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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versão impressa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.10 no.4 Coimbra dez. 2016

 

CASO CLÍNICO/CASE REPORT

Gravidez, próteses valvulares mecânicas e varfarina - 3 casos, 3 desfechos

Pregnancy, mechanical heart valves and warfarin - 3 cases, 3 outcomes

Alexia Toller*, António Tralhão**, Ana Beatriz Godinho***, Maria João Correia****, Fernando Cirurgião*****

Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Hospital de São Francisco Xavier, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental

*Interna Complementar Ginecologia e Obstetricia, Hospital de São Francisco Xavier

*Interno Complementar de Cardiologia, Hospital de Santa Cruz, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental

**Assistente Hospitalar de Ginecologia e Obstetrícia, Hospital de São Francisco Xavier, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental

***Assistente Hospitalar de Cardiologia, Hospital de São Francisco Xavier, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental

****Diretor do Departamento de Ginecologia e Obstetríc, Hospital de São Francisco Xavier, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

ABSTRACT

The authors describe three cases of women who became pregnant despite having a mechanical heart valve requiring chronic anticoagulation with warfarin. Their outcomes are described and anticoagulation management during pregnancy is discussed.

Keywords: Embriopatia varfarínica; Gravidez; Varfarina; Anticoagulação.


 

Introdução

O manejo da mulher grávida portadora de válvula cardíaca mecânica é complexo, exigente e frequentemente gerador de dúvidas para cardiologistas e obstetras, pelas potenciais repercussões da anticoagulação sobre mãe e feto. O risco de complicações trombóticas aumenta significativamente durante a gravidez, a necessidade de anticoagulação permanente eleva o risco hemorrágico e alguns anticoagulantes são teratogénicos1.

Os derivados cumarínicos, fármacos orais mais eficazes e seguros na anticoagulação imposta pelas válvulas cardíacas mecânicas2 têm, na grávida, seu uso reconhecidamente associado a uma maior incidência de malformações fetais no 1º trimestre, suscitando o recurso a alternativas terapêuticas3. Neste âmbito, a preferência por heparina de baixo peso molecular, tida como mais inócua para o feto, é apoiada por algum suporte científico, mas persistem dúvidas quanto à sua real eficácia.

Os autores apresentam 3 casos ilustrativos de desfechos clínicos possíveis da anticoagulação na grávida portadora de válvula cardíaca mecânica, com o objetivo de expor as implicações da anticoagulação e discutir possibilidades terapêuticas e estratégias para melhorar a abordagem e seguimento desta população.

Casos clínicos

Caso 1. Mulher de 22 anos, natural da Guiné-Bissau, portadora de prótese valvular mecânica na posição mitral (etiologia reumática). Antecedentes pessoais de epilepsia e patologia tiroideia, polimedicada, sob anticoagulação crónica com varfarina. Embora desaconselhada a engravidar, apresentou-se na Consulta de Obstetrícia com gestação de 7 semanas e 6 dias. Perante os riscos maternos e fetais envolvidos, decidiu-se pela interrupção médica da gravidez às 10 semanas. O exame anatomopatológico fetal não revelou alterações.

Caso 2. Mulher de 25 anos, natural de Cabo Verde, medicada com varfarina e portadora de dupla prótese mecânica em posição aórtica e mitral (valvulopatia reumática). Enviada do Centro de Saúde por gravidez com 6 semanas e 3 dias. Primigesta, sem outra patologia conhecida, suspendeu por autoiniciativa varfarina às 7 semanas e iniciou terapêutica anticoagulante com enoxaparina na 8ª por indicação médica. Foi internada na nossa instituição às 13 semanas para otimização da terapêutica anticoagulante (recomeçou varfarina, combinada até INR terapêutico). A primeira avaliação ecográfica (13 semanas e 3 dias) revelou feto com boa vitalidade, osso nasal ausente/hipoplásico, sem outra anomalia aparente para a idade gestacional. Na avaliação morfológica do 2º trimestre, foi confirmada anomalia da face fetal, aparentando ter ausência de osso nasal e narinas, apresentando estrutura rudimentar no lugar do nariz (Figura 1). Perante a possibilidade de embriopatia varfarínica, foi proposta interrupção médica da gravidez, que a grávida recusou. Programado o internamento às 36 semanas para switch para perfusão de heparina não fracionada (HNF), tendo o parto ocorrido às 37 semanas, por cesariana eletiva, sem intercorrências maternas. Recém-nascido com 3.650 g, Apgar 7 e 9 ao 1º e 5º minuto, com o diagnóstico final de hipoplasia nasal com fossas permeáveis a sonda muito fina, estenose do terço médio da fossa esquerda e estenose em 3 pontos na fossa nasal direita. Atualmente em seguimento pela cirurgia plástica e otorrinolaringologia, ainda não tendo realizado cirurgias de correção.

 

 

Caso 3. Mulher de 20 anos, nulípara, natural de Cabo Verde, com história de estenose mitral reumática, portadora de prótese valvular mecânica em posição mitral e anuloplastia tricúspide. Anticoagulada com varfarina, sem outros antecedentes patológicos. Por receio de dano fetal, após diagnóstico de gravidez, suspendeu anticoagulação. Internamento uma semana após suspensão, por taquicardia e cansaço. Os ecocardiogramas transtorácico e transesofágico revelaram trombo auricular esquerdo com envolvimento do anel protésico, sem interferência na abertura dos discos. A ecografia obstétrica mostrou gravidez de 12 semanas e 2 dias. A anticoagulação parentérica com HNF levou à melhoria clínica, mas com manutenção de pequeno trombo na face auricular do anel protésico. Medicada com enoxaparina e varfarina e após optimização da terapêutica anticoagulante, teve alta somente com varfarina. A avaliação ecográfica fetal foi sempre normal e a gravidez decorreu sem intercorrências. Internamento às 36 semanas para iniciar perfusão de HNF. Considerando os antecedentes de trombose parcial de prótese mecânica em posição mitral, foi realizada cesariana electiva às 37 semanas e 2 dias, sem intercorrências materno-fetais, com recém-nascido sem malformações aparentes, 2.775 g, IA: 9 e 10 ao 1º e 5º minuto. No pós-parto, sob HNF, apresentou hematoma da parede abdominal, drenado cirurgicamente. Não se verificaram complicações trombóticas adicionais da prótese. Teve alta sob varfarina.

Discussão

Apesar do decréscimo da incidência da doença valvular reumática nos países industrializados, a sua prevalência ainda representa 22% das valvulopatias4. Deste grupo, algumas mulheres em idade fértil serão candidatas a implantação de prótese valvular mecânica. No nosso país, esta problemática assume uma importância acrescida devido à população oriunda das ex-colónias portuguesas, refletida nos casos apresentados.

O aconselhamento pré-natal é essencial nestas mulheres, dado que algumas patologias cardíacas podem constituir-se como contraindicação absoluta ou relativa à gravidez. No caso de gravidez incidental, a interrupção médica da gravidez dentro dos prazos legais pode ser uma alternativa, como ilustra o Caso 1. No entanto, atualmente cada vez mais mulheres nessas condições optam por engravidar consciente dos riscos e os desfechos podem variar, tal como apresentam os autores.

A escolha do tipo de prótese valvular a implantar em mulher em idade fértil deve ter em consideração que uma prótese valvular mecânica tem maior durabilidade e menor taxa de substituição mas obriga a anticoagulação crónica life long. Em mulheres jovens portadoras de válvula mecânica, a anticoagulação tem que ser discutida multidisciplinarmente dado os riscos maternos e fetais que implicam e devem manter a anticoagulação oral mesmo quando já grávidas.

As próteses mecânicas estão associadas a uma maior morbimortalidade materna durante a gravidez, por complicações que percorrem o espectro da trombose à hemorragia, tal como o caso 3 tão bem ilustra com o trombo auricular esquerdo no 1º trimestre da gestação e a complicação hemorrágica pós-parto. O risco da formação de trombo valvular depende do tipo e da posição da prótese (maior risco se mitral, múltiplas próteses) e de outros fatores clínicos (história de evento tromboembólico anterior e fibrilhação auricular)2.

Segundo o registo de gravidez e doença cardíaca da Sociedade Europeia de Cardiologia, as mulheres portadoras de prótese valvular mecânica têm somente 58% de probabilidade de gravidez sem complicações5. A trombose de válvula mecânica ocorreu em 4,7% das mulheres (metade delas no 1º trimestre) e em todos os casos houve conversão para um tipo de heparina.

A HNF quando administrada ao longo de toda a gravidez tem maior risco de eventos tromboembólicos (33%, vs varfarina <4%), estando descritas tromboses massivas das válvulas protésicas6 e morte materna. Usada isoladamente durante toda a gravidez, apresentou maior taxa de trombose valvular (9,2%) vs utilização de HNF no 1º trimestre e restante gravidez com anticoagulante oral (3,9%)8. Outras preocupações com o seu uso são a trombocitopenia e a redução da densidade mineral óssea da grávida e fraturas osteoporóticas6,7. O excesso de morbimortalidade materna associado ao uso prolongado da HNF durante a gravidez conduziu à utilização de HBPM, associada ou não a doses baixas de aspirina2.

No estudo de Basude et al 2 analisou-se os desfechos fetais e maternos de grávidas com 3 regimes anticoagulantes diferentes, concluindo que as mulheres que fizeram HBPM e aspirina tiveram 100% de eventos adversos maternos e 25% fetal, enquanto as que fizeram somente varfarina, tiveram 13,5% maternos e a taxa mais alta de eventos adversos fetais (77%). O regime combinado de HBPM entre as 6-13 semanas seguida de varfarina até à 36ª semana apresentou taxas de 50% em ambos desfechos materno e fetal.

Na série de Quinn et al.8, analisados os desfechos de grávidas com próteses mecânicas submetidas a HBPM + aspirina (baixa dose), foram necessários grandes aumentos nas doses de HBPM para atingir a anticoagulação eficaz durante a gravidez (aumento de 54% relativa à dose pré-parto).

A varfarina9 constitui a melhor proteção contra as complicações tromboembólicas, no entanto atravessa livremente a placenta devido ao seu baixo peso molecular e atinge níveis significativos no feto, estando associada a padrão específico de anomalias - «embriopatia varfarínica»3. A melhor alternativa para o embrião/feto é a substituição por heparina que não atravessa a placenta, havendo preocupação relativamente à segurança materna (risco de trombose valvular de 9%).

A fetotoxicidade da varfarina inclui várias manifestações desde morte fetal, aborto precoce e vários graus de dismorfias e malformações envolvendo diferentes órgãos e sistemas. A hipoplasia nasal e o ponteado epifiseal e vertebral (condrodisplasia punctata) são as características mais consistentes e clássicas da embriopatia varfarínica. A incidência varia de 0-30% nas gravidezes expostas à varfarina (teratogenicidade aparentemente dose-dependente, mais frequente e grave quando dose necessária é superior a 5mg/dia10), com um risco médio de 6%, sendo a gravidade das manifestações e o prognóstico variáveis.3

As alterações esqueléticas são fisiopatologicamente explicadas por interferência no processo da carboxilação da osteocalcina na formação do osso (processo vitamina-K dependente)3, no período crítico da ossificação embriológica (6ª à 9ª semana de gestação)11.

Outro efeito adverso da varfarina é a anticoagulação excessiva fetal, podendo provocar hemorragia em qualquer órgão, sendo o mais preocupante o sistema nervoso central (altas taxas de atraso mental (100%), cegueira (54%), espasticidade (31%) e convulsões (23%) nas crianças com patologia do sistema nervoso)3.

As guidelines da European Society of Cardiology no que respeita à doença cardiovascular durante a gravidez1 recomenda o regime combinado, no entanto há estudos2 de elevada taxa de eventos adversos maternos sob essa terapêutica, o que levanta questões sobre a sua real eficácia e segurança.

Um dado ignorado pelas guidelines é a semivida de eliminação longa da varfarina: assume-se que, ao parar a varfarina na 6ª semana de gestação, o feto está salvo do risco de embriopatia, no entanto não se tem em conta que a semivida pode ser tão longa quanto 60 horas e a droga pode ser detetável até 300 horas9.

O parto vaginal planeado é a via de eleição, na ausência de contraindicações obstétricas, com switch prévio para a heparina. A cesariana eletiva pode ser considerada principalmente nos casos de alto risco de trombose, como evidenciado no caso 3 (diminuindo período de tempo sem anticoagulação)1.

Como conclusão, salienta-se que não há anticoagulante ou esquema misto ideal para a mulher grávida com prótese valvular mecânica. Nas opções disponíveis, enquanto a varfarina está associada a altas taxas de perda e alterações fetais (como exemplificado no Caso 2), a HBPM (com aspirina) provoca sérios eventos adversos maternos e a HNF apresenta riscos inaceitáveis. Estes dados são importantes para informação pré-concepcionalmente mas também quando a substituição valvular cardíaca é proposta à mulher jovem, em idade fértil1.

O manejo destas doentes durante a gravidez leva à necessidade de um controlo rigoroso por parte do médico e de incutir a necessidade de disciplina férrea na grávida, de modo a minimizar os fatores de risco associados.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Alexia Toller

Hospital de São Francisco Xavier

E-mail: alexiatoller@gmail.com

 

Recebido em: 26/11/2015

Aceite para publicação: 14/2/2016