Introdução
De acordo com as estimativas GLOBOCAN 2018 para incidência e mortalidade por câncer, eram esperados 569.847 novos casos e 311.365 mortes por câncer do colo do útero1. Este ano, 16.590 novos casos dessa enfermidade são estimados no Brasil, com maiores taxas de incidência nas regiões menos desenvolvidas2. Até o momento, não existe um consenso mundial definitivo sobre o grupo etário a ser submetido ao rastreamento.
De acordo com as diretrizes do Ministério da Saúde do Brasil para rastreamento do câncer do colo do útero, a detecção das lesões precursoras está incluída dentre as atribuições da atenção primária à saúde, através do exame de citologia cervical. O Ministério da Saúde Brasileiro defende que o rastreamento para lesões do colo do útero deve começar após 25 anos de idade, uma vez que o rastreamento realizado em mulheres com idade inferior a 25 anos não está associado a redução na mortalidade por essa neoplasia3. Destaca-se que o teste é realizado de forma oportunística, ou seja, a frequência e o intervalo entre os exames não está submetida a qualquer tipo de imposição ou restrição3), (4.
A Agência International para Pesquisa do Câncer (IARC) afirma que, entre os diferentes tipos de neoplasias malignas, o câncer do colo do útero é o mais efetivamente controlado através do exame de rastreamento5. Além disso, nega impacto do rastreamento a partir dos 20 anos5, em concordância com as diretrizes brasileiras.
Por outro lado, nos Estados Unidos, o rastreamento do câncer do colo do útero se inicia a partir de 21 anos6. Comprovou-se que a incidência das lesões precursoras entre adolescentes permaneceu a mesma nas últimas quatro décadas e que as lesões displásicas causadas pela infecção pelo Papillomavírus humano (HPV) normalmente regridem espontaneamente, dentre esse grupo etário7. Devido aos possíveis malefícios, tais como insuficiência istmo-cervical e parto prematuro, mesmo mulheres demonstrando lesão intraepithelial escamosa de alto grau antes dos 21 anos, o tratamento pode ser mais prejudicial que benéfico6.
A idade de início da atividade sexual é um dos fatores que mais influenciam o risco de câncer do colo do útero. Estudos brasileiros indicam que, na nossa população, as pessoas se tornam sexualmente ativas com idades entre 15 e 17 anos, em média8), (9, podendo ocorrer assim, risco de infecção precoce pelo HPV. Dessa forma, pode-se questionar se o ínicio do rastreamento para o câncer do colo do útero deva se iniciar após 25 anos, ou seja, após 10 anos de vulnerabilidade.
A baixa frequência de carcinoma invasor anteriormente aos 25 anos e o baixo impacto nas taxas de mortalidade são algumas das razões que justificam o início do rastreamento a partir dos 25 anos3. Há dados que indicam que lesões intraepiteliais escamosas de alto grau (LIEAG) em mulheres jovens costumam corresponder a quadros de neoplasia intraepitelial cervical grau II, os quais podem apresentar taxas consideráveis de regressão espontânea10. Além disso, o sobretratamento dessas mulheres jovens está associado a aumento da morbidade neonatal e obstétrica11.
Cabe destacar que a citologia cervical configura um exame de rastreio e não de diagnóstico. Comparada à histologia sua sensibilidade varia de 11 a 99% (média de 57%) e sua especificidade varia de 14 a 97%. Para esfregaços convencionais, em caso de LIEAG a especificidade é de cerca de 96,7 % enquanto a sensibilidade é de apenas 55,2%.12
Dessa forma, o objetivo desse estudo é definir a frequência dos resultados de citologia cervical alterados para mulheres com idade inferior a 25 anos que vivem em uma cidade média do estado de São Paulo, de forma comparativa à frequência desses resultados entre as mulheres de 25 e 64, o público alvo do programa de rastreamento do nosso país.
Métodos
Trata-se de estudo transversal observacional e analítico o qual analisou resultados de exame de citologia cervical (esfregaços convencionais) provenientes do Sistema Único de Saúde (SUS), referentes a pacientes com idade inferior a 25 anos. Todos os casos foram avaliados, durante o período de janeiro de 2005 até dezembro de 2015 (11 anos), pela equipe de patologistas do Instituto de Patologia de Araçatuba, São Paulo, Brasil, laboratório acreditado pelo Programa de Acredição e Controle de Qualidade da Socidade Brasileira de Patologia. Os dados foram coletados com base nos resultados dos exames de citologia cervical mantendo-se a privacidade das pacientes. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 83847517.10000.5379).
Foram analisadas variáveis citológicas e a idade das pacientes. Os resultados de citologia foram classificados seguindo o Sistema de Bethesda: (13 negativo para lesão intraepithelial e malignidades; ASC-US (atipias de células escamosas de significado indeterminado, possivelmente não neoplásicas); ASC-H (atipia de células escamosas não podendo excluir lesão intraepithelial escamosa de alto grau); LIEBG (lesão intraepithelial escamosa de baixo grau); LIEAG; carcinoma microinvasor; CEC (carcinoma de células escamosas); AGUS (atipia de células glandulares de significado indeterminado, possivelmente não neoplásicas); ACG-H (atipia de células glandulares não podendo excluir lesão intraepitelial de alto grau), adenocarcinoma “in situ” e adenocarcinoma.
A categoria atipia de células glandulares (ACG) engloba todos os exames classificados como AGUS and AGC-H. Os resultados classificados como LIEAG, carcinoma microinvasor e CEC foram agrupados na categoria LIEAG+. Adenocarcinoma “in situ”, adenocarcinoma invasor e adenocarcinoma endometrial foram agrupados na categoria “adenocarcinoma”. Todos os exames classificados como insatisfatórios foram excluídos da análise. Para avaliar a frequência dos resultados foram utilizados os “softwares” “Office Excel” e “GraphPad Prism” versão 5.00 (San Diego, CA, USA; www.graphpad.com). A razão de prevalência foi utilizada para organizar os dados em tabelas com valores absolutos (n) e relativos (%), e analizar possível diferença estatística entre os resultados de citologia cervical nos dois grupos etários estudados.
Resultados
Um total de 234.714 resultados de citologia cervical foram analizados; sendo que 3.292 casos foram excluídos do estudo por resultados insatisfatórios, permanencendo 231.422 casos totais. Houve 37.671 casos relativos às mulheres com idade inferior a 25 anos e 193.751 casos relativos às mulheres com idade entre 25 e 64 anos. Entre as mulheres com idade inferior a 25 anos, 36.486 (96,85%) apresentaram resultados negativos e 1.185 (3,15%) apresentavam resultados alterados. Entre as mulheres com idade de 25 a 64 anos, 190.669 (98,41%) apresentavam resultados negativos e 3.082 (1,59%) apresentavam resultado alterado (veja Figura 1).
Entre as mulheres com idade inferior a 25 anos, houve um maior número de casos classificados como ASC-US (766; 64,64%), seguido por LIEBG (271; 22,87%), ASC-H (76; 6,41%), LIEAG+ (46; 3.88%), and ACG (26; 2.19%). Entre as mulheres com idade entre 25 e 64 anos, houve um maior número de casos classificados como ASC-US (1742; 56,52%; seguidos por ASC-H (397; 12,88%), ACG (355; 11.52%), LIEBG (328; 10.64%), LIEAG+ (252; 8.18%), e adenocarcinoma (8; 0,26%) (veja Figura 2).
A razão de prevalência calculada com intervalo de confiança de 95% apresentou os seguintes valores: ASC-US 2,29 (2,10-2,49), ASC-H 1,0 (0,78-1,27), AGC 0,38 (0,25-0,56), LIEBG 4,31 (3,66-5,06), LIEAG+ 0,95 (0,69-1,30). Uma vez que não houve casos de adenocarcioma entre as mulheres com idade inferior a 25 anos, a razão de prevalência não foi calculada. De acordo com a análise estatística, a razão de prevalência revelou que idade inferior a 25 anos foi fator de proteção para ACG (RP < 1) e fator de risco para as categorias ASC-US e LIEBG (RP > 1). (Veja o Quadro I).
Discussão
Este estudo demonstrou uma frequência de 3,15% de resultados alterados de citologia cervical para mulheres com idade inferior a 25 anos, o que corresponde a quase o dobro da frequência observada para as mulheres com idade entre 25 e 64 anos (1,58%). Por outro lado, a frequência de lesões precursoras verdadeiras (LIEAG+)14 foi mais baixo no grupo etário mais jovem.
Uma vez que houve muitos casos de ASC-US e LIEBG, foi confirmada a relação previamente descrita entre mulheres jovens e lesões precursoras com elevada chance de regressão espontânea2), (5), (6. Essa elevada frequência de resultados alterados entre as mulheres do grupo etário mais jovem está relacionada ao início precoce da atividade sexual9), (15. De 2006 a 2013, foram relatados 14.477.595 exames de rastreamento realizados pelo Sistema Único de Saúde para mulheres com idade inferior a 25 anos - sendo 545.726 (3,7%) dos quais positivos para lesões precursoras16. Esse dado previamente publicado corrobora a viabilidade dos dados apresentados no presente estudo como um bom panorama da situação do rastreamento do câncer do colo do útero no Brasil; o qual apresenta frequência de resultados alterados mais elevada do que é esperado para as mulheres jovens.
De acordo com o protocolo de rastreamento do câncer do colo do útero europeu, há variações entre os protolocos dos diferentes países da União Europeia5. Nesse contexto, a população alvo para rastreamento do câncer do colo do útero permanence em discussão. No Brasil, o Ministério da Saúde reafirma que não é válido realizar o rastreamento em mulheres com idade inferior a 25 anos porque a taxa de carcinoma invasor nesse grupo etário é muito baixa (somente 1% dos casos). (3), (17 No entanto, a idade precoce do início da atividade sexual pode influenciar essse resultados demonstrando diferenças entre países distintos. Além disso, diferentes métodos de rastreamento estão disponíveis (esfregaço convencional, citologia de meio líquido e testes moleculares para detecção do HPV). Para avaliar estudos internacionais, a informação sobre o método empregado deve ser levada em consideração.
Observou-se no presente estudo, baixa frequência de resultados de citologia alterados, nos dois grupos etários analisados. Esses dados estão em concordância com análise histórica brasileira previamente publicada, na qual destacou-se que os índices de resultados citológicos positivos do nosso país estão abaixo do que é recomendado pelos protocolos internacionais16), (18. Uma possível justificativa para esse achado pode ser a estimativa de que a cobertura do rastreamento para câncer de colo do útero no Brasil esteja abaixo de 70%16), (18), (19. Destaca-se ainda que os indicadores de qualidade permanecem abaixo do esperado e os mesmos encontraram-se estáveis nos últimos anos em todas as regiões do Brasil18.
Além da baixa cobertura, outros pontos a serem considerados na tentativa de justificar a baixa frequência de resultados positivos podem ser fatores secundários a coleta, preparação e/ou leitura inadequada dos esfregaços; reforçando a necessidade de programas de controle de qualidade e eduação continuada em nosso país16), (19. Estima-se que cerca de 10% dos esfragaços no Brasil apresentam prejuízos de interpretação por baixo critérios de qualidade19.
Apesar de todos os esforços, não somente no Brasil, como também nos outros países da América Latina, muitas mulheres ainda são diagnosticadas com câncer cervical avançado. Em algumas regiões do Brasil menos de 60% do público alvo é submetido ao exame de citologia e cerca de 80% das mulheres avaliadas realizam o exame anualmente. Dessa forma, observa-se que as taxas de resultados positivos encontradas podem ser consequentes ao fato das mesmas mulheres serem submetidas ao exame anualmente, enquanto as demais nunca o fazem19.
Considerando que cerca de 25% da população brasileira apresenta planos de saúde privados, os dados apresentados refletem apenas a realidade das pacientes atendidas no contexto do SUS16; o que também pode influenciar os resultados identificados.
Ainda que possa parecer elevada, a frequência de resultados insatisfatórios de 1,4% está de acordo com o preconizado pelo Manual de Gestão da Qualidade para Laboratórios de Citopatologia publicado pelo Ministério da Saúde brasileiro, o qual recomenda taxas inferiores a 5%20.
A possibilidade de resultados falso negativos também deve ser considerada. As principais causas desses resultados são: coleta, transporte ou fixação inadequados; e capacitação inadequada dos profissionais que realizam a coleta ou avaliação do esfregaço3), (16. No entanto, a grande população analisada reduz a influência desse tipo de viés.
Atualmente há vacina contra HPV disponível no SUS; sendo considerada a melhor profilaxia contra a infecção por esse vírus. No entanto, essa vacina foi introduzida no SUS em 2014 para pré-adolescentes, não influenciando, portanto, os dados do presente estudo21. Estudos futuros devem avaliar o impacto da vacina na prevalência do câncer do colo uterino no nosso país.
Devido às inúmeras peculiaridades da realidade brasileira e dos demais países da América Latina, considerando as dificuldades de acesso aos serviços de saúde, é necessária uma abordagem mais ampla da questão do câncer cervical. A introdução da vacina, a educação das pessoas, a melhora dos programas de controle de qualidade dos esfregaços citológicos e o tratamento das pacientes com lesões curáveis deveriam ser os pilares para controle e redução das taxas de câncer cervical19.
É possível verificar frequência significativa de resultado de citologia cervical alterado para mulheres com idade inferior a 25 anos; ainda que a prevalência das lesões precursoras verdadeiras não esteja associada a esse grupo etário. Uma vez que os protocolos de rastreamento devam considerar o risco de progressão das lesões precursoras para câncer do colo do útero, avaliar a influência de variáveis clínicas e epidemiológicas pode ser uma ferramenta importante para tentar identificar as pacientes que se beneficiariam do rastreamento mais precoce. Dessa forma, para as mulheres com idade abaixo de 25 anos, excluindo-se situações excepcionais, a realização do rastreamento deva ser desaconselhada devido ao grande risco de morbidade. De uma forma geral, independente do grupo etário, o programa brasileiro de rastreamento do cancer cervical necessita da implementação de medidas práticas que elevem a abrangência populacional do mesmo e melhorem os seus indicadores de qualidade.