Introdução e objetivos
A pré-eclâmpsia (PE) é uma doença multissistémica progressiva que se caracteriza pelo aparecimento de hipertensão arterial de novo acompanhada por proteinúria e/ou lesão de órgão-alvo (Quadro I)1,2. Esta patologia surge após as 20 semanas de gestação ou no período pós-parto1,2.
A PE representa uma causa importante de mortalidade materna e perinatal em todo o mundo e em especial nos países com baixos recursos3,4. Efetivamente, a PE complica 2-8% de todas as gravidezes podendo provocar não só lesões hepáticas, renais, cerebrais e alterações da coagulação, como também trazer complicações para o feto como prematuridade ou restrição do crescimento1,2,5. Naturalmente, a sua deteção e gestão atempadas são fundamentais de modo a minimizar os efeitos adversos resultantes da progressão da doença3.
Adaptado do: American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) Practice Bulletin No. 222: Gestational Hypertension and Preeclampsia.Obst Gynecol 2020; 135:e237
Internacionalmente, os programas de vigilância da gravidez preconizam a realização de consultas regulares e cada vez menos espaçadas com medição da pressão arterial e a análise de urina como forma de rastrear a pré-eclâmpsia o mais precocemente possível. Em concordância, o programa nacional de vigilância da gravidez de baixo risco em Portugal preconiza a avaliação de pressão arterial e a realização de uma análise sumária de urina em cada consulta3,6.
Na vigilância da gravidez, a análise urinária é geralmente realizada por tira-teste dado ser um exame facilmente acessível e de resultado imediato. No entanto, sabe-se que este é um exame pouco sensível na deteção de proteinúria significativa (com uma sensibilidade que varia entre 22 e 86%, segundo os estudos) (3,7. Além disso, a existência de proteinúria não é atualmente uma condição necessária ao diagnóstico de PE1,2,4.
Assim, nos últimos anos, tem sido questionado o papel da proteinúria como método de rastreio desta patologia. Consequentemente considerou-se pertinente rever a evidência disponível sobre a utilização da pesquisa de proteinúria por tira-teste como método de rastreio de PE na vigilância da gravidez de baixo risco.
Métodos
Foi realizada uma pesquisa de Normas de Orientação Clínica, Guidelines, Meta análises (MA), Revisões Sistemáticas (RS) e estudos originais nas bases de dados National Institute for Health and Clinical Excellence (NICE), National Guideline Clearinghouse (NGC), Canadian Medical Association Practice Guidelines InfoBase, Cochrane Library, Database of Abstracts of Reviews of Effectiveness (DARE), Bandolier, Guidelines Finder da National Electronic Library for Health do NHS Britânico e PUBMED utilizando os termos MeSH “female”, “humans”, “pregnancy”, “urinalysis” e “preeclampsia” publicados entre 2000 e 2020.
Foram incluídos estudos em português, inglês, francês e espanhol. Foram utilizados como critérios de exclusão: estudos dirigidos à gravidez de alto risco ou que não incluíam a análise sumária de urina por tira-teste. Foram também excluídas revisões simples, artigos de opinião e editoriais.
Todos os autores realizaram a leitura integral e avaliaram a qualidade e nível de evidência (NE) dos artigos selecionados. Foi utilizada a Strenght of Recommendation Taxonomy (SORT) da American Academy of Family Physicians para estratificar o NE dos estudos e a força de recomendação (FR).
Resultados
Da pesquisa realizada obtiveram-se 99 artigos, dos quais três cumpriram os critérios de inclusão: duas guidelines e um estudo prospetivo observacional.
A guideline da NICE tem como objetivo disponibilizar a melhor evidência disponível relativamente à prestação de cuidados pré-natais a grávidas de baixo risco. Relativamente à avaliação do risco e rastreio de PE, é aconselhada a medição da pressão arterial em todas as consultas pré-natais. Esta recomendação é fundamentada por uma revisão de elevada qualidade da Cochrane que incluiu 3 ensaios clínicos randomizados. É também aconselhado que em todas as consultas se realize a análise de urina por tira-teste para deteção de proteinúria e rastreio de PE. Esta recomendação é realizada por consenso informal de peritos, pelo que lhe é atribuída uma FR C. A guideline não recomenda qualquer outro método alternativo para o rastreio de PE devido à baixa sensibilidade e especificidade dos mesmos8.
A US Preventive Services Task Force (USPTF) efetuou uma revisão sistemática com o objetivo de avaliar os benefícios e os riscos do rastreio de PE em mulheres grávidas sem diagnóstico prévio de hipertensão ou PE. A revisão analisou 21 estudos, 14 dos quais avaliaram a acuidade diagnóstica de diferentes métodos para a detecção de proteinúria. Quatro destes estudos avaliaram a pesquisa de proteinúria por tira-teste. Não foi encontrada evidência de benefício da realização da análise de urina (por qualquer método) em cada consulta pré-natal para rastreio de PE. Dada a heterogeneidade clínica e estatística destes estudos não foi realizada meta-análise. A guideline emitida com base nesta revisão conclui, com moderada certeza, que todas as grávidas estão em risco de desenvolver PE e devem ser rastreadas sendo o benefício do rastreio substancial. O rastreio deve ser feito através da medição de pressão arterial durante a gravidez. A guideline não recomenda a análise de urina por tira-teste para rastreio de PE dado que esta tem uma baixa precisão na detecção de proteinúria e a mesma não é um bom preditor de PE (FR B)9.
No estudo observacional prospectivo realizado na Austrália, com o objetivo de determinar se a análise de urina por rotina durante a gravidez facilita o diagnóstico de PE, participaram 1000 grávidas, 913 das quais completaram o estudo. Foram incluídas, maioritariamente, mulheres saudáveis. No entanto, 6% (n=52) das participantes tinham antecedentes de PE ou hipertensão gestacional, 2% (n=18) de hipertensão arterial crónica e 6% (n=50) de patologia renal. Todas as grávidas realizaram análise de urina por tira-teste na primeira consulta. Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas na proporção de mulheres com ou sem proteinúria na primeira consulta que desenvolveu hipertensão arterial durante a gravidez. Das 338 (39%) mulheres que tiveram proteinúria na tira-teste em algum momento durante a gravidez, 15 (4%) desenvolveram PE. Apenas 6 mulheres desenvolveram proteinúria antes de hipertensão arterial (e por fim PE) e 3 destas não tinham gravidezes consideradas de baixo risco (duas gravidezes gemelares e uma com antecedentes de PE). Em nenhuma das 6 existiram outcomes adversos. O estudo conclui que, na ausência de hipertensão arterial, a análise de urina por tira-teste durante a gravidez é um mau preditor de PE. Assim, é sugerido que todas as mulheres com uma gravidez de baixo risco realizem uma análise de urina por tira-teste apenas na primeira consulta. Na ausência de proteinúria, pode abdicar-se da realização desta análise durante o resto da gravidez sem resultados adversos, com exceção dos casos em que a mulher desenvolve hipertensão arterial ou sinais/sintomas de infeção do trato urinário (NE 2)10.
Discussão e conclusão
A guideline da NICE recomenda a medição da pressão arterial e a realização da análise de urina por tira-teste em todas as consultas de gravidez como método de rastreio de PE. No que diz respeito à análise de urina por tira-teste, a sua recomendação é realizada de acordo com consenso informal de peritos, pelo que lhe é atribuída uma FR C8. Por sua vez, a USPTF recomenda que o rastreio de PE seja realizado a todas as grávidas através da medição da pressão arterial afirmando a inexistência de evidência que suporte a realização do rastreio com recurso à análise de urina por tira-teste (FR B)9. Por fim, o estudo observacional prospetivo recomenda a realização da análise de urina por tira-teste apenas na primeira consulta pré-natal10. Contudo, salienta-se que este estudo, pelo seu desenho, apresenta menor grau de evidência (NE2).
A principal limitação desta revisão consistiu no número reduzido de artigos que cumpriram os critérios de inclusão. Esta revisão evidencia a necessidade de estudos de maiores dimensões, que avaliem e comparem os diferentes métodos de rastreio de PE (em grávidas de baixo risco) e os seus efeitos na saúde materna e perinatal. É fundamental a adoção de métodos de rastreio suportados pela evidência. Em conclusão, de acordo com a evidência atualmente disponível, parece não existir pertinência na realização da análise sumária de urina por tira-teste, como método de rastreio de PE, em todas as consultas de vigilância da gravidez de baixo risco (FR B).