
Figura 1 Imagem gerada por Inteligência Artificial com a prompt “Podes produzir uma imagem que sugira o tema da IA na ginecologia e obstetrícia?” na LLM Grok.
Ao iniciar o internato de Medicina Nuclear, em 2006 (sim, fiz dois anos desta especialidade, antes de decidir que queria mais contato com utentes), entre estudar física e manuais de manutenção e calibração de Câmaras Gama, li as primeiras menções na especialidade a diagnóstico de imagem através de redes neuronais. Nos últimos anos, o fascinante tema da inteligência artificial evoluiu de uma nota de rodapé num livro para um gerador de notícias. Aqui o “gerador” tem dois sentidos, pelas notícias a que dá origem, e as que por si, ou com o seu auxílio, são produzidas.
Uma rede neuronal mapeia uma (ou várias) variável de entrada com uma de saída, que passam por um conjunto arbitrário de neurónios “escondidos”, cujas ligações são “treinadas” para executar/encontrar as funções pretendidas. Os pontos que compõem uma imagem podem ser as entradas, e a saída ou resultado é a presença, ou não, da doença (Figura 2). Esta rede é primeiro “treinada” a partir de imagens semelhantes e do resultado de anatomia patológica de peças operatórias como determinadora de “presença de doença”. Deste treino surge a organização das camadas escondidas, o que significa que a rede escondida se auto modifica de forma a providenciar o resultado esperado para cada conjunto de entradas. Depois deste treino, novas imagens de novos pacientes podem ser usadas para prever o resultado de anatomia patológica dos mesmos. Em outro exemplo prático, poderia carregar centenas de milhares de imagens de sinais STOP em vários locais, e treinar a rede para dar o resultado de STOP. Depois, um carro ao encontrar situações semelhantes em vários países, com sinais parcialmente escondidos ou apagados, com cores esbatidas, etc., teria o mesmo (possivelmente até melhor) comportamento do humano em reconhecer o sinal.
Se os neurónios nas camadas escondidas forem centenas, milhares, milhões... percebemos como a complexidade aumenta. Os LLM (Large Language Model) como chatGPT tem estimados cerca de 1 bilião de “parâmetros” ou “pesos” (1x1012). Entende-se assim de onde vem o “Large” em LLM.
A Inteligência Artificial (IA) tem revolucionado o mundo e derrubado barreiras a um ritmo que tem acelerado de forma exponencial. As notícias de novas capacidades têm sido cada vez mais frequentes, mais importantes e mais rápidas.
O diagnóstico imagiológico está a ser revolucionado por estes sistemas. Muitos já se aproximam ou ultrapassam (não em todas as vertentes) da performance de um especialista. Ecografia, mamografia, RMN, TAC, Raio X simples tem aplicações que têm vindo a ajudar (neste momento) e podem vir a substituir ou, pelo menos, simplificar e diminuir o erro do diagnóstico humano1. O leitor poderá fazer a experiência de fazer upload para um LLM (Large Language Model) moderna, como Grok 2.0 (x.AI) de uma imagem de ecografia ou Rx, sem contexto, e perceber a quantidade de vezes que a explicação sobre o que é visualizado, incluindo o propósito da imagem, é exata.
A seleção de embriões em Procriação Medicamente Assistida (PMA) é uma área de atuação óbvia, dada a clássica avaliação morfocinética, facilmente avaliada por imagens estáticas em quantidades variáveis com sistemas atualmente em uso (time lapse). Grandes conjuntos de dados relativos a embriões são relativamente fáceis de obter, bem como os resultados (objetivos) de nado vivo, por exemplo. Vários estudos têm sido publicados sobre a eficácia e eficiência deste tipo de algoritmos na seleção da prioridade embrionária2),(3. Já é sugerida até uma classificação para o tipo de algoritmo e como foi treinado, para facilitar a discussão sobre os mesmos: desde imagens anotadas por embriologistas, com base em algoritmos manuais, até sistemas “black box” em que a aprendizagem do sistema IA se baseia em pixéis de uma imagem e resultado (end to end, que pretende significar algo desde a fonte mais básica de dados até ao resultado mais complexo4. O modo de previsão é também relevante. Quantidades grandes de dados de boa qualidade permitem a sistemas de IA calcular probabilidades de sucesso, e poderão um dia ajudar a escolher esquemas de medicação mais eficazes em PMA.
A previsão de desfechos obstétricos, apesar de mais complexa (ou menos facilmente objetivável), funciona relativamente bem, por ter na sua origem muitos dados e desfechos mensuráveis, como internamento em cuidados intensivos neonatais, pré-eclâmpsia, parto prematuro, etc. Nesta sequência, a utilização de IA na monitorização fetal leva à identificação de padrões e automatização de alertas em situações estratificadas por risco, aumentando a segurança5. Os mais recentes aparelhos de ecografia obstétrica já usam diversos algoritmos para auxiliar em medições, otimizar imagem e identificar estruturas, algo que terá tendência a aumentar.
Na Ginecologia tem sido demonstrada a utilidade no auxílio no reconhecimento visual de infeção por HPV5, entre outras aplicações, por exemplo em oncologia e na cirurgia robótica.
Pelos parágrafos anteriores percebe-se que o que interessa para a progressão nesta área são a quantidade e qualidade de dados. Para as LLM (leia-se chatGPT, Claude, Grok, etc.) a quantidade de texto produzido por humanos é imensa. A quantidade de imagens, áudio, vídeo na rede é difícil de estimar, mas o conteúdo total da Web excede 2 yottabytes (dois mil milhões de terabytes). Por este motivo se percebe a evolução de IA para gerar texto, imagens, mesmo vídeos estar a ser extremamente rápida, sendo aparente que as limitações se referem apenas a capacidade de processamento. Por abordar a capacidade de processamento, se provavelmente ouviu mencionar Nvidia é sobretudo por produzir (desenhar) os chips mais avançados para “treinar” e correr estas IA, e o interesse da China em Taiwan passa pela TSMC, maior e mais avançada produtora de chips do mundo, estar sediada neste território. Esta não é tecnologia fácil de replicar e grande parte do sucesso do capitalismo ocidental passa por desenvolver e assegurar a produção de grandes quantidades de chips de última geração (que obviamente estão constantemente a melhorar).
Para aumentar a qualidade dos sistemas de IA, neste momento, temos de ser nós, humanos, a gerar e reunir maiores quantidades de dados de boa qualidade. Existem ainda implicações éticas e de regulamentação importantes. Quando temos sistemas baseados em “caixa negra” existem conflitos éticos graves. Nós, humanos, não conseguimos explicar como a máquina toma decisões, porque as camadas escondidas são-no até para os seus criadores, e só conseguimos avaliar a precisão dos resultados. Imagine-se que uma IA rejeita 2% dos embriões que implantariam, apesar de aumentar a taxa de gravidez por transferência e diminuir o tempo até gravidez: Estaríamos confortáveis com um sistema assim? E se os humanos na mesma situação rejeitassem 3%? E se a taxa de falsos positivos fosse 5%? E 10%? Efetivamente isto traz-nos a outro entrave a discutir, que é a alta desconfiança dos humanos em relação a este assunto, não sendo os médicos exceção, pelo que existe muita resistência à entrada destes sistemas na prática clínica. A título de exemplo a maior parte das televisões noticiou a morte de um peão por um veículo autónomo Uber em 2018. O sistema não reconheceu o peão e a condutora de segurança estava distraída a ver vídeos no seu telemóvel. Apesar de um evento infelizmente demasiado comum, este específico envolveu uma máquina, pelo que o escrutínio foi muito maior. Mesmo que os sistemas sejam muito mais seguros que humanos, erros fatais vão merecer um peso muito diferente do atribuído a humanos.
Por outro lado, se os sistemas adquirem a total confiança dos humanos, outro perigo se apresenta: Quando toda a informação é digital e confiamos cegamente nas respostas da IA, quem nos garante que as repostas são verdadeiras e não estamos a ser manipulados?
Temos observado uma explosão de sistemas com capacidades até agora reservadas a humanos, como produzir código de programação que funcione eficazmente, arte, clipes de cinema, argumentos e textos de ficção, etc. Existe ainda alguma polémica sobre as previsões de capacidades de sistemas baseados em IA a médio e longo prazo. Estas mudam de acordo com o especialista que se consulte, nomeadamente em relação à ocorrência e significado da “singularidade”, em que um destes sistemas poderá ultrapassar a inteligência do coletivo humano. Este momento hipotético tem raízes no termo aplicado à física porque as regras comuns e, por isso, as previsões, tornam-se impossíveis nesta eventualidade. A evolução da inteligência torna-se ordens de grandeza superior à humana e cresce de forma exponencial porque o sistema poderá ser capaz de autoaperfeiçoamento. Esta temática pode levar a uma discussão de superabundância, em que máquinas avançadas são responsáveis por quase todo o trabalho e os humanos podem limitar-se a consumir recursos gratuitamente (com todas as implicações - boas e más), ou ao medo de extinção da espécie humana, pela diferença abismal entre as capacidades da entidade superinteligente em relação a humanos. Apesar de ser tema de filmes de ficção científica, a singularidade em IA é algo que poderemos presenciar ainda nas nossa vidas. Dario Amodei, co-fundador e CEO da Anthropic, empresa que produz o LLM Claude, famosamente manifestou em várias entrevistas a sua crença que a IA poderá alcançar um nível de autonomia que lhe permita reproduzir-se sem supervisão humana entre 2025 e 2028... Outros especialistas, no entanto, afirmam que isso será impossível nas próximas décadas.
Argumentos de filmes de Hollywood à parte, devemos ter bem presente que não sabemos aquilo que não sabemos, ou seja, somos ignorantes para eventos difíceis de imaginar, como uma inteligência 1000, 10.000 vezes superior ao coletivo humano. Como exemplo, contemple que a diferença de inteligência entre nós e uma formiga poderá ser facilmente ultrapassada com estas entidades hipotéticas, em relação ao nosso próprio intelecto. O nosso cérebro tem imensa dificuldade em lidar com o crescimento exponencial (que está a acontecer neste preciso momento nesta área!): Se eu der um primeiro passo de 30 cm e os seguintes passos sempre com o dobro do tamanho do anterior, quantos passos seriam necessários para chegar à lua (384.000 km)? A resposta - 31 - surpreende frequentemente quem nunca leu sobre este exemplo clássico.
As previsões são difíceis, as possibilidades incríveis, e existe muito de prático e imediato a acontecer neste momento.
A inteligência artificial tem o potencial de transformar a prática médica. O seu uso promete melhorar a precisão diagnóstica, otimizar tratamentos e prevenir complicações. Apesar dos desafios, os avanços até o momento demonstram que a IA não é apenas uma ferramenta promissora, mas uma realidade que já tem um impacto positivo na medicina.
Se quiser saber mais sobre o tema recomendo os seguintes livros, que são interessantes mesmo para quem não conhece nem tem especial atenção a estes temas:
“Life 3.0: Ser-se Humano na Era da Inteligência Artificial” de Max Tegmark;
“Human Compatible: Artificial Intelligence and the Problem of Control” de Stuart J. Russell;
“A Guerra dos Chips: O combate pela tecnologia mais crucial do mundo” de Chris Miller;
“Nexus” de Yuval Noah Harari.
Não deixe de experimentar as capacidades maravilhosas de ferramentas gratuitas como:















