Introdução
A consulta de Planeamento Familiar deve constituir, para além de uma consulta de aconselhamento da mulher em termos de contraceção e de cuidados pré e pós-concecionais1, uma oportunidade-chave de educação para a sua saúde global.
De acordo com o Consenso sobre Contraceção (2020), devemos focar-nos na promoção de estilos de vida saudáveis, passando pela prevenção da obesidade, do tabagismo e de comportamentos aditivos; pelo incentivo ao cumprimento dos planos nacionais de rastreio oncológico, nomeadamente do cancro da mama e do cancro do colo do útero; pela adesão a planos de vacinação contra o Papilomavírus Humano (HPV); pela prevenção de infeções sexualmente transmissíveis (ISTs) e também na promoção da igualdade de género com prevenção e rastreio de violência e de rituais sociais como a mutilação genital feminina2.
Métodos
Desenho do estudo e população-alvo:
Estudo prospetivo, observacional, anónimo, realizado através do preenchimento de um inquérito online utilizando a ferramenta Google Forms® entre os meses de Abril e Junho de 2022 (3 meses). A população-alvo incluiu enfermeiros (generalistas ou especialistas em Saúde Materna e Obstetrícia), médicos internos e especialistas em Medicina Geral e Familiar e em Ginecologia/Obstetrícia. O estudo foi divulgado através de plataformas digitais, incluindo através de email através da Sociedade Portuguesa de Contraceção.
O estudo mereceu aprovação pela Comissão de Ética e pela Unidade de Investigação Clínica. Todos os inquiridos deram o seu consentimento por escrito após lerem a informação escrita sobre a recolha de dados e política de confidencialidade.
O inquérito consistiu em 19 questões (1 questão aberta, 3 questões de escolha múltipla e 15 questões de escolha múltipla com gradação de hipóteses de 1 a 5), divididas em quatro secções.
A primeira secção incluiu a recolha de dados demográficos (idade, género e categoria profissional) bem como a avaliação do número de períodos de consulta por mês dedicados ao Planeamento Familiar. Foi considerado como período de consulta o equivalente a 4 horas.
A segunda e terceira secções focaram-se em questões sobre as práticas efetuadas nas consultas, sendo os inquiridos convidados a preencher informações acerca da frequência com que avaliam o peso, Índice de Massa Corporal (IMC), questões relacionadas com alimentação saudável, prática de exercício físico e hábitos nocivos.
Na quarta secção, as questões focaram-se noutros temas da Saúde da Mulher. Os inquiridos preencheram dados acerca da frequência de avaliação do cumprimento de programas de rastreio de doenças oncológicas (colo do útero e mama), ISTs e vacinação contra o HPV. Nesta parte do inquérito foi ainda abordada a temática da mutilação genital feminina.
As respostas da segunda à quarta secção foram registadas de forma quantitativa: 1 - Nunca; 2 - Raramente; 3 - Ocasionalmente; 4 - Frequentemente; 5 - Em todas as consultas.
Resultados
Características da amostra:
A amostra foi constituída por 265 profissionais de saúde. A idade média dos inquiridos foi de 39 anos. A maioria (87,17%) era do género feminino. Em termos de categorias profissionais, a amostra apresentou a seguinte distribuição: 25 (9,43%) enfermeiros generalistas, 29 (10,95%) enfermeiros especialistas em Saúde Materna e Obstetrícia (EESMO), 67 (25,28%) médicos internos de Medicina Geral e Familiar, 69 (26,04%) médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar, 25 (9,43%) médicos internos de Ginecologia/Obstetrícia e 50 (18,87%) médicos especialistas em Ginecologia/Obstetrícia. Em relação aos períodos mensais de consulta dedicados à Planeamento Familiar: 42 (15,85%) dos profissionais dedica menos de 1 período, 87 (32,83%) entre 1 e 2 períodos, 83 (31,32%) entre 3 e 4 períodos, 21 (7,92%) entre 5 e 6 períodos, 7 (2,64%) entre 7 e 8 períodos, 5 (1,89%) entre 9 e 10 períodos e 20 (7,55%) dedica mais de 10 períodos.
Prática na consulta de Planeamento Familiar e recomendações sobre estilo de vida saudável
A avaliação do peso e cálculo do IMC é realizada pelos profissionais de saúde em 59,63% e 49,05% respetivamente, sendo esta a prática mais frequente. Quanto ao alerta para a necessidade de uma alimentação equilibrada e de uma vida ativa (incluindo a prática de exercício físico), os inquiridos referem ter esta preocupação frequentemente nas suas consultas, totalizando 49,44% e 51,32% das avaliações, respetivamente.
A maioria dos inquiridos, faz a avaliação de hábitos tabágicos (ativos ou passados) na maioria das suas consultas (36,23% frequentemente e 52,45% em todas as consultas), mas grande parte dos profissionais não referencia as mulheres para consultas de cessação tabágica (14,33% nunca referenciou, 32,85% raramente e 33,58% ocasionalmente).
Globalmente, a maioria dos profissionais inquire acerca de hábitos etílicos e de consumo de drogas nas consultas de Planeamento Familiar (avaliação frequente em 44,90% e 31,32% dos casos, respetivamente).
As respostas ao inquérito, sobre a avaliação de estilos de vida, encontram-se sumarizadas no Quadro I.
Prática na consulta de Planeamento Familiar sobre promoção da saúde sexual e reprodutiva
Em relação ao cancro do colo do útero, a maioria dos profissionais aborda a necessidade de cumprimento do plano de rastreio e do plano nacional de vacinação contra o HPV (64,53% e 32,85% em todas as consultas, respetivamente).
A necessidade de cumprimento do plano de rastreio do cancro da mama é abordada por 53,96% dos inquiridos em todas as consultas.
O alerta para as medidas de proteção contra ISTs é feito pelos profissionais frequentemente durante o período de consulta (46,42%).
No que concerne à prevenção e ao rastreio de violência contra as mulheres, a maioria dos inquiridos aborda este tema menos frequentemente (17,74% nunca, 32,08% raramente e 35,47% ocasionalmente), sendo que apenas 9,82% dos profissionais referem que referenciam sempre estes casos.
A abordagem da prevenção de rituais sociais como a mutilação genital feminina é ainda pouco abordada pelos profissionais de saúde (28,30% nunca, 36,23% raramente e 24,15% ocasionalmente) (Quadro II).
Discussão
Este estudo inclui os diferentes profissionais de saúde que atualmente colaboram e realizam consulta de Planeamento Familiar, possibilitando a avaliação dos cuidados em todas as suas vertentes. De notar que grande parte destes profissionais dedica quatro ou menos períodos (4 horas) de consulta mensal, pelo que esta não é a atividade principal dos inquiridos.
Em relação à abordagem de estilos de vida, a maioria dos profissionais avalia o peso e IMC das mulheres, sendo esta uma medida indireta para a prevenção da obesidade, aliada à promoção de uma alimentação equilibrada e de uma vida ativa (incluindo a prática de exercício físico).
Os comportamentos aditivos (tabagismo, etilismo, consumo de drogas) são outro dos pontos frequentemente abordados na maioria das consultas. Apesar disso a referenciação das mulheres com hábitos tabágicos ativos não é feita em larga escala. De acordo com os dados do Programa Nacional para a Prevenção e Controlo do Tabagismo 2020, conclui-se que a situação pandémica fez diminuir tanto a procura de ajuda na cessação tabágica como a capacidade de resposta do Sistema Nacional de Saúde (SNS), em particular ao nível dos cuidados de saúde primários (CSP), devido à mobilização dos profissionais destas consultas para a resposta à pandemia por SARS-CoV-23. Este poderá ser um dos motivos para a falta de referenciação durante o período de estudo para consulta especializada. De acordo com os resultados do inquérito, a maioria dos profissionais aborda a necessidade de cumprimento do plano nacional de rastreio oncológico ginecológico (mama e colo do útero) bem como do plano nacional de vacinação contra o HPV, sendo agentes de saúde pública focados na prevenção e deteção precoce. O alerta para medidas de proteção contra ISTs é também feito pela maioria dos profissionais nas consultas de Planeamento Familiar, sendo este de crucial importância e uma das pedras basilares no aconselhamento em saúde sexual. Apesar de tudo, uma percentagem significativa dos inquiridos apenas alerta ocasionalmente, o que pode constituir uma oportunidade de melhoria de cuidados. De realçar que esta consulta é ainda uma oportunidade para rastreio oportunista de ISTs sobretudo em mulheres mais jovens ou com fatores de risco.
Por outro lado, de acordo com os resultados acima apresentados, os profissionais não realizam de forma sistemática e frequente a prevenção e o rastreio de violência contra as mulheres, sendo estas situações sub-referenciadas. Nos últimos anos, o fenómeno da violência tem vindo a ganhar visibilidade, tanto a nível nacional como internacional, enquanto grave violação dos direitos humanos e problema de Saúde Pública4. Os profissionais de saúde têm sido chamados cada vez com mais frequência a prestar cuidados às vítimas e a estar atentos para a prevenção destas situações. Apesar disso, apenas nos últimos anos se têm verificado a efetivação de respostas tanto a nível dos CSP como dos hospitalares, o que pode estar na origem das práticas atuais dos profissionais de saúde inquiridos.
A abordagem da prevenção de rituais sociais como a mutilação genital feminina é ainda pouco abordada pelos profissionais de saúde. Segundo a Organização Mundial de Saúde, por ano, mais de 3 milhões de meninas e mulheres estão em risco de serem submetidas a esta prática, sendo que 180.000 destas se encontram na Europa5. A mutilação genital é considerada um crime previsto no Código Penal Português a que os profissionais de saúde devem estar atentos6. No entanto, e apesar de este também ser um tópico polémico e com uma visibilidade crescente nas redes sociais e canais de comunicação, ainda permanece como uma área em que será preciso investir na formação e sensibilização dos profissionais de saúde e da população em geral7.
Conclusões
No presente estudo, a consulta de Planeamento Familiar constituiu uma oportunidade de educação para a saúde global da mulher. Para além do aconselhamento contracetivo, a prevenção primária de doenças através da promoção de estilos de vida saudáveis é fundamental para o bem-estar da mulher, tendo benefícios na qualidade de vida a médio e longo prazo. Apesar de os profissionais promoverem estas práticas bem como a realização de rastreios oncológicos ginecológicos de forma rotineira, ainda parece haver um défice significativo na prevenção e abordagem da violência contra mulheres e mutilação genital feminina, o que pode constituir uma área de intervenção para a melhoria dos cuidados globais prestados às mulheres.
Contribuição dos autores
Patrícia Pereira Amaral: conceptualização, curadoria dos dados, análise formal, investigação, administração do projeto, redação do rascunho original. Sara Sardinha Abrantes: conceptualização, redação - revisão e edição. Mariana Souto Miranda: redação - revisão e edição. Elsa Landim: redação - revisão e edição. Fernanda Matos: redação - revisão e edição. José Silva Pereira: redação - revisão e edição.