Introdução
O termo burnout (burn + out) deriva do inglês e significa “queimar até à exaustão”, trata-se de um esgotamento físico e mental, consequente de uma vida profissional exigente e desgastante1.
Atualmente o burnout está incluído no ICD-11 como fenómeno ocupacional, contudo não é considerado como condição médica, e foi descrito como “síndrome conceitualizada como resultado de stress crónico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso” (2.
A incidência da Síndrome de Burnout (SB) depende de fatores pessoais, psicodinâmicos, profissionais e de ambiente social3. Em profissionais de saúde pode culminar numa resposta disfuncional ao stress ocupacional crónico e originar efeitos deletérios na qualidade do atendimento, nos custos em saúde e na satisfação e segurança dos doentes4,5. Além do mais, do ponto de vista pessoal, a insatisfação no trabalho e diminuição da produtividade, pode causar aumento da incidência do abuso de álcool e de substâncias psicoativas, perturbações depressivas e ideação suicida3,6.
Devido ao impacto negativo da SB, torna-se imperioso atuar não só na consciencialização dos médicos acerca dos riscos, como também na adoção de estratégias individuais e organizacionais capazes de prevenir o aparecimento da síndrome.
A Ginecologia e Obstetrícia (GO) é uma especialidade médico-cirúrgica, integrada nos serviços de urgência, com carácter imprevisível na sua prática diária, pelo que se torna uma especialidade facilmente suscetível de causar burnout nos profissionais da sua área7,8.
Uma vez que não se conhece nenhum estudo português acerca do burnout orientado exclusivamente para os especialistas de GO em Portugal, considerou-se oportuna a realização desta pesquisa.
Métodos
Para a concretização deste estudo transversal, foi elaborado e validado pelos autores um questionário na plataforma Google Formulários, no qual estava assegurada a confidencialidade dos dados dos participantes. O questionário foi dirigido exclusivamente a especialistas no ativo, tendo-se excluído os internos da especialidade e os que já não exercem a atividade profissional. Este é composto por 53 questões de carácter sociodemográfico e profissional, avaliação do burnout e de outros fatores, adaptado à especialidade de GO, e obteve aprovação da Comissão de Ética da FCS-UBI no dia 25/11/2020 (Parecer relativo ao processo n.º CE-UBI-Pj-2020-075:ID2194).
O questionário foi dividido em 4 secções:
- Primeira secção: informações sobre os objetivos do estudo, identificação dos responsáveis pelo estudo, consentimento livre informado e escrito em como concorda participar no estudo, (obrigatório para ter acesso ao restante questionário).
- Segunda secção: questões sociodemográficas e profissionais: sexo, idade, habilitações literárias, estado civil, se tem filhos, (se aplicável) se a profissão do cônjuge está relacionada com a saúde, local onde exerce funções, a que área pertence a instituição principal, carga horária semanal média, tipo de horário praticado, vínculo profissional, há quantos anos é especialista, divisão do tempo dedicado a ginecologia e/ou obstetrícia, divisão do tempo dedicado à medicina pública e/ou medicina privada, categoria profissional, se orienta/orientou internos de especialidade, quantos fins de semana trabalha por mês, quais a atividades clínicas que realiza habitualmente na prática clínica, n.o médio de consultas semanais de ginecologia e obstetrícia e se está ou esteve envolvido em processos médico-legais como arguido.
- Terceira secção: Avaliação da presença de burnout, através da escala Copenhagen Burnout Inventory - versão adaptada e validada para português (CBI-PT) (9.
- Quarta secção: avaliação de outros fatores, que incluíram tempo médio que reserva semanalmente para atividades de lazer, pensamentos sobre mudança de profissão, especialidade, instituição/serviço, condições do local de trabalho, quais as situações que causam mais stress e ansiedade, se já teve complicações major em atividades obstétricas e ou ginecológicas, se realiza atividades com vista à redução do stress e quais (se aplicável), se toma regularmente fármacos antidepressivos ou ansiolíticos, se está envolvido em atividades académicas/letivas e por fim se tem outra atividade profissional além da Medicina.
Para a distribuição do inquérito foi pedida a colaboração da Sociedade Portuguesa de Ginecologia (SPG) e da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal (SPOMMF), que o divulgaram entre os seus associados, tendo-se reunido um total de 217 respostas.
A escala CBI-PT é composta por várias questões sobre o impacto laboral na vida pessoal e profissional e sobre a frequência com que sente determinados sintomas; para cada opção de resposta existe uma pontuação associada. No final é determinada a média das pontuações das respostas e, segundo a escala, determina-se que está presente a síndrome de burnout se a média for superior a 39.8 pontos, e síndrome de burnout elevado (SBE) se a média for superior a 50 pontos.
Foi analisada a existência de associação entre as diferentes variáveis em estudo e os níveis de Burnout (Burnout e Burnout Elevado). Para tal recorreu-se aos Teste do Qui-Quadrado e de Fisher, considerando-se um nível de significância de 5%.
Resultados
Após aplicação dos critérios de pontuação para determinar a presença da SB, verificou-se que 56.7% (123) dos ginecologistas e obstetras que participaram no estudo têm burnout, sendo que 37% têm burnout elevado, Quadro I.
Os fatores sociodemográficos e profissionais com relação estatisticamente significativa com a presença de SB, foram o sexo, a idade e o n.o de anos de especialidade. Os especialistas do género feminino, com menos de 50 anos e que concluíram o seu internato há menos de 20 anos eram mais afetados pelo SB, como se pode ver no Quadro II. Os especialistas há menos de 20 anos também eram mais afetados por burnout elevado, Quadro III.
Dos fatores não profissionais, 78.6% dos profissionais que reservavam menos que uma hora diária para atividades de lazer sofriam de SB. Dos profissionais que reservam menos de 7h semanais para atividades de lazer, 80.2% sofrem de SBE, contrariamente ao que se observou nos que reservam mais de 14h (SBE de 4.9%), Quadro III. 72.8%, 55.6% e 59.5% dos especialistas que referiram pensar repetitivamente em mudar de profissão, de especialidade ou de instituição ou serviço, sofrem de burnout elevado (Quadro III). 63.2% dos profissionais com burnout classifica as condições de trabalho inferiores a 3, numa escala de 0 a 5 (Quadro II). De forma oposta, os profissionais que não pensavam mudar de profissão, especialidade ou instituição ou serviço, 83,0%, 91,0% e 74,0% respectivamente, não sofrem de SB (Quadro II). 66.7% dos profissionais que sofrem SBE também consideram ter más condições profissionais no seu local de trabalho (Quadro III). O stress e a ansiedade também se associaram de SB e SBE (Quadros II e III). As atividades com vista à redução do stress parecem ser fator protetor da SB uma vez que, 52.9% dos médicos que realizam essas atividades não sofrem de SB, enquanto que os que as não realizam, em 62.2% dos casos sofre de burnout. 13.4% dos médicos referiram recorrer à toma de fármacos ansiolíticos e/ou antidepressivos, e dos que os tomam regularmente, 89.7% sofre de SB (Quadro II), e 65.5% de SBE (Quadro III). Dos especialistas que não têm outra atividade profissional, 56.6% sofre de burnout, enquanto que 66,7% e 81.5% dos profissionais que têm outra atividade profissional não sofre respetivamente de burnout ou burnout elevado (Quadros II e III).
Discussão
Face ao universo de ginecologistas e obstetras e ao método de divulgação do questionário, pode-se considerar que o número de respostas obtido foi satisfatório, permitindo elaborar o estudo com validade científica.
Observou-se uma maior taxa de resposta no sexo feminino e nas idades compreendidas entre os 35 e 65 anos, o que se alinha com os dados disponíveis na Ordem dos Médicos que aponta que dos médicos de GO a exercer em Portugal 65.5% são mulheres, e 53.4% dos médicos/as têm entre 36-65 anos10.
O presente estudo, ao observar que 56.7% dos especialistas de Ginecologia e Obstetrícia em Portugal sofrem de SB está de acordo com o reportado pela American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), que estimou que 40-75% dos ginecologistas e obstetras americanos experienciam algum tipo de burnout profissional ao longo da sua carreira11.
Vários estudos acerca do burnout na profissão médica, demonstraram que é no Internato de Formação Específica que se verifica o pico da incidência da SB3), (6), (12-16. Este é um período com algumas singularidades, visto ser uma etapa de construção da identidade profissional, com várias avaliações e trabalhos, sobrecarga laboral e em certa parte vivência em ambiente competitivo. Por já terem sido realizados vários estudos que o demonstram, optou-se pela exclusão dos internos de GO no presente estudo. O nosso objectivo foi tentar compreender quais os fatores mais relevantes do SB após a conclusão do internato médico, altura em que o médico começa a ter uma situação profissional mais estável, e excluir o factor de incerteza futura que acompanha o médico durante todo o seu internato, e que poderia ser fator confundente.
Embora não seja consensual que o sexo feminino esteja mais predisposto ao burnout, estudos realizados na Turquia, Roménia e Estados Unidos da América, demonstraram que se verifica maior incidência de burnout no sexo feminino5,7,17,18, tal como documentado no presente estudo, onde 57.1% das mulheres que responderam ao questionário sofrem de burnout, uma percentagem bastante superior à observada no género masculino.
Estudos realizados no Brasil e México demonstraram que o excesso de carga laboral, a falta de autonomia e de reconhecimento, as fracas condições do local de trabalho, a falta de recursos humanos e materiais e a desorganização do serviço são fatores desencadeantes do burnout19-21, tal como observado no presente estudo, onde se demonstrou haver relação estatisticamente significativa com as variáveis mencionadas. Da análise estatística dos dados, pode-se retirar algumas ilações acerca de possíveis medidas protetoras do aparecimento da síndrome, quer individuais quer organizacionais. Estas dependerão de cada indivíduo e da sua disponibilidade e vontade para tal, assim como das políticas das instituições onde exercem a sua atividade profissional. Vários estudos comprovam que a gestão de stress, sessões Balint, exercício aeróbico ou mesmo apenas 10 minutos de alongamentos são medidas com sucesso comprovado na melhoria sintomatológica da SB3,22. Outros estudos comprovam que o apoio psicológico dos profissionais, inclusão em programas de educação e gestão da síndrome, medidas de higiene do sono, atividades e hobbies garantem eficácia. Baseado nos resultados do presente estudo, outras medidas protetoras poderão ser a adoção de estilo de vida mais saudável, com reserva >2h por dia para atividades de lazer, realização de atividades com vista à redução do stress e ansiedade, adoção de um hobby ou outra atividade profissional. A nível institucional, a melhoria da infraestrutura, garantia de equipamentos necessários para o bom desempenho médico, a promoção das boas práticas médicas, a garantia de serviços de limpeza e alimentação adequados, a criação de bom ambiente de equipa, a promoção da pesquisa clínica, o respeito da carga horária e a implementação de sistemas de incentivos são alguns exemplos de medidas que têm sido enumeradas para melhorar a satisfação profissional e prevenir o Burnout21.
Todavia, apesar dos resultados significativos há que ter em conta algumas condições adversas e limitações deste estudo. Primeiro, a distribuição via e-mail e apenas aos especialistas constantes nas listas da SPG e da SPOMMF, está associada a uma menor adesão, comprometendo em parte os resultados do estudo, uma vez que este depende da amostra estudada. Segundo, perante a situação atual que enfrentamos, a pandemia da COVID-19 pode por uma lado ser a origem de exaustão, stress e desmotivação profissional e por isso aumento dos casos de SB, como pelo oposto, face ao excesso de carga laboral pode ter causado menor adesão ou vontade de preenchimento do questionário, e por essa razão subestimar o total dos casos de SB. Além disso, uma vez que este estudo foi pensado em janeiro de 2020, no questionário não estão incluídas variáveis sobre o impacto da COVID-19, que como referido acima pode ter influenciado os resultados. Adicionalmente, e como já referido, a exclusão dos médicos internos do presente estudo subestima os casos de burnout totais. Também o facto de não haver muitos estudos acerca deste tema dificulta a comparação de resultados, de fatores de risco e fatores protetores. E por último, o facto de haver várias escalas de medida da SB não permite garantir a exatidão dos resultados obtidos. No entanto, apesar das limitações, este é o primeiro estudo conhecido, realizado em ginecologistas e obstetras a exercer em Portugal, sendo assim um contributo para o conhecimento da incidência desta síndrome na especialidade de GO, podendo servir de base para estudos futuros, com novas variáveis e verificação do impacto das medidas sugeridas como prevenção e gestão da SB nos profissionais.