Introdução
Os procedimentos ginecológicos em regime de consultório são fundamentais no âmbito dos cuidados de saúde em geral. No que concerne à mulher, estes procedimentos de rotina permitem, para além do acompanhamento próximo da saúde reprodutiva, o diagnóstico precoce e tratamento de patologias vulvares, vaginais e uterinas1. O avanço da tecnologia conduziu à mudança de muitos destes atos clínicos do bloco operatório para o consultório médico, possibilitando a respetiva realização de uma forma mais eficiente, acarretando menos custos e riscos associados ao internamento hospital e maior satisfação da doente2. A biópsia do colo do útero, a realização de ansa/conização, a histeroscopia para fins diagnósticos com ou sem procedimentos terapêuticos minor e ainda a inserção de dispositivos intrauterinos (DIU) são exemplos desta realidade.
No entanto, a dor sentida pelas mulheres continua a ser um fator limitante para a realização alargada destes procedimentos em consultório. A perceção da dor advém da manipulação do colo uterino e/ou útero, estimulando fibras simpáticas e parassimpáticas que direcionam a informação sensorial dos órgãos pélvicos para o mesmo circuito neuronal3. Um estudo mostrou que, em média, 35% das mulheres reporta dor, desconforto, medo ou ansiedade face a um exame pélvico4. De realçar que a média de dor reportada foi de 3,2 na escala visual analógica de 0 a 10 e 17% das mulheres reportou dor acima do valor seis num estudo realizado por Hildan et al. (5. Segundo os autores, durante a realização de histeroscopias, um número considerável de mulheres (~15%) experiencia dor “dificilmente tolerável” ou “intolerável” (6,7. Na inserção de DIU, a prevalência de dor reportada varia entre os 11 e os 47%8,9. Em adolescentes nulíparas, os números de dor percecionada podem ser mais elevados, atingindo os 80%10,11.
Desta forma, o controlo da dor é imperativo para a promoção do bem-estar da mulher e para o sucesso dos procedimentos ginecológicos. De facto, um número significativo de mulheres beneficiaria de estratégias farmacológicas ou abordagens não farmacológicas nos procedimentos ginecológicos de ambulatório/consultório12. No entanto, a inexistência de evidências clínicas que validem a eficácia de um método tornam a sua implementação um fator limitante. Inclusivamente, a ausência de diretrizes e o curto espaço de tempo em que a dor é manifestada conduz a uma prática clínica heterogénea, onde a maioria dos médicos não recorre a qualquer estratégia de controlo da dor13)- (15.
A reflexão presente neste trabalho pretende sensibilizar para um controlo da dor generalizado em procedimentos ginecológicos em regime de consultório com o propósito de suprir as necessidades e aumentar a satisfação das mulheres, considerando as opções disponíveis, sua eficácia e segurança.
Metodologia
Para a realização desta revisão de literatura, foi efetuada uma pesquisa na plataforma Pubmed com base nas palavras-chave “pain management” e “office-based procedures”. Foram selecionados artigos publicados nos últimos 10 anos, sem restrições quanto à tipologia, escritos em português ou inglês e com texto integral disponível.
Foram identificados um total de 83 artigos. Uma revisão inicial com base no título e no resumo foi realizada, reduzindo o número de artigos selecionados. Um total de 32 artigos foram selecionados para a realização desta revisão.
Recomendações gerais no controlo da dor
O controlo da dor é um direito social e um dever dos profissionais de saúde. O acesso ao tratamento da dor como um direito humano torna-se cada vez mais relevante, sendo descrito como prioritário pelas Nações Unidas16. Contudo, a dor definida como “experiência multidimensional desagradável, que envolve não só a componente sensorial, como a componente emocional da pessoa”, é regularmente tratada de forma insuficiente. No seguimento da posição adotada por instituições internacionais como a Associação Internacional para o Estudo da Dor e a Organização Mundial de Saúde, a Direção Geral da Saúde (DGS) recomenda que a dor seja registada e avaliada como o quinto sinal vital, reforçando a importância da avaliação e controlo da dor por parte dos profissionais de saúde17),(18. A DGS deliberou adicionalmente que o controlo da dor deve ser encarado como prioridade e critério para a prestação de cuidados de saúde de alta qualidade19. Em Portugal, foi ainda criado paralelamente um plano nacional para a prevenção e controlo da dor com vista a promover o acesso equitativo de toda a população a tratamentos da dor20.
A complexidade do fenómeno da dor e a variabilidade interpessoal podem impedir, por vezes, a sua correta avaliação. A dor é com frequência subestimada, escondida ou negada e, consequentemente, negligenciada, tanto pelos doentes, como pelos profissionais de saúde, aumentando a barreira na aplicação de medidas efetivas no seu controlo21. Além disso, um treino inadequado sobre as estratégias aplicadas no alívio eficaz da dor poderá ser mais uma das justificações para os relatos de perceção de dor17. Para colmatar estas necessidades, o desenvolvimento de programas de formação sobre o controlo da dor e o incentivo na investigação científica básica e clínica devem ser fomentados com vista a fornecer melhores cuidados no futuro.
Na última década, o número de procedimentos realizados em regime de consultório cresceu significativamente em diferentes especialidades clínicas. Simultaneamente, as preocupações com a segurança e satisfação do paciente intensificaram-se. A correta seleção do paciente, a implementação de técnicas de controlo da dor eficazes e seguras, e a capacidade da equipa médica para lidar com situações de emergência são questões que acompanham estes procedimentos.
O espectro de procedimentos ginecológicos é amplo, não existindo orientações para a gestão da dor nestes procedimentos. Segundo os autores, a maioria dos regimes de anestesia e analgesia foi adaptada de outras práticas médicas e a sua eficácia no alívio da dor em procedimentos ginecológicos não foi verificada22,23. Atualmente, não existe ainda uma abordagem que forneça o equilíbrio ideal de eficácia no controlo de dor e segurança para cada tipo de procedimento ginecológico em consultório. Diversas entidades internacionais, como a American College of Obstetricians and Gynecologists e a Royal College of Obstetricians and Gynecologists, reconhecem esta realidade, reforçando a necessidade do desenvolvimento de práticas que conduzam ao alívio de dor eficaz durante os diferentes procedimentos ginecológicos24-26.
Eficácia das intervenções de controlo da dor em procedimentos ginecológicos em consultório
O desenvolvimento de soluções alternativas à anestesia geral potenciou o aumento de procedimentos realizados em regime de consultório. O recurso à anestesia geral exige uma monotorização apertada da doente e está associado a maior morbilidade peri-operatória, para além dos recursos que implicam. A anestesia local, a medicação oral e também a sedação intravenosa são, em contraste, intervenções farmacológicas utilizadas correntemente na prática clínica de consultório para o alívio da dor27),(28. As evidências clinicas do uso destas estratégias de controlo da dor na introdução de DIU e na realização de histeroscopias estão sumariadas nos Quadros I e II, respetivamente. Diferentes estudos revelam que estratégias não-farmacológicas podem ser adjuvantes no controlo da dor em procedimentos realizados em regime de consultório. Técnicas de suporte verbal e de relaxamento, música ou calor aplicado localmente mostram-se úteis na gestão da dor e ansiedade sentidas pelas mulheres29.
A avaliação inicial da mulher relativamente à tolerância de dor e ansiedade ajudará a identificar as situações de necessidade de recurso a estratégias analgésicas30. Acrescenta-se que a valorização por parte do clínico conferirá um maior conforto à utente assim como a sua aceitação aos procedimentos ginecológicos. A ansiedade sentida, face aos procedimentos, diminui quando esta participa na tomada de decisão, quando lhe é disponibilizado aconselhamento próximo e individualizado e quando é informada das etapas e tempo inerente a cada uma delas. O médico deverá ainda ter em consideração que a nuliparidade, o histórico de dismenorreia ou a pós-menopausa são fatores, entre outros, que influenciam a perceção da dor por parte da mulher30.
Opióides, anti-inflamatórios não-esteróides (AINE) e misoprostol
Os opióides são uma opção comum no controlo da dor e a respetiva eficácia no alívio da dor a curto prazo está descrita em várias situações, nomeadamente no pós-operatório17. Na inserção de DIU, o uso de 50 mg de tramadol 1 hora antes do procedimento reduz os níveis de dor22),(31. Igualmente, nas histeroscopias, o tramadol foi capaz de reduzir os níveis de dor32. Contudo, os resultados são pouco consistentes e a elevada incidência de efeitos adversos, como náuseas e vómitos, promovem a procura de soluções alternativas33.
Analgésicos orais são frequentemente prescritos para o controlo da dor percecionada durante a inserção de um DIU. Esta classe inclui o paracetamol e os AINE como, por exemplo, o ibuprofeno, o naproxeno e o cetorolac. Apesar da pré-medicação com estas substâncias ser transversalmente reportada na literatura, as evidências da sua eficácia são limitadas. O ibuprofeno mostrou-se ineficaz em múltiplos estudos34),(35, assim como o naproxeno que, apesar de apresentar um efeito inferior ao tramadol, conseguiu atenuar a dor em relação ao grupo placebo. Embora existam dados contraditórios, um estudo recente demonstrou que a administração oral de cetorolac (20 mg) entre 40 a 60 minutos antes da inserção do DIU é eficaz na redução da dor geral e na dor sentida 10 minutos após a respetiva colocação36),(37. O mecanismo de ação dos AINE aponta para um efeito na redução de dor mais preponderante após da inserção de DIU uma vez que, por inibição da produção de prostaglandinas, diminui a contratilidade uterina reflexa à presença de um corpo estranho38. O paracetamol, apesar de provocar o menor efeito no controlo da dor pélvica de origem uterina, é uma opção quando os AINE estão contraindicados39. Evidências similares existem sobre o uso de AINE para o alívio da dor provocada pela histeroscopia. Apesar dos níveis de dor reportados serem menores nos grupos de tratamento face ao placebo, é pouco provável que a pequena diferença verificada se traduza em efeitos clinicamente significativos.
O misoprostol reduz a resistência e a necessidade de dilatação cervical em mulheres na pré-menopausa o que consequentemente poderá reduzir a dor e o desconforto40),(41. Este fármaco tem sido amplamente utilizado como estratégia para melhorar a tolerância e reduzir a taxa de complicações associadas à passagem pelo colo uterino de instrumentação necessária aos procedimentos ginecológicos. Todavia, a eficácia do misoprostol no controlo da dor em histeroscopia, não só se tem revelado insuficiente, como também origina efeitos adversos, como dor abdominal e alterações no trânsito intestinal42),(43. Os seus efeitos benéficos são sobretudo demonstrados em mulheres pré-menopáusicas. Em contrapartida, nas mulheres na pós-menopausa, o uso de misoprostol pode ser considerado em combinação com a aplicação prévia de estrogénio vaginal, de forma a reduzir os níveis de dor associados à realização de histeroscopia44. Não obstante, o uso de misoprostol na inserção de DIU deve ser ponderado, uma vez que, de acordo com os dados da bibliografia atual, a administração de misoprostol, para além de não melhorar a facilidade de inserção, conduz ao aumento de efeitos secundários como náuseas, vómitos, febre e hemorragia45-47.
Anestesia local
A utilização da anestesia local prevê ultrapassar os efeitos sistémicos adversos, como também interromper a sinalização da dor na base nervosa da sua origem. A lidocaína e lidocaína em associação com a prilocaína são potentes anestésicos locais que atuam por bloqueio dos canais de sódio, atrasando os impulsos nervosos periféricos48. Em ambientes ginecológicos de consultório, a lidocaína pode ser aplicada topicamente na mucosa genital, na forma farmacêutica de gel ou creme, ou pode ser injetada localmente no colo do útero. Nos últimos anos, um número crescente de estudos publicados investigou a eficácia da lidocaína no bloqueio cervical. A eficácia da injeção paracervical ou intracervical de lidocaína a 1% foi demonstrada tanto na introdução de DIU como na realização de histeroscopias, assim como noutros procedimentos ginecológicos22),(32),(49),(50. Uma meta-análise revelou que a lidocaína diminui os valores de dor durante a colocação da pinça de preensão do colo do útero, na inserção do DIU e imediatamente após a colocação do dispositivo51. A aplicação da anestesia para a realização da histeroscopia tem também promovido uma melhor e crescente adesão à técnica em regime de consultório52),(53. Esta técnica consiste na injeção local de 1% de lidocaína54. Contudo, as técnicas de anestesia local por injeção causam considerável desconforto e pode conduzir a complicações graves, tais como lesões vasculares ou toxicidade local55),(56. No caso específico da lidocaína, é ainda necessário a monitorização da toxidade sistémica e a confirmação da disponibilidade de equipamentos de reanimação57. Na nossa opinião, devido ao desafio técnico que representa, a injeção de anestesia local deve ser reservada para casos previamente selecionados e realizada por profissionais experientes em ambiente hospitalar. Desta forma, não se apresentam como soluções seguras para os procedimentos ginecológicos de consultório.
O desenvolvimento de métodos alternativos de anestesia local, como géis e cremes de aplicação tópica, pode aumentar a eficácia e segurança. A inervação superficial da mucosa do colo uterino e do endométrio através dos recetores de potencial transitório vanilóide do subtipo 1 (TRPV1) fundamenta a hipótese de eficácia deste tipo de anestésicos58),(59.
Uma revisão recente da literatura revelou superioridade de um creme de lidocaína/prilocaína na redução da dor, em comparação com o placebo durante a colocação da pinça de preensão do colo do útero. (60 De igual modo, num estudo onde 218 mulheres foram aleatoriamente alocadas ao grupo tratado ou placebo, um gel de lidocaína a 4% mostrou uma diminuição dos níveis de dor reportados imediatamente após a inserção do DIU22),(61. O número de mulheres que consideraram o procedimento de inserção do DIU isento de dor foi três vezes superior em comparação com o grupo placebo (31,1% versus 9,7%, p<0,001) e aproximadamente metade das participantes reportou níveis de dor de moderado a severo (25,5% versus 51,5%, p<0,001) (62. Nas histeroscopias, a aplicação intrauterina de lidocaína também se mostrou eficaz no controlo da dor63. Desta forma, as soluções de lidocaína tópica podem ser uma solução anestésica viável, fornecendo o alivio eficaz da dor, com níveis de segurança comparáveis ao placebo.
A evolução dos recursos disponíveis, que combinem eficácia e segurança na aplicação, permitirá oferecer à doente uma melhor experiência nos procedimentos ginecológicos. A relação de confiança médico/doente será reforçada, uma vez que a paciente se sentirá segura e isenta de dores após a realização do procedimento pélvico.
A importância do controlo da dor
O controlo da dor revela-se fundamental para o aumento da qualidade dos cuidados de saúde. A dor e o desconforto são obstáculos à adesão de diferentes procedimentos diagnósticos e terapêuticos. A realidade observada na gastroenterologia nomeadamente nos exames endoscópicos é um exemplo desta premissa. A colonoscopia é um exame complementar de diagnóstico e de extrema importância para o rastreio do cancro colorretal e outras patologias associadas ao sistema gastrointestinal64. Porém, não era amplamente aceite pelos doentes devido à sensação de dor e desconforto durante o processo. Num estudo que envolveu 10.078 indivíduos, foi referido por 55,2% dos participantes o desconforto/dor como obstáculo à adesão protocolar recomendada pelo médico65. Em Portugal, desde 2014, a colonoscopia pode ser realizada com recurso a sedação ou anestesia. Em 2019, um total de 268.671 colonoscopias e demais procedimentos associados foram realizados e 95,5% dos mesmos foram efetuados com sedação ou analgesia66. Espera-se que o recurso generalizado conduza a um aumento notável da aceitação dos pacientes e taxas de sucesso deste exame diagnostico. De facto nos últimos anos, verifica-se um ligeiro aumento na taxa de realização de colonoscopias66),(67.
Em linha do que foi verificado no âmbito da colonoscopia, acredita-se que a consciencialização transversal da equipa médica para o controlo da dor aumentará a qualidade assistencial prestada pelos ginecologistas. Um controlo eficaz e acessível a toda a população beneficiará à adesão de procedimentos ginecológicos como a histeroscopia cuja sua função diagnostica de primeira linha é crucial na identificação de patologias intrauterinas68. A valorização e tratamento da dor diminuirá igualmente a recusa de outros procedimentos ginecológicos, nomeadamente a introdução de DIU.
Conclusão
As atuais estratégias de controlo da dor são pouco eficazes para os procedimentos ginecológicos de consultório. As evidências de efeitos clinicamente relevantes na experiência de dor com analgesia são relatadas sobretudo em estudos que avaliam a aplicação de lidocaína. As novas formulações de lidocaína em gel, projetadas para facilitar a administração, minimizar a perda e prolongar a retenção, parecem particularmente promissoras.
A abordagem individual, guiada por fatores preditivos de um risco aumentado de sentir dor nos procedimentos ginecológicos, pode ajudar a melhorar a experiência para as mulheres e contribuir para a identificação de estratégias eficazes e personalizadas. O uso generalizado de estratégias eficazes de controlo da dor encorajará mais mulheres a realizar estes procedimentos, melhorando os cuidados ginecológicos.