Foi com muito interesse que lemos na mais recente publicação da Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa o artigo “O Perfil Clí́nico da Mulher com Risco Acrescido de Acretismo Placentar: Proposta de uma Guideline de Rastreio”1. Neste artigo é dada relevância ao acretismo placentário (de agora em diante designado PAS - Placenta Accreta Spectrum - de acordo com a nomenclatura estabelecida pela FIGO) e ao seu diagnóstico anteparto, patologia à qual nos temos dedicado, de uma forma multidisciplinar, nesta instituição em particularnos últimos anos2.
À luz da evidência atual, e de acordo com o mecanismo fisiopatológico da doença, o principal fator de risco de PAS é a cirurgia uterina, principalmente a cesariana, criadora de um defeito miometrial extenso numa zona de mais difícil cicatrização. Estes dados foram confirmados na revisão efetuada que demonstra um OR de 5.84, 95%CI [2.69; 12.67] para grávidas com 2 ou mais cesarianas1. Sabendo neste momento que a taxa de cesarianas tem vindo a aumentar paulatinamente nos hospitais públicos (de acordo com dados do PORDATA, em 2021 cerca de 37% dos partos foram por cesariana), é expectável, num futuro não muito distante, uma incidência crescente de PAS diagnosticados no nosso sistema nacional de saúde.
Atualmente, é recomendada a avaliação e tratamento destes casos em centros dedicados com uma equipa experiente e com interesse nesta patologia. Desta forma, é possível diminuir a morbimortalidade materna, obtendo estimativas de morbilidade cirúrgica composta, incluindo hemorrágica, semelhantes, em média, às de uma cesariana convencional3),(4 e, simultaneamente, reduzir a prematuridade, principal fator prognóstico adverso da morbilidade fetal5. A deteção e vigilância anteparto em centros de referência permitem atingir excelentes desfechos, mesmo em caso de atuação emergente. Assim, foi com agrado que acolhemos a sugestão de criação de um score de risco de PAS para avaliação das mulheres durante a gravidez. Embora o score seja extremamente atrativo e construído de acordo com os principais fatores de risco identificados, fica a dúvida se não incorre em alguma sobre-referenciação de casos que dificilmente terminariam em PAS, com subsequente sobre-disponibilização de recursos técnicos e humanos diferenciados, e com os custos inerentes a este tipo de cuidados num centro de referência. Somos da opinião que todas as doentes com cesariana anterior e placenta prévia devem ser avaliadas num centro dedicado, com um ecografista experiente, algo que já é realizado em múltiplos países, principalmente na Europa e Estados Unidos da América, mas também em países em desenvolvimento. São estas as doentes de maior risco que, provavelmente, apresentarão o espectro mais grave da doença, com maior possibilidade de diagnóstico anteparto e que mais beneficiarão da abordagem por uma equipa multidisciplinar6.
Em 2014, no nosso Serviço, concordando com a necessidade de prestar mais atenção a esta entidade e entendendo a importância da multidisciplinaridade para a sua orientação, desenvolvemos um protocolo de atuação no acretismo placentar, discriminando as diversas opções terapêuticas de acordo com as situações com que nos deparamos no dia a dia, as opções maternas e o caráter planeado/emergente da situação. Com a experiência crescente, a abordagem multidisciplinar, incluindo a técnica cirúrgica, tem vindo a sofrer alterações, no sentido de minimizar a invasividade e radicalidade, sem compromisso da morbilidade. A equipa multidisciplinar envolve a participação de elementos da Obstetrícia, Ginecologia Oncológica, Ginecologia, Urologia, Radiologia de Intervenção, Anestesiologia, Neonatologia com cuidados diferenciados, Imuno-hemoterapia e Unidade de Cuidados Intensivos materna. Destacamos ainda o papel da Anatomia Patológica, na avaliação de placentas/peças de histerectomia, fundamentais para garantir/validar um diagnóstico preciso e real, e discriminando as situações de deiscência miometrial das situações de acretismo.
Já em 2018 publicamos uma carta ao editor nesta mesma revista relativa à necessidade de criação de centros de referência para orientação dos casos de PAS7. Na altura escrevemos algo que assumimos se mantém ainda atual: “na eventual criação de centros de referência de acretismo placentar é fundamental a elaboração de critérios realistas e adequados de referenciação; é fundamental a existência de uma equipa multidisciplinar bem preparada e capaz de trabalhar em conjunto, disponível e pronta a atuar quando necessário; é indispensável centrar o foco no diagnóstico antenatal, promovendo um parto eletivo e em condições ideais; é, ainda, essencial definir adequadamente como reagir em situações agudas, emergentes e não suspeitadas, garantindo o melhor desfecho materno e fetal”. Infelizmente não foram ainda dados passos nesse sentido. Atualmente, e com o grau crescente de exigência na primazia da qualidade assistencial, continuamos a acreditar nesta necessidade, estando disponíveis para colaborar nesse sentido. Acreditamos que esta realidade seja inevitável, sendo que mais cedo será melhor e que mais doentes beneficiarão desta prática.














