Introdução
A Adenomiose caracteriza-se pela presença de tecido endometrial (glândulas e estroma) no interior do miométrio, o que resulta numa reatividade/hipertrofia deste. Pode ser focal (tumores circunscritos - adenomiomas - por vezes confundidos com leiomiomas) ou difusa (glândulas difusas, útero aumentado, esponjoso). Origina frequentemente hemorragia uterina anómala e dismenorreia, e está frequentemente associada a pólipos e leiomiomas, bem como úteros de maiores dimensões pela atividade reativa endometrial descrita1.
Não existe standardização quanto à sua classificação e reporte imagiológicos, por ecografia ou Ressonância Magnética Nuclear, mas ambas as técnicas aparentam ter boa sensibilidade e especificidade2,3. O consenso Morphological Uterus Sonographic Assessment (MUSA) lista os marcadores ecográficos, que incluem4: assimetria anteroposterior do miométrio; lesões mal definidas; sombreamento em leque, quistos miometrais; Ilhas hipoecóicas; linhas e protuberâncias ecogénicas subendometriais; vascularidade translesional e uma zona juncional irregular ou interrompida5.
Tratamentos como o sistema intrauterino com levonorgestrel, Danazol, agonistas da Gn-RH (GnRHa) e inibidores da aromatase são tratamentos médicos descritos. A cirurgia pode ser opção, sobretudo quando focais ou submucosos2,5.
Adenomiose e infertilidade
A associação de adenomiose com infertilidade (relevância e impacto) tem sido debatida ao longo dos anos, pois é uma patologia muito prevalente (20-35% das mulheres)3,6, mais comum em multíparas, e cuja existência enquanto doença é colocada em causa por algumas séries7. Coexiste ainda frequentemente com outras patologias, sobretudo leiomiomas e endometriose, o que dificulta ainda mais a investigação do curso natural da doença, a sua importância como fator de risco e os nexos de causalidade com a infertilidade2.
Está descrita ainda maior prevalência de adenomiose em mulheres com infertilidade. Possíveis justificações são: Inflamação local causada pela doença; as alterações da zona juncional, onde se origina o peristaltismo uterino, com efeito prejudicial no transporte dos espermatozoides; a alteração da função e recetividade endometrial, por stress oxidativo; a desregulação do metabolismo estrogénico local, levando a hiperestrogenismo (e tornando a infertilidade e adenomiose resultantes dessa condição)2,8. A adenomiose pode ainda estar associada a maior taxa de abortamento9, o que prejudica os resultados dos ciclos de Procriação Medicamente Assistida (PMA).
Adenomiose e procriação medicamente assistida
Duas metanálises são frequentemente referidas5,10. Em ambas é sugerido um efeito deletério da adenomiose no resultado da Fertilização in Vitro. É diminuída a taxa de implantação, bem como a gravidez clínica e taxa de abortamento. A primeira metanálise incluiu 9 estudos observacionais com elevada heterogeneidade10. A segunda 15, sofrendo do mesmo problema de falta de homogeneidade de resultados5. Todos os estudos incluídos em análise de impacto de tratamentos (de adenomiose) e a maioria dos restantes estudos incluídos são retrospetivos. O maior estudo prospetivo incluiu 49 pacientes com adenomiose. Na primeira metanálise, foram incluídos vários estudos em que não foi controlada a idade, quando se avaliaram resultados de gravidez e a taxa de recém-nascidos. A metanálise posterior manteve todos os estudos incluídos na primeira, tendo acrescentado novos estudos. Os resultados da metanálise de 2017 indicavam ainda um potencial benefício de pré tratamento prolongado com GnRHa5.
Apesar de todos os erros observados nestas metanálises, estas influenciaram a perceção do impacto negativo que a adenomiose, nessas condições, teria sobre os resultados de tratamentos de PMA. Para além disso, as conclusões foram ainda extrapoladas para o impacto da adenomiose sobre o prognóstico reprodutivo das mulheres e sucesso de uma gravidez espontânea, mesmo não associado a técnicas de PMA.
O que há de novo nesta matéria?
Uma metanálise de 2020 concluiu que a presença de adenomiose em PMA se associava a menores taxas de gravidez e aumento do risco de pré eclâmpsia, parto pré termo, cesariana, má apresentação fetal, pequenos para a idade gestacional e hemorragia pós parto11.
O artigo provavelmente mais importante dos últimos anos foi publicado em meados de 2021, por Chloe Higgins et al. Trata-se de um estudo prospetivo, em que as pacientes foram classificadas objectivamente de acordo com os critérios MUSA4. Este estudo incluiu 301 pacientes com evidência ecográfica de adenomiose, classificadas inclusivamente pelo número de marcadores dos critérios usados presentes. Como comparação, a mais recente metanálise incluiu um total de 839 pacientes com adenomiose para o evento “taxa de nados vivos”, mas a esmagadora maioria desses estudos são retrospetivos, sendo que 416 pacientes derivam de um único estudo retrospetivo.
Higgins descreveu o grupo de adenomiose com mais fumadoras (6,3 vs 2,2%, p<0,01), média etária superior (37,4 vs 36, p<0,01), uso de FSH recombinante superior (3068 vs 2677UI, p<0,02). Não houve diferença estatisticamente significativa na taxa ajustada de nascidos vivos, por ciclo iniciado ou por transferência de embriões a fresco ou congelados. Mais importante, a análise para diversas variáveis de relevo, isoladamente, detetou efeitos estatisticamente significativos no grupo com adenomiose. No entanto, após ajuste para possível confundimento, este efeito aparente desapareceu (nomeadamente anulando o efeito da idade das mulheres). A classificação mais estrita, ou na presença de uma maior gravidade, baseada na presença de 3 critérios MUSA, ainda assim, não demonstrou um efeito estatisticamente significativo nos resultados. A prevalência de adenomiose neste estudo foi de 32%. A natureza prospetiva e o tipo de pacientes (PMA) poderão justificar este facto. De nota, o diagnóstico foi realizado por ultrassonografistas experientes, de forma prospetiva anulando a heterogeneidade dos critérios de diagnostico existente nas metanálises.
Os autores sugerem que a magnitude da influência da adenomiose nos resultados de PMA poderá ter sido sobrevalorizada durante anos, devido à complexidade do diagnóstico e vieses de confundimento. Sugerem ainda que uma forma de estudar este verdadeiro efeito seria através do estudo dos resultados de ciclos de doação de ovócitos.
Uma metanálise publicada em 2022 ainda não incluiu este último e maior estudo12. As conclusões são semelhantes às anteriormente obtidas, com exceção do pré-tratamento com GnRHa, cujo uso não foi suportado pelos dados.
Um estudo retrospetivo multicentro publicado em 2022 estudou um total de 3307 pacientes com um ciclo de doação de ovócitos, o que incluiu 179 pacientes com adenomiose e 3128 controlos. Foi detetada uma menor taxa de nascidos vivos nas pacientes com adenomiose, com odds ratio 0,6, 95% (IC 0,43-0,83, p=0,002), mas sem outras diferenças nos outcomes das gravidezes13. De notar uma prevalência de adenomiose de apenas 5,4%.
Um trabalho muito recente (retrospetivo) com mais de 1000 pacientes diagnosticados com adenomiose compara ainda o tipo de adenomiose e os resultados em ciclos com GnRHa ultralongos, concluindo que a adenomiose difusa poderá ser pior que adenomiose focal ou fator tubar em termos de gravidez clínica e taxa de nascidos vivos e ter maior taxa de abortamento14. Estes resultados foram ajustados em regressão logística, mas é difícil comparar presença/ausência de adenomiose pelo óbvio viés da seleção de ciclos extralongos, retrospetivamente.
Várias revisões versam sobre este tema, algumas muito recentes2, mas estudos de boa qualidade continuam a faltar.
Conclusão
É provável que os efeitos da adenomiose nos resultados de PMA tenham sido sistematicamente sobrevalorizados, com base em múltiplos estudos de baixa qualidade. O mais recente e maior estudo prospetivo sugere que, a existir efeito, este será de pequena magnitude e inexistente quando se anulam as variáveis (como a idade) As revisões sistemáticas disponíveis ainda não o incluem (apesar de uma delas ser de publicação posterior). Quanto a este ponto, duas observações. A primeira é óbvia, qualquer revisão sistemática poderá estar desatualizada (ou mal executada). A segunda é que a revisão sistemática é tão boa quanto a qualidade dos estudos que a compõem. Neste caso, a qualidade dos estudos, no global, é fraca, o que coloca em causa qualquer resultado que se assuma da respetiva soma.
Temos também de nos abster de generalizar os estudos e resultados decorrentes de tratamentos PMA numa população com infertilidade para a fertilidade espontânea da população em geral.
O tratamento prévio em mulheres com sinais de adenomiose, nomeadamente médico ou cirúrgico deve ser individualizado, já que, apesar de teoricamente e em alguns estudos pequenos parecer haver vantagem de, por exemplo tratamento com GnRHa em ciclos longos/ultralongos, este efeito não é claro e carece de confirmação. Até porque este tipo de ciclos aumenta o risco em pacientes com reservas ováricas normais/elevadas e têm um maior impacto (duração, complexidade) sobre as mulheres.