Introdução
A versão cefálica por manobras externas ou versão cefálica externa (VCE) é uma manobra que tem por objectivo converter uma apresentação pélvica numa apresentação cefálica pela manipulação fetal através do abdómen materno. É descrita como uma das estratégias possíveis para reduzir a taxa de cesarianas1, sendo este um dos pressupostos da norma de 2015 da Direção Geral de Saúde2 para a sua implementação. A recomendação da oferta da VCE a grávidas com feto em apresentação pélvica no termo, e que não apresentem contraindicação para tal, é também sugerida por sociedades cientificas obstétricas de relevância mundial3), (4.
Apesar das recomendações das sociedades médicas, a VCE é pouco praticada sendo três as razões apontadas: o desconhecimento de que o feto se encontra em apresentação pélvica, a recusa da grávida e a relutância do prestador de cuidados médicos em propor/realizar a VCE. Em Portugal, em que de forma rotineira se realiza ecografia no terceiro trimestre, conhecem-se as gestações em que o feto se encontra em apresentação pélvica no termo mas, em países em que não se encontra instituída a ecografia no último trimestre, em mais de metade das gestações o reconhecimento da apresentação anómala só ocorre durante o trabalho de parto5. Assim, é sugerida a introdução da avaliação ecográfica sistemática no terceiro trimestre (após as 36 semanas) porque, ao permitir identificar o feto em apresentação pélvica, possibilita aconselhar o casal quanto à VCE e à via de parto5. No entanto, mesmo identificando todos os fetos em apresentação pélvica, um número significativo de gestantes - entre 9 a 45% - declina a oferta da VCE6), (7), (8), (9)-(10 que também não é recomendada pelos cuidadores por razões outras que não as contraindicações consensuais11), (12.
Não se conhece em Portugal a adesão da comunidade obstétrica (médicos e enfermeiros) à realização da VCE, nem qual a resposta das grávidas com fetos em apresentação pélvica à proposta de VCE. Torna-se, no entanto, importante conhecer a perspectiva da mulher que durante a sua gravidez foi sujeita a VCE, no sentido de melhorar a prestação de cuidados. No Serviço de Obstetrícia do Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução do Hospital Santa Maria/Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (HSM/CHULN) a VCE é realizada de forma habitual. Tivemos como objectivo deste estudo, conhecer a percepção da mulher aquando da realização da VCE no que concerne à informação previamente transmitida, ao incómodo/dor durante a manobra e ao grau de satisfação após a sua conclusão.
Metodologia
Foi realizado um estudo descritivo através de uma entrevista telefónica, estruturada, tendo sido contactadas todas as gestantes sujeitas a VCE no Serviço de Obstetrícia do Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução do HSM/CHUNL entre janeiro 2015 e agosto 2018.
As entrevistas foram realizadas por enfermeiras da Unidade de Medicina Materno Fetal do HSM/CHUNL entre outubro e novembro de 2018. O estudo foi aprovado pela comissão de ética do HSM/CHUNL. No momento da entrevista foi solicitado o consentimento para a utilização dos dados adquiridos para o estudo.
A manobra foi sempre executada por médicos com a colaboração de uma enfermeira e sempre sob tocólise (salbutamol em perfusão) e após evidência cardiotocográfica de bem-estar fetal. Após a realização da VCE foi realizado um traçado cardiotocográfico tendo a gestante tido alta ao fim de uma hora de registo com critérios de bem-estar fetal. Considerou-se a manobra como tendo sucesso caso se confirmasse a apresentação cefálica após a sua execução.
Na obtenção dos dados demográficos (idade, etnia, escolaridade) e a idade gestacional aquando da realização da manobra foram consultados os registos realizados no momento da intervenção. O guião da entrevista foi validado pela realização de um pré teste com 10 casos. Na entrevista a mulher foi interrogada quanto ao momento em que lhe foi feita a proposta de VCE e à informação que dispunha sobre a manobra; foi também questionada sobre se tinha procurado/tentado alguma outra alternativa de proceder à rotação do feto. A mulher foi questionada sobre o grau de dor (ausência de dor/dor ligeira/dor moderada/dor intensa/dor máxima) durante a VCE. Por fim foi inquirida sobre a disponibilidade de repetir a manobra e se a recomendaria a uma amiga/familiar em que o feto se encontrasse em apresentação pélvica. Após ter sido feita a colheita de dados, procedeu-se à análise descritiva das respostas obtidas; para avaliar a influência do sucesso da VCE na percepção da dor, na recomendação da manobra a outra grávida e na disponibilidade para uma repetição da manobra utilizou-se o teste de qui quadrado considerando-se existir significância estatística se p< 0,05.
Resultados
No período em estudo realizaram-se 105 VCE. Responderam ao contacto 66 mulheres e todas aceitaram ser entrevistadas. A VCE foi bem-sucedida em 27 (40,9%) destas mulheres.
As características da população entrevistada estão apresentadas no Quadro I.
A maior parte das mulheres era utente do Serviço de Obstetrícia do CHUNL (48;72,7%) e tomou conhecimento da possibilidade de realizar a manobra ou através das consultas externas de Obstetrícia (41; 62,1%) ou no internamento (3; 4,5%); treze (19,6%) tomaram conhecimento sobre a VCE pelo seu médico assistente que as referenciou ao CHUNL; quatro (6,0%) recorreram à Internet para se informarem sobre a VCE e consultar locais onde pudesse ser executada. A maioria das mulheres (53;80,3%) considerou-se bem informada quanto à manobra antes da sua realização e 54 (81,8%) referiu ter sido adequado o momento em que a mesma lhes foi proposta. No entanto, 13 (19,6%) manifestaram uma maior necessidade de informação.
Na maioria dos casos (56; 84,8%), as mulheres percecionavam a VCE como a alternativa à cesariana, não vendo o parto pélvico como uma opção. Quinze mulheres (22,7%) tinham experimentado técnicas alternativas (acupunctura, osteopatia, exercícios dentro e fora de água) antes da VCE.
A manobra de VCE foi percepcionada pelas mulheres de diferentes formas. Seis (9,0%) descreveram a manobra como indolor, 9 (13,6%) como associada a dor ligeira, 11 (16,7%) como dor moderada, mas 32 (48,5%) como dor intensa e 8 (12,1%) como dor insuportável.
Quando questionadas sobre o estado emocional antes do procedimento, a maioria descreveu estar tranquila (34; 51,5%) ou confiante (8; 12,1%) mas 24 (36,4%) encontravam-se ansiosas. Após o procedimento a maioria encontrava-se satisfeita ou tranquila (39; 59,1%) mas 17 (25,8%) mantinham-se ansiosas e 10 (15,1%) estavam arrependidas da decisão de terem permitido a realização da manobra.
Questionadas se voltariam a aceitar fazer uma VCE noutra gravidez, 43 (65,1%) responderam que sim e apenas 21 ( 31,8%) disseram que não - 2 não responderam. E inquiridas se recomendariam a VCE a uma amiga ou familiar, 45 (68,2%) responderam afirmativamente e 18(27,3%) afirmaram que não recomendariam - 3 escusaram-se a responder. Não se verificou associação entre o sucesso da VCE e a intensidade da dor referida (p= 0,26), a eventual repetição da manobra numa gestação futura (p =0,07) e a recomendação da manobra à amiga ou familiar (p=0,4).
Discussão
A entrevista conduzida a mulheres que foram sujeitas a VCE evidenciou que a manobra é um procedimento incómodo e que, em algumas grávidas, se pode tornar intolerável. No entanto, apenas uma minoria se arrependeu da decisão e a maioria repetiria a manobra numa futura gestação, recomendando-a a amigas/familiares.
Os trabalhos que avaliaram a experiência da grávida sujeita a VCE apontam que a dor/incómodo está presente de forma significativa num número considerável de gestantes e o nosso estudo assim o confirma. Impey e col. refere que a dor surge em mais de 75% das gestantes13, e Fok e col14 que em 20% a dor é sentida como de intensidade maior que 7/10 numa escala visual analógica. No estudo de Rinjders e col9 60% das grávidas mencionava existir dor significativa durante a VCE e 27% apontavam-na como intensa. No estudo de Pinchon e col. (8 a experiência da VCE é vista como angustiante por 70% das mulheres. Embora a nossa amostra não o confirme, o insucesso está associado a uma maior experiência de dor8), (14), (15, não sendo claro se é a dor que impede a realização da manobra - e daí o insucesso - ou se é a frustração de não ter tido sucesso na manobra que aumenta, a posteriori, a percepção da dor. De realçar a importância de aspectos psicológicos, como a depressão da grávida e o medo da VCE, que parecem ser factores independentes para uma maior percepção de dor durante a manobra15.
Na série de Pinchon e col. (8, as mulheres mais favoráveis à VCE foram aquelas que melhor aceitavam um parto pélvico vaginal; no entanto, na nossa amostra, a maioria das mulheres não via o parto pélvico vaginal como opção. Esta atitude pode decorrer do quase abandono deste tipo de parto em Portugal e que leva a que o aconselhamento pela cesariana, por parte dos profissionais de saúde, seja quase uma regra e se traduza numa taxa elevada de cesarianas na apresentação pélvica16. Mas, na nossa amostra, se o parto pélvico vaginal não era uma opção, a cesariana também não; e de facto, muitas tentaram outras formas de conseguir a versão fetal espontânea antes de se terem decidido pela VCE. Esta procura por métodos de versão espontânea é referida em estudos anteriores17 e passa pela acunpunctura (com ou sem moxibustão), quiropraxia, hipnoterapia, posicionamentos maternos e ioga. É provável que, em muitas mulheres, a motivação para um parto vaginal supere os receios relativamente à VCE e que, em algumas, leve à repetição da manobra.
Dentro das várias razões apontadas como barreira para a realização de VCE por parte da grávida, sobressaem o medo, a preferência por uma cesariana planeada, o conhecimento/experiência de complicações no parto e a falta de informação18. A pertinência de uma informação adequada é demonstrada pelo facto da maioria das grávidas que entrevistamos se ter considerado bem informada no momento da decisão mas, mesmo assim, um pequeno numero considerou-se mal informada e algumas referiram que foram aconselhadas a não se informar. Embora não se conheça em Portugal qual o grau de informação que as grávidas possuem sobre a VCE, trabalhos recentes apontam que uma informação dada a partir das 32/34 semanas, logo que se conheça a apresentação pélvica, permite um maior grau de satisfação da gestante e reduz o conflito de tomada de decisão facilitando a opção pela VCE8), (18. A informação e o aconselhamento devem ser transmitidos de forma apropriada a cada caso, provavelmente treinando profissionais de saúde para o fazer e disponibilizando panfletos informativos.
No processo de decisão quanto à realização de VCE, é importante frisar a quase ausência de riscos fetais associados à manobra pois, para além do medo da dor, existe também na grávida o medo de provocar lesões ao feto. Já vários estudos mostraram o risco muito baixo de complicações fetais/neonatais associadas à VCE. Melo e col. (7 na maior serie apresentada por um único centro sobre VCE, em que a manobra foi tentada em 2614 grávidas, a taxa de anomalias cardiotocográficas durante o procedimento foi de 0,9% e apenas em 0,5% foi necessária uma cesariana de emergência. Registaram-se 3 casos de morte fetal dos quais apenas um foi passível de ser atribuído a um evento associado à VCE - transfusão feto-materna maciça. Nessa coorte ocorreram 2 mortes neonatais e nenhuma atribuída à manobra. Não houve nenhum caso de rotura uterina materna ou de fractura no feto.
Apesar de, na nossa amostra, a taxa de insucesso ter superado a taxa de sucesso da VCE, a maioria das grávidas disse sentir-se satisfeita/tranquila/aliviada após o procedimento. Provavelmente, a sensação de terem esgotado todas as tentativas de conseguirem um parto dito “normal” fez com que tenham valorizado a experiência da manobra e que a tenham sentido como positiva. Apesar do desconforto associado à VCE, a maioria das mulheres repetiria o procedimento e o recomendaria a terceiros. Estes achados estão de acordo com o estudo de Bogner e col. (19 que, no entanto, atribui uma maior probabilidade de repetir e de recomendar a manobra ao sucesso da VCE.
Sendo, ao nosso conhecimento, a primeira avaliação sobre o que sentem as grávidas durante a manobra de VCE em Portugal, o estudo apresenta alguns pontos fracos. Trata-se de estudo retrospectivo com as limitações inerentes, em que a participação foi pequena (66 participantes em 105 procedimentos efectuados), o que associado à vontade destas mulheres em terem um parto vaginal pode ter enviesado as respostas. Consideramos também que o facto de nem todas as mulheres estarem nas mesmas condições no momento da entrevista, pois o intervalo de tempo entre a realização da manobra e o momento da entrevista não foi constante entre todas, pode ter condicionado vieses de memória e influenciado o que foi recordado. Além do grau de literacia das grávidas avaliadas ser elevado (Quadro I), o estudo, ao reflectir a realidade de um centro terciário localizado num grande centro urbano, pode levar a que os resultados obtidos possam não ser aplicáveis a todo o país.
A apresentação pélvica no termo não deve ser tratada de forma banal pois é sempre uma fonte de preocupação para a grávida/casal ao obrigar a tomar decisões, entre elas a da possível realização da VCE. Um casal bem informado poderá tomar uma decisão consciente e responsável e, para tal, é determinante o conhecimento da experiência das mulheres que foram submetidas a VCE para quem transmite a informação (médico, enfermeiro). A importância de equipas preparadas e motivadas para efectuarem estes procedimentos, alem de se associarem uma maior taxa de êxito da manobra20, pode também contribuir para ajudar a diminuir o desconforto da VCE. Esta é quase sempre percepcionada como incómoda e por isso deverá ser apenas realizada (ou supervisionada) por alguém experiente e tendo sempre uma especial atenção à forma como a grávida reage ao procedimento.