Numa era em que a tecnologia tem um desenvolvimento exponencial, questionamo-nos muitas vezes sobre qual a aplicabilidade das inovações na área da saúde. Que impacto irão ter no trabalho médico e na saúde das pessoas? O conceito de Inteligência Artificial (IA) generalizou-se, mas muitas vezes não é muito claro. Uma possível definição1 é: máquina ou software que realiza tarefas habitualmente realizadas pelo cérebro humano, por exemplo: dar sentido à linguagem falada, aprendizagem de comportamentos ou resolução de problemas. Significa que um programa de IA consegue aprender a partir de dados da vida real bem como a partir da experiência e por isso tem a capacidade de melhorar o seu desempenho à medida que obtém mais dados. A IA pode ser dividida em IA geral (inteligência semelhante à humana - capacidade de pensar, aprender e raciocinar) e IA estreita (capacidade de desempenhar uma tarefa específica - deteção de uma imagem, tradução, jogar xadrez1).
Como médicos, se queremos acompanhar a aplicabilidade da AI na nossa área profissional, vamos ter de interiorizar desde cedo linguagem específica como: Convolutional Neuronal Networks; Black Box; Explainable AI; Model, Aplication or Algorithm; Machine Learning; Deep Learning; Supervised and Unsupervised Learning; Big Data1.
Pesquisando sobre “Inteligência artificial e Ginecologia” na Pubmed® percebemos que, de 2016 em diante, o aumento do número de publicações sobre este tema foi muito significativo - passou de 67 publicações em 2016 para 411 em 2022. Para termos uma melhor concretização destes números, nos últimos cinco anos (2019-2022) foram publicados 1144 artigos sobre este tema e em 2023, que conta apenas ainda com dois meses, já estão publicados 70 trabalhos.
Como é que a IA nos poderá auxiliar na nossa vida profissional como ginecologistas? Poderá, por exemplo, ajudar a desenvolver novos medicamentos, apoiar decisões clínicas, fornecer garantia de qualidade em exames de imagem e diminuir o erro. A IA tem grande potencial para nos auxiliar em tarefas repetitivas. Pode ser aplicada em ecografia porque tem capacidade para reconhecimento de padrões de imagem e consegue identificar automaticamente aquisições de boa qualidade e fornecer ao operador garantia dessa qualidade em tempo real. Pode ser usada na gestão de prioridades, ao fazer uma triagem de exames com alterações suspeitas que o imagiologista deve relatar de forma mais célere. O mesmo se poderá aplicar à área da anatomia patológica1.
Em cirurgia, a IA também já está a ser incorporada, porém com algum atraso na cirurgia ginecológica. Começam a aparecer várias aplicações de realidade aumentada com utilidade nesta área2.
Uma revisão sistemática recente3 analisou quais as reais contribuições da IA na especialidade de Ginecologia e Obstetrícia. Sessenta e seis publicações cumpriram os critérios de seleção. As contribuições reais da IA identificadas neste trabalho foram por ordem decrescente: o desenvolvimento de métodos/algoritmos, geração de hipóteses ou desenvolvimento de software. A maioria das publicações (82%, 54/66) encontravam-se fora do âmbito das revistas habituais de Ginecologia/Obstetrícia. Concluíram que a validação clínica é ainda um pré-requisito habitualmente não cumprido e nenhuma validação externa foi relatada.
É necessária uma estreita colaboração interdisciplinar entre investigadores de IA e os médicos para que os benefícios da IA sejam maximizados.
Outra revisão sistemática avaliou a IA no cancro ginecológico4. Os objetivos foram predizer o diagnóstico definitivo e o prognóstico, incluindo sobrevida global e metástases ganglionares. A maioria dos estudos foram sobre cancro do colo do útero, em menor número sobre cancro do ovário e do endométrio. A proficiência do desenho do estudo no cancro do endométrio e sarcoma uterino não foi clara devido ao reduzido número de estudos disponíveis. E, mais uma vez, verificou-se que os estudos não apresentavam validação externa. Devido à heterogeneidade dos estudos incluídos na revisão, não foi possível fazerem uma síntese quantitativa. Portanto, os dados nesta área são ainda muito preliminares. A complexidade da biologia molecular subjacente ao cancro leva a uma compreensão imperfeita do cancro ginecológico que se reflete, em muitas situações, em maus desfechos. A evolução da IA poderá fazer aqui a diferença.
Ao ler o sumário, deste primeiro número de 2023 da AOGP, reparo que a maioria dos trabalhos são do âmbito da Ginecologia e imagino como poderia a IA beneficiar estas situações clínicas. Imaginem o que a IA pode ajudar na tomada de decisão na contraceção no pós-parto5 e em mulheres com deficiência intelectual6 analisando múltiplas variáveis e permitindo uma escolha adequada do método contraceptivo, minimizando os riscos e maximizando os benefícios; imaginem a IA aplicada na avaliação imediata e detalhada do perfil das mulheres que recorreram a interrupção voluntária da gravidez7 para que as decisões de política pública de saúde sejam mais bem informadas; imaginem a IA aplicada ao diagnóstico e prognóstico do cancro durante a gravidez8 ou dos linfomas do trato genital feminino9, situações incomuns em que os médicos não detêm tanta experiência acumulada.
A Ginecologia e Obstetrícia, sendo uma especialidade altamente propensa a litigância, beneficiará, certamente, de todo o valor acrescentado que a IA possa trazer à melhoria da prática clínica. Aumentar o conhecimento médico e permitir rápidas tomadas de decisão são os dois aspectos que se espera que a IA nos traga no futuro próximo.