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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa
versão impressa ISSN 1646-5830
Acta Obstet Ginecol Port vol.10 no.1 Coimbra mar. 2016
CASO CLÍNICO/CASE REPORT
Cancro do ovário na adolescência - um caso clínico
Ovarian cancer in adolescence - a case report
Mariana Souto Miranda*, Cátia Paixão**, Amélia Pedro***, José Silva Pereira****
*Interna do Internato Complementar de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca
**Interna do Internato Complementar de Ginecologia e Obstetrícia do Centro Hospitalar do Algarve - Unidade de Portimão
***Assistente Hospitalar de Ginecologia do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca
****Director do Serviço de Ginecologia do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca
Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
ABSTRACT
Small cell carcinoma of the ovary, hypercalcemic type is a rare and aggressive tumor affecting young women. The mechanism of development is unclear and there have been relatively few clinical studies reported in literature.
The authors present a clinical case of a 15-year-old girl with a small cell carcinoma of the ovary.
Keywords: Small cell carcinoma; Hypercalcemia; Ovary.
Introdução
A taxa de incidência dos tumores malignos do ovário padronizada à população europeia foi de 7,3 por 100 000 mulheres, de acordo com os últimos dados disponíveis1. Os tumores malignos do ovário atingem preferencialmente mulheres pós-menopausa, apenas 5% destas neoplasias ocorrem antes dos 20 anos. Apesar da baixa incidência, trata-se da malignidade ginecológica mais comum em mulheres com idade inferior a 25 anos. A baixa prevalência na adolescência, conjugada com a inexistência de sintomas específicos, pode levar a diagnósticos tardios com mau prognóstico o diagnóstico é feito em fases avançadas da doença, em 75% dos casos. Apesar da melhoria na sobrevivência global destas doentes, o cancro do ovário é o cancro ginecológico mais letal2.
O comportamento biológico e o prognóstico variam de acordo com o tipo histológico. Aproximadamente 90% dos tumores primitivos do ovário são epiteliais. Antes dos 20 anos de idade, 60% dos cancros do ovário têm origem nas células germinativas.
O estadiamento é cirúrgico (excepto em caso de doença avançada considerada irressecável ou na presença de contra-indicações cirúrgicas), e o tratamento é, frequentemente, seguido por quimioterapia adjuvante3.
O carcinoma de pequenas células do ovário é um carcinoma raro, indiferenciado e de histogénese desconhecida, com pico de incidência aos 23 anos. Apresenta duas variantes - hipercalcémia e pulmonar -, correspondendo a primeira a cerca de dois terços dos casos. As manifestações são inespecíficas e é geralmente de incidência unilateral4.
Caso clínico
Doente do sexo feminino com 15 anos, de raça negra, encaminhada para a Consulta Externa de Ginecologia por massa anexial de etiologia a esclarecer. A queixa inicial foi aumento de volume abdominal e perda ponderal que não soube especificar. Como antecedentes ginecológicos, menarca aos 13 anos, ciclos regulares, com dismenorreia moderada e sem início da vida sexual. Sem antecedentes pessoais ou familiares relevantes. Ao exame objectivo detectou-se uma massa indolor palpável até ao nível umbilical.
Realizou uma ecografia abdominal onde se descrevia uma volumosa massa com 12 cm, e complexa. Para esclarecer a origem, realizou-se uma ressonância magnética abdomino-pélvica na qual se observou volumosa massa pélvica mediana medindo 14 cm de eixo longitudinal com um volume de 600 cc. Tratava-se de uma lesão compatível com lesão primitiva do ovário esquerdo, de contornos regulares, constituição heterogénea com componente sólido periférico e um componente quístico central, excêntrico, com múltiplos finos septos e com planos de clivagem entre o útero, ovário direito e bexiga. De referir a ausência de adenomegálias pélvicas e de ascite.
Analiticamente, um valor de hemoglobina de 11,9 g/dL, uma hipercalcémia de 15,5 mg/dL, HIV1/2, AgHBs e anti-HCV negativos, e marcadores tumorais - CA 125, CA19.9, CEA, AFP e HCG - negativos.
A doente foi submetida a uma laparotomia exploradora com anexectomia esquerda e realização de exame extemporâneo que revelou tratar-se de uma neoplasia maligna pouco diferenciada. Prosseguiu-se então com uma cirurgia de estadiamento conservadora de fertilidade, realizando-se linfadenectomia pélvica bilateral e paraaórtica, biópsias peritoneais múltiplas e do ovário contralateral, omentectomia infracólica e citologia das cúpulas diafragmáticas.
Os achados histológicos e imunohistoquímicos revelaram um carcinoma de pequenas células do ovário esquerdo com diferenciação neuroendócrina - forma hipercalcémica. O ovário esquerdo encontrava-se quase totalmente ocupado por uma proliferação difusa de células pequenas e redondas, com núcleos vesiculosos, com elevado índice mitótico (25 figuras de mitose por 10 campos de grande aumento) e áreas de necrose. As células neoplásicas apresentaram positividade difusa para Vimentina e focal para Citoqueratinas AE1/E3 e 8-18, EMA (antigénio da membrana epitelial), Sinaptofisina, CD56, CD10 e p53 (35%) e negatividade para CD45, CD20, CD117, S-100, Calcitonina, Inibina, Cromogranina-A e proteína relacionada com a hormona paratiroideia (PTHrp). O tumor encontrava-se limitado ao ovário, apresentava cápsula intacta e ausência de tumor na superfície ovárica ou trompa - correspondendo a um estadio IA. As restantes amostras não detectaram alterações com significado patológico.
Após avaliação multidisciplinar foi decidido tratamento adjuvante com cisplatina D1 a D5 20mg/ /m2/dia e etoposido D1 a D5 100mg/m2/dia, dados os factores de mau prognósitco - idade, calcémia pré-operatória elevada, tamanho e o elevado índice mitótico. No estadiamento pós-operatório e pré-quimioterapia foi realizada uma TAC do pescoço, tórax, abdómen e pélvis onde foram apenas detectados gânglios milimétricos mesentéricos e inguinais. Realizou também uma ecografia da tiróide e paratiróides onde não foram detectadas nem adenomegálias, nem alterações da tiróide. As paratiróides não foram visualizadas. De salientar do controlo analítico pós-operatório valores de Cálcio e Paratormona intacta (PTHi) normais.
Um ano depois, foi detectada em TAC toraco-abdomino-pélvica (TAC-TAP) de follow up, a presença de uma volumosa massa pélvica lateralizada à direita, com 10cm e envolvendo a parede abdominal - região mediana e fossa ilíaca esquerda. Esta lesão heterogénea, condicionava moldagem da bexiga e desvio latero-direito esquerdo do útero. No estudo do parênquima pulmonar observaram-se múltiplos nódulos milimétricos no segmento anterior do lobo superior esquerdo compatíveis com processo de natureza inflamatória, embora dois nódulos predominantes com 9 e 11mm fossem suspeitos de envolvimento secundário. Não se identificaram adenomegálias. A doente encontrava-se assintomática e ao exame objectivo de salientar aumento de volume abdominal. Neste contexto clínico, não se registaram alterações analíticas significativas e decidiu-se iniciar esquema de quimioterapia com propósito paliativo (Paclitaxel 80mg/m2 e Irinotecan 120 mg/m2 D1 a D8) - fez 4 ciclos, tendo interrompido tratamento por necessidade transfusional. Dois meses depois, constatou-se redução de dimensões da recidiva pélvica mas agravamento das alterações do parênquima pulmonar com múltiplas opacidades alveolares dispersas com uma área de consolidação e três áreas de cavitação sugerindo-se despiste de infecção. Clinicamente apenas referência a torocalgia pleurítica esquerda e tosse produtiva esporádica. A doente foi submetida a uma broncofibroscopia com avaliação endoscópica e exames directos sem alterações mas cujo exame cultural de secreções brônquicas revelou Mycobacterium Tuberculosis. Acabou por falecer neste contexto de progressão da doença oncológica e quadro de tuberculose pulmonar.
Discussão
O carcinoma das pequenas células do ovário forma hipercalcémica foi, pela primeira vez, descrito em 19825. Trata-se de um carcinoma raro e associado a hipercalcémia em dois terços dos casos - o mecanismo de desenvolvimento de hipercalcémia não se encontra inteiramente esclarecido6.
A imunohistoquímica foi essencial para o diagnóstico diferencial entre tumor das células da granulosa, das células germinativas, metástases e carcinoma das pequenas células tipo pulmonar. Este tumor usualmente expressa queratinina, vimentina, EMA, WT1, p53 e laminina. A combinação de positividade para EMA e WT1 associada à negatividade para alfa-inibina é altamente sugestiva do diagnóstico. No entanto, a histogénese encontra-se pouco clarificada - a positividade para queratina e EMA e a negatividade para inibina sugerem uma origem epitelial. A associação a um síndrome paraneoplásico leva-nos a considerar um possível tumor neuroendócrino. Finalmente, a idade média de aparecimento - 23 anos - e as características morfológicas, são a favor de um tumor com origem nos cordões sexuais7.
Vários estudos apontam para a positividade para a PTHrp, mas a correlação entre o grau de positividade e os níveis de cálcio sérico não se encontra definida8. No caso em questão, as células neoplásicas foram negativas para a proteína referida. Vários estudos documentaram a presença de PTHrp circulante secretada pelo tumor que actua através de receptores de PTH, mediando a libertação de cálcio. Alguns investigadores sugerem a utilização de PTHrp como marcador clínico de hipercalcémia juntamente com os valores de cálcio sérico. No entanto, e tal como no caso descrito, nem sempre existe evidência de níveis de PTHrp elevados ou expressão no tumor. Nestes últimos casos, a produção ectópica de PTHrp pode ser considerada6. No nosso caso, não foi medido o nível de PTH prévio à cirurgia nem as lâminas avaliadas apresentaram positividade para PTHrp. Houve, no entanto, normalização dos valores de cálcio sérico após excisão cirúrgica do tumor, o que não nos permite concluir sobre a correlação entre níveis séricos de PTH e cálcio e imunoexpressão.
Existem poucos casos descritos na literatura pelo que não se conhece a abordagem cirúrgica mais indicada - sendo a doença unilateral em 99% dos casos, parece indicado fazer salpingo-ooforectomia unilateral em mulheres novas que desejem preservar a fertilidade. O papel da quimioterapia e radioterapia adjuvante também permanece pouco claro - considera-se que a quimioterapia adjuvante não traz aparente benefício em doentes no estadio IA(8). No entanto, devem ser ponderados os factores de mau prognóstico - neste caso a idade, a hipercalcémia, o tamanho e o elevado índice mitótico9. Vários esquemas foram utilizados nas curtas séries avaliadas - o esquema incorporando cisplatina e etoposido teve resultados satisfatórios embora seja difícil garantir a maior eficácia deste esquema relativamente a outros utilizados, assim como concluir acerca do benefício da instituição de quimioterapia ou radioterapia adjuvante8.
São factores de risco conhecidos para o desenvolvimento de tuberculose pulmonar a existência de condições médicas subjacentes e estados de imunossupressão como as doenças oncológicas. Imagens nodulares nestes doentes não correspondem sempre a metástases pulmonares pelo que um elevado índice de suspeição é essencial para iniciar atempadamente terapêutica. Perante lesões pulmonares, caso não se assuma metastização, a investigação passará por exames microbiológicos e anatomo-patológicos. Uma vez que não podem ser feitas biópsias de todos os locais em que os dados imagiológicos sugerem metástases, neste caso, o que nos levou a estudar de forma mais agressiva as lesões pulmonares, foi o facto de ter havido assincronia de resposta - resposta pélvica sem resposta pulmonar. A clínica e alterações do aspecto imagiológico - foram também aspectos fundamentais na decisão de realização de broncofibroscopia.
O prognóstico do carcinoma de pequenas células - forma hipercalcémia é relativamente pobre. O maior estudo descrito inclui 150 doentes - dos 50 com estadio IA, 33% estavam livre de doença num follow-up de 5 anos, mas poucos com estadio superior sobreviveram. São considerados factores de bom prognóstico num estadio IA a idade superior a 30 anos, um valor de cálcio pré-operatório dentro dos limites normais, um tumor inferior a 10cm e a ausência de células grandes9.
Dada a raridade desta neoplasia, não existem consensos relativamente a histogénese, patogénese e tratamento. Casos adicionais devem ser relatados e estudados para estabelecer protocolos de actuação no sentido de melhor o prognóstico da doença.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. IARC. European Cancer Observatory National Estimates. 2008. [ Links ]
2. Sociedade Portuguesa de Ginecologia, Oncologia. Cancro ginecológico. 2013. [ Links ]
3. Heintz APM, Odicino F, Maisonneuve P, Quinn MA, Benedet JL, Creasman WT, et al. Carcinoma of the ovary. FIGO 26th Annual Report on the Results of Treatment in Gynecological Cancer. Int J Gynaecol Obstet. 2006 Nov;95 Suppl 1:S161-192. [ Links ]
4. Chen F, Koenig C, Heller DS. A 26-Year-Old Woman With Right Ovarian Mass. 2009 Oct; 130(4):56-58. [ Links ]
5. Dickersin GR, Kline IW, Scully RE. Small cell carcinoma of the ovary with hypercalcemia: a report of eleven cases. Cancer. 1982 Jan;49(1):188-197. [ Links ]
6. Chen L, Dinh TA, Haque A. Small cell carcinoma of the ovary with hypercalcemia and ectopic parathyroid hormone production. Arch Pathol Lab Med. 2005 Apr;129(4):531-533. [ Links ]
7. Juan Rosai MD. Rosai and Ackerman’s. Surgical Pathology. 10th edition. Elsevier Health Sciences. 2011.
8. Harrison ML, Hoskins P, du Bois A, Quinn M, Rustin GJS, Ledermann JA, et al. Small cell of the ovary, hypercalcemic type - analysis of combined experience and recommendation for management. A GCIG study. Gynecol Oncol. 2006 Feb;100(2): 233-238. [ Links ]
9. Young RH, Oliva E, Scully RE. Small cell carcinoma of the ovary, hypercalcemic type. A clinicopathological analysis of 150 cases. Am J Surg Pathol. 1994 Nov;18(11):1102-1116. [ Links ]
Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
Mariana Souto Miranda
Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca
E-mail: marianasoutomiranda@gmail.com
Conflitos de Interesses
Os autores declaram não possuir conflitos de interesses.
Recebido em: 20-11-2014
Aceite para publicação: 31-01-15