O parvovírus B19 (PB19) é um pequeno vírus de DNA apenas patogénico para os seres humanos. Transmite-se por via respiratória e transplacentar. Responsável pelo Eritema Infeccioso nas crianças tem sido descrito como tendo bom prognóstico em indivíduos saudáveis.
Pelo tropismo que tem para as células precursoras eritróides pode provocar anemia aplástica (Crise Aplástica Transitória) com efeitos fetais graves em grávidas suscetíveis (anemia fetal, hidrópsia não imune e morte fetal) e doença grave em indivíduos com anemias hemolíticas, imunodeprimidos ou transplantados.
Não tem efeito teratogénico e confere imunidade protetora e duradoura.
Foram descritos aumentos de incidência por períodos de 2-5 anos1.
O reconhecimento atempado da infeção materna com referenciação a centros especializados permite a correção de uma eventual anemia fetal com transfusão intrauterina (TIU) melhorando o prognóstico/sobrevivência.
Desde meados de 2023 e sobretudo em 2024 tem-se notado grandes alterações nas características desta infeção nomeadamente um enorme aumento da sua incidência, da morbimortalidade associada e o desaparecimento do caráter sazonal anteriormente descrito.
Em Julho de 2023 o Hospital Necker-Enfants Malades em França, sinalizou de Maio a Julho, um aumento do número de casos e gravidade de internamentos pediátricos com infeção por PB19 (37 casos, 57% com drepanocitose) implicando cuidados intensivos e reanimação em 14% dos casos2. Este 1.º alerta esteve na base de vários trabalhos de outros centros e de autoridades de saúde de países da União Europeia que evidenciaram um agravamento da circulação do vírus com características de maior morbilidade e mortalidade em 20243,4,5.
Em Outubro de 2023 Israel também considerou estar a ocorrer o “maior e mais prolongado surto de infeção por Parvovírus 19 no país” 6.
Por não ser doença de notificação obrigatória é através de dados indirectos como avaliação do número de IgM+ para PB19 em vários Laboratórios, número de internamentos pediátricos com recurso a unidades de cuidados intensivos, número de transfusões intrauterinas realizadas em centros de DPN e avaliação de PB19 em dádivas de sangue/plasma7 que se concluiu tratar de um surto de infeção por PB19 de número e virulência não habituais e sem a característica sazonalidade em vários países da EU e também nos EUA que continuou e agravou em 2024.
Em Abril e Junho de 2024 o European Center for Disease Prevention and Control (ECDC) alertou para um número não habitual de infeções por PB19 relatados por 14 países da União Europeia (EU), estratificou os grupos de risco (população em geral, grávidas, doentes imunodeprimidos, doentes com patologia hematológica crónica) e fez recomendações às autoridades de saúde no sentido de sensibilizar os profissionais, de informar os grupos de risco e de propor partilha dos dados epidemiológicos dos países da UE para uma melhor caracterização do surto com notificações no Epipulse.
Em finais de Junho uma nova comunicação do ECDC mantem todos os objetivos anteriores mas refere que em França, de Abril a Maio os casos começaram a diminuir. Na Áustria mantinham a subida.
A 13 de Agosto de 2024 o US Centers for Disease Control and Prevention (CDC) emitiu um alerta “Increase in Human Parvovirus B19 Activity in the United States” dirigido aos profissionais de saúde, às autoridades de saúde pública do país e ao público em geral sobre um aumento da actividade e novas características da infeção por PB19, também verificadas nos EUA, recomendando medidas que aumentem a suspeição e diagnóstico, a identificação dos grupos de risco e a informação/conhecimento ao público.
No geral todos constatam as alterações epidemiológicas descritas e recomendam uma maior sensibilização dos profissionais de saúde, das grávidas e outros grupos de risco no sentido de detetar precocemente a infeção materna e referenciar atempadamente a Centros de Referência.
A aplicação de protocolos específicos incluindo vigilância ecográfica regular e frequente, deteção precoce de anemia fetal pela avaliação do pico da velocidade sistólica na artéria cerebral média (PVS ACM) e a rápida correção da anemia com TIU melhora a sobrevivência e o prognóstico fetal, podendo ser curativa.
Vários estudos explicam estas alterações, não pelas características virais (mesmo genótipo), mas por mudanças das populações consequentes à Pandemia Covid, por maior confinamento e cuidados higiénicos e de prevenção de contágio (uso de máscaras) com um período de “gap” imunológico que condicionou um maior número de indivíduos não imunes. Posteriormente, à medida que o vírus volta a circular, temos indivíduos suscetíveis de diferentes características (maior idade, com menos estímulos antigénicos anteriores), situação também verificada com outras doenças pediátricas virais como a infeção pelo vírus sincicial respiratório7,8.
Desde o início de 2024, no Centro de Responsabilidade Integrada de Medicina e Cirurgia Fetal (CRI-MCF) na Maternidade Dr. Alfredo da Costa (MAC) fomos detetando uma maior referenciação de grávidas com história de contacto e serologias compatíveis com infeção, algumas com sintomas (febre, artropatia, exantema), com alterações ecográficas fetais (hidrópsia, anemia, edema) e um maior número de fetos mortos com doença por PB19 associada. Em Setembro 2024 continuamos a receber situações de grávidas/fetos infetados (ainda não é evidente a diminuição do número de casos) e a fazer TIU por esse motivo.
Desde o início deste ano já se realizaram no nosso Centro 12 TIU para correção de anemia fetal por PB19 (entre 2000 e 2023 foram somente 5) (Figuras 1 e 2).
Infelizmente na maioria dos casos os fetos já apresentam descompensação hemodinâmica grave com valores de Hb inferiores a 3,0 g/dL o que compromete o prognóstico.
Pensamos que nesta fase de aumento da incidência de infeção por PB19 é necessário continuar a sensibilizar todos os profissionais de saúde e os grupos de risco, neste caso as grávidas e seus contactos profissionais e familiares.
A determinação da serologia materna na preconceção e o aconselhamento de cuidados de prevenção às mulheres não imunes podem contribuir para a prevenção primária da doença. É necessário alertar para as medidas de higiene das mãos e superfícies, bem como formas de diminuir a transmissão viral por via respiratória (por exemplo o uso de máscara).
Nas grávidas não imunes a repetição das serologias na gravidez pode detetar precocemente uma seroconversão indicando infeção materna que muitas vezes é assintomática. No caso de sintomas como febre, artropatia, exantema também deverá ser feita a serologia para PB19 IgG e IgM.
Assumindo que houve infeção materna, a referenciação para Centros de DPN deve ser rápida.
Através duma avaliação ecográfica regular e frequente com determinação do PVS ACM, os casos complicados com anemia fetal são reconhecidos precocemente e é programada a TIU.
Ecocardiograma fetal e Neurossonografia (descritas lesões do SNC associadas ao PB199,10 também estão incluídas nesta vigilância fetal.
A deteção ecográfica de sinais de anemia, miocardiopatia, insuficiência cardíaca congestiva e hidrópsia não imune deve também ser motivo para referenciação imediata a Centros de DPN para que, nos casos indicados, uma TIU eficaz ocorra numa fase ainda sem deterioração grave, por vezes já irreversível.
Lembrando ainda que casos de aborto e morte fetal devem ter incluído no estudo etiológico a pesquisa da infeção por PB19.