Introdução
O parto vaginal instrumentado é aplicável perante anomalias do 2.o estadio do trabalho de parto, como trabalho de parto arrastado, suspeita de compromisso fetal e necessidade de abreviar o período expulsivo para benefício materno e assim evitando a realização de uma cesariana 1,2.
A escolha do instrumento a utilizar (ventosa, fórceps, espátulas) depende de vários fatores, como a idade gestacional, a posição e variedade da apresentação, a disponibilidade do instrumento e a experiência do operador 1,2. O operador deve também fazer uma escolha baseada no conhecimento das vantagens e desvantagens de cada um dos instrumentos1.
Nos Estados Unidos da América, em 2017, 3,1% dos partos foram instrumentados (0,5% de fórceps e 2,6% auxiliados por ventosa) (3. A tendência global nos últimos anos demonstra o aumento do número de cesarianas com diminuição dos partos instrumentados4. A nível europeu, dados de 2010 apontavam que Portugal era o 4.o país com maior taxa de cesarianas (36,3%) e o terceiro com maior taxa de partos instrumentados (14,9%).5 Segundo dados da PORDATA6, 52,6% (45067) dos partos realizados no ano de 2018 foram distócicos, sendo que neste grupo 64,8% foram realizados por cesariana e 35,1% classificados como outros, onde estão incluídos os partos instrumentados. Em 2019, com uma diminuição global do número de partos em relação a 2018, cerca de metade (49,4%) foram partos distócicos, incluindo cesarianas6. Dados sobre 12 hospitais portugueses reunidos no Consórcio Português de Dados Obstétricos, reportam uma taxa de partos instrumentados de 20,4% em 2019 e 21,0% em 2020, com um claro predomínio de utilização de ventosa7.
Em Portugal, o internato médico de formação específica de Obstetrícia e Ginecologia contempla, à data, de acordo com a Portaria n. o 613/2010 de 3 de agosto, um número mínimo de partos eutócicos (100) e distócicos (50 cesarianas e 50 partos instrumentados) realizados para a conclusão do internato6. Em relação ao parto instrumentado a utilização de ventosa, fórceps e espátulas é muito variável entre hospitais e diferentes equipas de serviço de urgência, sendo que esta diferença tem impacto no tipo de instrumento utilizado pelo interno durante o seu percurso. Dos 50 partos instrumentados previstos no programa, 10 partos, no mínimo, deverão ser auxiliados pelo instrumento menos utilizado no serviço de formação8.
A experiência tocológica adquirida no internato é determinante nas decisões e ações futuras do obstetra. Os objetivos deste trabalho são caracterizar e avaliar a experiência na realização de partos instrumentados dos IFE portugueses de formação específica (IFE) em Ginecologia e Obstetrícia assim como conhecer a sua opinião sobre o seu grau de confiança e as suas principais limitações na realização de um parto instrumentado.
Métodos
Os autores elaboraram um inquérito constituído por 47 perguntas para responder aos objetivos propostos. Foram incluídas questões para a caracterização demográfica dos IFE, do tipo de hospital de formação (central ou periférico), ano de internato, tipo de instrumento mais utilizado, experiência do interno no momento do inquérito (número de partos eutócicos e distócicos realizados), caracterização do treino teórico e prático com ventosa e fórceps (escala numérica de 1 a 9), principais preocupações na sua utilização (morbilidade materna e fetal) e auto-avaliação da confiança sentida na realização de partos instrumentados com ventosa e fórceps (escala numérica de 1 a 9). Para a construção do inquérito recorreu-se a ferramentas utilizadas para avaliações semelhantes em estudos científicos9,10,11. Previamente à aplicação do questionário foi realizado um pré-teste piloto, aplicando-se o mesmo a um grupo de IFE com posterior ajuste de questões.
O inquérito foi divulgado em formato online a todos os diretores de serviço dos hospitais portugueses com idoneidade formativa na área da Obstetrícia e Ginecologia e por diversos canais (redes sociais e email) com a colaboração da Portuguese Network of Trainees in Obstetrics and Gynaecology (PoNTOG) e da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal (SPOMMF. O período de recrutamento foi de 5 meses (1 de maio a 30 de setembro de 2019) e a população alvo foram os IFE do 2.o ao 6.o ano. Tratou-se de um inquérito anónimo, voluntário e os dados recolhidos foram utilizados apenas para o presente estudo pelo investigador principal, cumprindo-se todas as normas de ética e confidencialidade.
A análise dos dados foi realizada com auxílio dos programas Microsoft Office Excel®, versão 2016, e o Statistical Package for the Social Science (SPSS®), versão 26, e foi estabelecido um nível de significância estatística para valores de p< 0,05.
Resultados
Obtiveram-se 82 respostas ao inquérito realizado. A média de idades da amostra foi de 29,3±0,248 anos e 92,7% (n=76) dos participantes era do sexo feminino. Cerca de metade dos participantes (53,7%, n=44) estava a realizar a sua formação num hospital central. A distribuição das respostas por ano de internato foi variável, com um máximo de respostas no 6.o ano (n=20) e mínimo no 4.o ano (n=8). As características demográficas e profissionais encontram-se descritas no Quadro I.
A ventosa foi o instrumento mais frequentemente utilizado pelos IFE (95,1%), sendo que o primeiro parto instrumentado por ventosa foi realizado no primeiro ano de formação em 96,3% dos IFE. Em relação ao primeiro parto auxiliado por fórceps, 37,8% dos IFE realizou-o no primeiro ano de formação. A maioria dos IFE inquiridos (97,6%) considera que ter autonomia na aplicação de mais do que um instrumento constitui uma mais valia na sua atividade profissional. Os IFE do 6.o ano realizaram, em média, 118,9±41,23 partos auxiliados por ventosa e 19,8±14,48 partos auxiliados por fórceps. A descrição completa do número de partos distócicos realizados pelos IFE do grupo do 2.o-3.o anos e 4.o-6.o anos encontra-se detalhada no Quadro II.
No grupo de IFE do 4-6.o ano a realizar formação num hospital central, 27% dos IFE tem um número igual ou inferior a 10 partos auxiliados por fórceps. Situação verificada em 40% dos IFE a realizar formação num hospital periférico. Nos partos auxiliados por ventosa, 7,7% dos IFE a frequentar a formação num hospital central e 10% num hospital periférico têm um número igual ou inferior a 40.
Os IFE apontaram como principal motivo de menor utilização dos fórceps a ausência de utilização pelos elementos da equipa de urgência que integravam. Nesta amostra, 90,2% dos IFE teve oportunidade de realizar formação prática de partos instrumentados durante o internato. A classificação do conhecimento teórico e prático sobre partos instrumentados pode ser consultada no Quadro III.
Perante a hipotética necessidade de aplicar um fórceps ou uma ventosa sem supervisão, os IFE apresentam, respetivamente, um nível de confiança de 3,40±0,25 e 7,05±0,16 (escala de 1 a 9). O nível de confiança para aplicação de um fórceps foi significativamente inferior para o grupo do 2.o-3.o anos em comparação com o grupo do 4.o-6.o anos (2,39±0,271 e 4,20±0,351, p<0,001), assim como para a aplicação de ventosa (6,22±0,23 e 7,67±0,17, p<0,001). Quando questionados os IFE do 6.o ano (n=20) sobre o seu nível de confiança na realização de um parto instrumentado, atribuíram, em média, uma pontuação de 4,25±0,56 para a utilização de fórceps e 8,05±0,22 para a utilização de ventosa (p<0,001).
Na utilização de ventosa, os IFE afirmaram que a sua maior preocupação em relação à morbilidade materna são as lacerações vaginais (32,9%) e os cefalo-hematomas (56,1%) no que respeita à morbilidade do recém-nascido. Quando utilizados fórceps, a maior preocupação relativamente à morbilidade materna são as lesões obstétricas do esfíncter anal (74,4%) e quanto à morbilidade do recém-nascido, a fratura craniana é a resposta mais apontada (35,4%). Quando questionados sobre qual o momento que causa maior preocupação na realização de um parto instrumentado com fórceps, 40% dos IFE do 6.o ano referiu ser a articulação dos fórceps.
No grupo de IFE do 4.o ao 6.o anos, 63% (n=29) não considera que a oportunidade de realização de partos instrumentados com fórceps, durante o internato, seja adequada, mantendo opinião para a utilização de ventosa apenas 2,2% da amostra (n=1). Em relação ao treino obtido durante o internato médico, 56,5% desta amostra considerou que este não o tornará apto na utilização de fórceps autonomamente. No entanto, a maioria dos IFE deste grupo (97,8%) considera que o treino obtido será suficiente para operar autonomamente com ventosa após conclusão da sua formação.
Discussão
Este inquérito permite pela primeira vez, caracterizar a opinião de uma amostra de IFE de Obstetrícia e Ginecologia em Portugal sobre a formação em parto instrumentado.
Estudos internacionais reportam uma diminuição significativa de partos instrumentados desde o início do séc. XXI, verificando-se um aumento da taxa de cesarianas1,9,12. Esta diminuição poderá ser explicada por vários fatores destacando-se mudanças culturais e geracionais, aumento do receio dos obstetras em relação ao litígio, risco inerente à utilização de cada instrumento, novas práticas baseadas na evidência9,14. Aliada à diminuição do número total de partos instrumentados, constata-se também uma diminuição dos partos instrumentados com fórceps, verificando-se um aumento da utilização de ventosa12. Em Portugal, dados da PORDATA6 apontam para um aumento de 7,3% na taxa de cesarianas entre 1999 e 2018 e um aumento de 4,8% de partos distócicos, excluindo cesarianas, no mesmo período. Quando comparado com outros países europeus, em 2010 Portugal apresentava uma elevada taxa de partos distócicos5. Posteriormente a estes dados, a Direção Geral de Saúde criou a Comissão Nacional para a Redução da Taxa de Cesariana, sendo que em 2018 a taxa de cesariana em Portugal era de 34,1% e 18,5% de partos distócicos, excluindo cesarianas6. Os escassos dados referentes à utilização de diferentes instrumentos nos partos distócicos7, parecem apontar para uma maior utilização de ventosa. Nesta amostra, apesar do limitado número de respostas, a tendência parece apontar para uma maior utilização de ventosa no parto instrumentado, denotando-se um menor experiência e confiança na utilização de fórceps, mesmo quando só avaliados os últimos anos de especialidade. As comparações com estudos internacionais não podem ser diretas devido às diferenças nos programas de formação, no entanto estes estudos apontam para preocupações semelhantes nos recém-especialistas em procedimentos obstétricos mais complexos9,10,15. Um estudo americano apresenta um modelo preditivo em que a realização de 13 ou mais partos por fórceps durante o treino obstétrico é o cut off para a utilização autónoma de fórceps na prática clínica, com uma sensibilidade de 95% e especificidade de 27%12. Nesta amostra, os IFE do 4.o-6.o ano em Portugal, realizaram em média 18,6 partos auxiliados por fórceps, sendo que a maioria (56,5%) não se considerava apto para a sua realização autonomamente. De realçar as conclusões de um estudo que comparou o treino de parto instrumentado entre internos irlandeses e canadianos, sugerindo que poderá não ser necessário um elevado número de procedimentos realizados como primeiro operador para obter confiança na sua execução. A utilização de simuladores e o apoio de especialistas séniores poderão ser suficientes para o aumento da confiança no procedimento10.
Contrapondo o facto de ser o primeiro estudo a caracterizar a opinião dos IFE sobre a formação em parto instrumentado, o presente estudo apresenta algumas limitações atendendo fundamentalmente à dimensão amostral reduzida. Na análise deste estudo e da bibliografia sobre esta temática, parecem existir lacunas na formação em parto instrumentado em Portugal. É fundamental caracterizar a qualidade do internato de Obstetrícia e Ginecologia em Portugal, de forma a adaptar e homogeneizar os planos de formação. Para dar resposta aos desafios do presente, será necessário alargar e aumentar o número de estudos na área da educação médica, com uma amostra mais representativa dos IFE em formação em Portugal, com recolha de dados quantitativos sobre a morbilidade objetivada durante o internato. Desta forma será possível criar e melhorar estratégias que possibilitem ultrapassar os desafios da Obstetrícia moderna no que concerne a técnicas clássicas e fundamentais desta área.
Agradecimentos
Os autores agradecem à PoNTOG e à SPOMMF pela ajuda na divulgação do inquérito e a todos os internos que participaram no estudo.