A Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal (SPOMMF) decidiu selecionar um conjunto de artigos relevantes de Medicina Materno-Fetal publicados em 2023/24 e que poderão ter mais influência na prática clínica em várias vertentes desta área médica - medicina materno-fetal ante e pós-parto, diagnóstico pré-natal, medicina fetal e tocologia - ao invés de privilegiar uma só área especifica. A escolha dos artigos é, como sempre, permeada pela subjetividade de quem redige este texto, mas a SPOMMF não quer deixar de agradecer aos colegas que colaboraram na Sugestão da Semana SPOMMF em 2023/24 pois a maioria dos artigos selecionados foram apresentados nesta rubrica semanal online da Sociedade.
Em 2023, uma seção da revista oficial da FIGO1 foi dedicada à vacinação na mulher e, muito em especial, à grávida. Aborda os mecanismos de como a vacinação melhora os desfechos na gravidez e explora formas de melhorar a adesão das grávidas (e dos prestadores de cuidados de saúde!) à vacinação, partilhando experiências vividas por esse mundo fora e de formas de implementação de programas de vacinação. A relevância destes programas nos cuidados à gestante e ao seu filho tem sido enfatizada por várias sociedades científicas - inclusive, a SPOMMF, em 2024, emitiu recomendações nesse sentido2, sendo em Portugal recomendado vacinar na gravidez contra a COVID-19, o tétano, a tosse convulsa e a gripe, estando as vacinas disponíveis gratuitamente e facilmente acessíveis. Com o objetivo de diminuir a gravidade da doença associada ao Vírus Respiratorio Sincicial (VRS) no lactente, em 2023 iniciou-se a comercialização de uma vacina para administração na grávida e várias Sociedades Obstétricas apoiaram a sua inclusão no programa vacinal na gestação, tendo surgido varias recomendações3,4 nesse sentido. Vacinar na gravidez não é uma novidade mas, num tempo de descrença e de falta de literacia em saúde, a formação dos que cuidam da saúde das grávidas e dos seus filhos é fundamental para um aconselhamento cientificamente adequado, e que facilite uma melhor adesão aos planos vacinais.
A elevada incidência de cesariana, apesar das múltiplas estratégias para a sua diminuição, continua a ser uma preocupação das Sociedades Obstétricas. Muitas das complicações associadas a esta cirurgia advêm das variadas formas de a executar sendo muitas delas baseadas em prácticas habituais sem qualquer suporte científico. Recentemente a FIGO5 publicou recomendações sobre a técnica cirúrgica (da incisão ao encerramento da pele passando pela histerotomia, extração do feto, dequitadura e histerorrafia) sustentadas na evidência científica. É um open access paper de fácil leitura que tem por propósito ajudar a melhorar a segurança e reduzir as complicações associadas à cesariana e de leitura obrigatória para quem se dedica à prática tocológica.
Ainda no tema “cesariana”, assiste-se nos dias de hoje a um aumento da incidência de cesariana no segundo estadio de trabalho de parto. Associa-se a um aumento de morbilidade materna e neonatal e apresenta uma estreita relação com a forma como se lida com a extração do polo cefálico. Em acesso livre foi publicada uma revisão das diversas formas de proceder perante este tipo de situações6 que no Reino Unido podem complicar cerca de 10% das cesarianas emergentes; uma revisão sistemática publicada em 20237 mostrou que a elevação da cabeça fetal por via vaginal apresenta uma menor morbilidade materna e neonatal do que a extração pélvica reversa. Não sendo uma forma habitual de cesariana, a diminuição da experiência do operador no parto instrumental pode torná-la mais frequente e, consequentemente, aumentar a possibilidade deste se deparar com o polo cefálico impactado e de difícil mobilização, o que representa uma verdadeira emergência obstétrica.
A hemorragia pós-parto (HPP) é a principal causa de morbimortalidade materna em todo o mundo. O texto acima referido da FIGO5 refere as diferentes complicações hemorrágicas que se podem encontrar numa cesariana e como resolvê-las no bloco operatório. Uma recente revisão publicada no Obstetrics & Gynecology8 aborda a evidência sobre a eficácia e segurança de sistemas para controle de HPP nomeadamente o balão intra-uterino, que tampona o útero, e os novos sistemas que promovem o vácuo intra-uterino e colapsam a cavidade. Este último tem apresentado resultados promissores, mas são ainda necessários estudos randomizados e que incluam amostras de maiores dimensões para que se comprove o seu benefício clínico.
A avaliação do comprimento cervical por ecografia transvaginal no exame ecográfico do 2.º trimestre da gestação com o objetivo de rastrear o parto pré-termo espontâneo (PPTe) continua a ser um assunto controverso. Apesar da ISUOG o recomendar9, uma recente revisão sistemática e meta-análise10 mostrou que, numa avaliação global, a medição universal do comprimento cervical por via transvaginal não diminuiu significativamente a taxa de PPTe antes das 37 ou das 34 semanas mas associou-se significativamente a uma diminuição do PPTe antes das 32 semanas em 16% (OR, 0.84 [95% CI, 0.76-0.94], p=.002). Avaliando apenas o subgrupo de grávidas sem antecedentes PPTe anterior, verificou-se uma redução do risco de PPTe antes das 37 semanas em 12% (OR, 0.88 [95% CI, 0.79-0.97], P=.01), embora não se tivessem encontrado diferenças significativas para PPTe antes das 32 ou das 34 semanas. Um estudo aleatório europeu recente11 englobando uma amostra significativa de 1334 grávidas assintomáticas, gestação unifetal e sem antecedentes de parto pré-termo, também não mostrou qualquer vantagem na realização universal de ecografia transvaginal na avaliação ecográfica do 2.º trimestre da gestação para rastrear PPTe, não tendo encontrado diferenças estatísticas na incidência do parto pré-termo às 24, 28, 30, 32 e 34 semanas. Mantém-se, pois, dúvidas na comunidade obstétrica sobre a importância de realizar de forma sistemática uma avaliação do comprimento cervical no exame ecográfico do 2.º trimestre!
Controversa também tem sido a atitude a tomar, na gestação gemelar assintomática, quando nos deparamos com um colo curto (≤ 25mm) na avaliação ecográfica no 2.º trimestre. Trabalhos surgidos em 2023 e 2024 parecem apontar para a eficácia da cerclage na redução da taxas de PPTe e de desfechos perinatais/neonatais adversos, quer em pequenas coortes12 quer em estudos aleatorizados de pequenas amostras13, no entanto faltam ainda estudos robustos que demonstrem inequivocamente a importância da cerclage nesta população de grávidas de risco.
Na atualidade, a indução do parto é realizada em cerca de 25% das grávidas. Em muitos casos é necessária uma maturação cervical prévia; a melhor forma de a realizar tem sido motivo de debate na comunidade científica obstétrica. A colocação de um balão da sonda de Foley com este propósito tem tido cada vez maior adesão, tanto mais que os riscos associados são quase inexistentes. Ao longo do tempo têm sido levantadas dúvidas quanto à sua segurança quando é realizada em ambulatório e sobre a necessidade de tracionar a algália após a colocação do balão para aumentar a eficácia. Uma recente meta-analise14 mostrou que a maturação cervical com balão em ambulatório, quando comparada com a maturação cervical em internamento (balão de Foley ou prostaglandina E2) se associou a uma redução significativa na duração do internamento, sem diferenças significativas quanto a desfechos adversos maternos ou neonatais pelo que, em gestações de termo e sem risco acrescido, a opção da maturação cervical em ambulatório com o balão de Foley deve ser implementada. Quanto à necessidade de promover a tração na sonda de Foley após colocação do balão, um estudo randomizado recente15 mostrou que esta é dispensável - no grupo em que a sonda não foi tracionada, a necessidade de utilizar prostaglandinas/ocitocina concomitantes, a via de parto e a morbilidade materna ou neonatal não foram significativamente diferentes do grupo a que se aplicou tração na sonda. Sendo a tração na sonda de Foley algo que pode causar desconforto à grávida, e que pode inviabilizar a sua ambulatorização, esta evidência recente permite a implementação desta técnica de forma mais segura e informada, privilegiando este método de maturação cervical sobre as alternativas farmacológicas.
A ISUOG nos últimos anos tem publicado recomendações sobre os exames ecográficos a realizar ao longo da gravidez emitindo, em 2024, as que concernem a ecografia do 3.º trimestre16. O artigo é um importante documento na orientação da realização da ecografia do 3.º trimestre, que está muito longe ser uma mera avaliação do crescimento fetal e cuja importância não deve ser menosprezada. O texto é muito explícito sobre como realizar o exame, as suas vantagens e limitações. Embora não seja opinativo sobre se este tipo de exame deva ser oferecido de forma universal a todas as grávidas, sugere que se o objetivo principal for o de avaliar o crescimento fetal deve ser realizada às 35-36 semanas. Recentemente foi publicado um estudo feito em Portugal17 que mostrou que o grupo que realizou uma avaliação ecográfica entre as 35-37 semanas de gestação obteve uma precisão de diagnóstico de restrição de crescimento fetal mais elevada e associou-se a melhores desfechos perinatais do que aquele que realizou ecografia às 30-33 semanas.