de lesão vesico-uterina ou ureteral) ou Cirurgia Geral (para avaliação intra-operatória da integridade da parede rectal e das condições para shaving, recessão discóide ou segmentar do recto, consoante a sintomatologia apresentada, intenção de excisão completa da lesão e risco de colostomia). Outras lesões de endometriose identificadas (p. ex: endometriomas) foram excisadas sempre que possível.
Faz parte do protocolo do procedimento a realização de provas para avaliação da integridade da parede vesical e/ou rectal (teste de Michelin)20 e quantificação das perdas hemáticas com base no volume aspirado. O risco tromboembólico foi avaliado segundo o score de Caprini e as medidas profiláticas tomadas de acordo.
A vigilância pós-operatória é agendada ao fim de seis semanas e posteriormente aos seis meses, altura em que é feita nova avaliação dos sintomas.
Para além de variáveis demográficas este estudo avaliou também variáveis clínicas (sintomatologia pré e pós-operatória, exame objectivo e o resultado dos exames complementares de diagnóstico realizados) e variáveis cirúrgicas (procedimentos realizados, duração da cirurgia e internamento, complicações intra e pós-operatórias). O cálculo estatístico foi realizado com o software SPSS 21.0.
Resultados
Durante os 24 meses do estudo foram realizadas 16 cirurgias por endometriose profunda, em 15 doentes. Seis cirurgias foram realizadas em 2013 e dez em 2014, todas elas em regime de internamento.
A média etária foi 35±5anos, 17% das doentes eram leucodérmicas e a maioria (62,5%) tinha Índice de Massa Corporal (IMC) normal. Nenhuma doente era obesa.
Dez mulheres eram nuliparas, havendo história de infertilidade em 56,3% da amostra. Duas doentes já tinham realizado técnicas de procriação medicamente assistida, ambas sem sucesso (Quadro I).
Em termos clínicos, 12 doentes (75%) referiam dismenorreia que era classificada como intensa em nove (75%). Dispareunia moderada a grave foi referida por 8 doentes, disquezia e dor pélvica crónica por três e disúria por duas. Ao exame objectivo palpava-se nódulo do SRV em seis doentes (37,5%) e em três (18,8%) a única alteração identificada foi um espessamento fundo de saco de Douglas (FSD)/ ligamentos útero-sagrados (LUS) (Quadro II). A maioria das doentes estava medicada com terapêutica hormonal (11; 68,8%) e cinco já haviam sido submetidas a terapêutica cirúrgica no contexto de endometriose (Quadro III).
Os achados nos exames complementares de diagnóstico são apresentados no Quadro IV. A ecografia identificou quatro nódulos do SRV, um nódulo da parede vesical e um caso de espessamento dos LUS. Na RM foram identificados cinco nódulos SRV e 5 espessamentos do LUS, dois deles com ecografia normal. Das cinco colonoscopias realizadas duas revelaram estenose do lúmen rectal. Nestas, a RM mostrava repuxamento rectal sem evidente envolvimento transmural.
Foi realizada excisão de nódulo do SRV/LUS em 12 doentes, sendo que em sete foi realizada quistectomia do ovário (excisão de endometrioma) simultânea. Um caso de excisão de nódulo vesico-uterino, incluindo recessão do segmento de parede vesical em relação com a lesão, foi realizado. Para excisão completa da lesão foi necessária colpectomia em seis doentes (37.5%) e recessão discóide num caso.
O tempo operatório médio foi 142±55min. As perdas hemáticas intra- operatórias foram inferiores a 100cc em 75% das cirurgias, e nenhuma foi convertida para laparotomia. Em dois casos foi realizada cistoscopia com colocação de stents ureterais (um caso de nódulo vesico-uterino e um caso com suspeita de invasão da parede do uretero). Foi necessária a intervenção direta da equipa de Cirurgia Geral num caso em que foi realizada apendicectomia e no caso de recessão discóide do recto. Um caso complicou-se no pós-operatório com abcesso intra-abdominal, resolvido com terapêutica médica (Quadro V). O tempo de internamento variou entre 2 e 8 dias.
A mediana do tempo de vigilância pós-operatória foi 6 meses (1-30). Dez doentes (62,5%) estavam sem queixas e nas restantes seis, quatro mantiveram-se sintomáticas (três com melhoria) e em duas surgiram sintomas não presentes no pré-operatório (disúria e disquésia respectivamente).
Discussão
A endometriose é uma patologia hormono-dependente característica da mulher em idade fértil. Dada a diversidade e inespecificidade da clínica é difícil de determinar com exatidão a prevalência da endometriose que se estima em 12-32% nas mulheres com dor pélvica crónica, podendo atingir os 50% nas mulheres com história de infertilidade 21,22.
Na nossa amostra o quadro álgico foi característico, sendo que 11 doentes (68,8%) a descreveram como grave. No entanto em sete doentes (43,8%) não se verificou qualquer alteração ao exame objetivo, o que confirma a sua baixa sensibilidade na avaliação da extensão das lesões e eventual envolvimento do recto 23.
Na avaliação com ECD verificou-se uma elevada sensibilidade da RM para estudo da endometriose profunda (73,3%). Comparativamente à ecografia a RM revelou ser mais adequado permitindo um melhor estudo dos LUS, nomeadamente com referência ao seu espessamento, da bexiga (identificação de dois nódulos vesicais não descritos na ecografia) e uretero. Estes resultados são semelhantes aos obtidos por outros autores24-26.
A abordagem laparoscópica tem como objectivo remover todas as lesões de endometriose visíveis ao mesmo tempo que tenta preservar ou repor a função reprodutiva. Segundo o estudo de Roman27 a excisão cirúrgica das lesões de endometriose permitem uma melhoria significativa da qualidade de vida. Vercelini reporta uma significativa diminuição das queixas de dismenorreia, dispareunia e disquézia28. Na nossa amostra a maioria (n=10) das doentes mantém-se assintomática na vigilância pós-operatória. Nas restantes, metade refere melhoria do quadro, uma foi reintervencionada por disúria de-novo associada a nódulo vesical diagnosticado intra-operatoriamente (por questões técnicas optou-se por não fazer excisão do nódulo), e outra manteve o quadro de disquézia após excisão incompleta de nódulo do SRV. Estes resultados apoiam a hipótese de que a excisão incompleta está associada a um maior risco de recorrência das queixas29-32 e de necessidade de reintervenção33. Na maioria dos casos a opção deliberada de não excisar por completo a lesão prende-se com o receio de complicações pós-operatórias, com destaque para o risco de colostomia. No entanto, tal como referido por outros autores34,35, a nossa taxa de complicações intra e pós-operatórias foi baixa, nomeadamente um caso de abcesso intra-abdominal numa doente submetida a quistectomia do ovário e excisão de nódulo SRV. A abordagem por parte de uma equipa cirúrgica diferenciada e multidisciplinar é um dos principais factores responsáveis pelos bons resultados obtidos a este nível.
Este trabalho apresenta algumas limitações. Antes de mais o seu carácter retrospetivo a que se junta o número reduzido de doentes, impossibilitando a realização de análise estatística alargada. Por outro lado algumas doentes têm vigilâncias pós-operatórias curtas na nossa instituição por referenciação precoce para unidades de Infertilidade. No entanto são principais mais-valias o facto de todos os procedimentos serem sempre realizados pela mesma equipa cirúrgica o que garante a consistência dos procedimentos e justifica os bons resultados obtidos.
De futuro o aumento das dimensões da amostra bem como a sua avaliação prospectiva permitirá resultados mais significativos particularmente no que toca ao estudo das complicações e da fertilidade pós-cirurgia. Seria também interessante avaliar o papel da excisão de mucosa vaginal na persistência dos sintomas já que vários trabalhos sugerem que este seja um factor determinante na recorrência das queixas 36,37.
O tratamento laparoscópico da endometriose profunda é tecnicamente exigente, obriga a uma elevada e morosa diferenciação técnica e deverá ser realizado por equipas multidisciplinares experientes. A criação de centros de referenciação a nível nacional, capazes de dar resposta a estes casos de uma forma célere e qualificada permite atingir melhores resultados clínicos e garantir maior segurança para as doentes.
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Ana Gonçalves Andrade
Maternidade Dr. Alfredo da Costa - Centro Hospitalar de Lisboa Central
E-mail: a.anagoncalvesa@gmail.com
Recebido em: 15-06-2015
Aceite para publicação: 16-12-2015