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Observatorio (OBS*)

versão On-line ISSN 1646-5954

OBS* vol.8 no.3 Lisboa set. 2014

 

Explorando a dimensão empírica da cidadania comunicativa e direito à comunicação1

Exploring the empirical dimension of communicative citizenship and right to communication

 

Paola Sartoretto*

*PhD Candidate, Department of Geography, Media and Communication, Karlstad University, SE-651 88 Karlstad, Sweden. (paola.sartoretto@kau.se)

 

RESUMO

A relevante experiência comunicacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil– na qual as rádios comunitárias exercem uma função fundamental ao longo dos 30 anos de existência do movimento – serve como contexto para a análise e problematização das ideias de direito à comunicação (Peruzzo 2011, Deane 2007), cidadania comunicativa (Mata 2006) e representação (Fraser 2009). Fomentam a conscientização (Freire 1987), mobilização e (re)construção da identidade camponesa por meio de uma programação e atividades centradas no exercício do direito à livre expressão e valorização das manifestações culturais populares. Além disso, as rádios ligadas ao movimento se tornam um canal de diálogo com a comunidade local, na medida em que valorizam manifestações culturais da mesma e exercem funções de serviço público. Entretanto, as rádios comunitárias do MST apresentam conflitos e contradições entre os quais se destacam a escassez de recursos, os empecilhos impostos pela restritiva lei de radiodifusão brasileira e a transição para mídias digitais. Nesse contexto, analisam-se aqui as tensões e potencialidades das rádios ligadas ao MST e inseridas nos espaços do movimento, como assentamentos e escolas. Através de entrevistas com comunicadores populares militantes do movimento, pretende-se discutir e contribuir para o desenvolvimento de conceitos como direito à comunicação (Peruzzo 2011), cidadania comunicativa (Mata 2006) e representação (Fraser 2009). A partir desse estudo pode-se constatar a função mediadora (Couldry, 2010) da rádio entre o movimento e as comunidades locais. As rádios também se constituem em um espaço de aprendizagem para o exercício da cidadania comunicativa e do direito à comunicação.2

Palavras-chave: rádio comunitária, direito à comunicação, cidadania comunicativa, representação, movimento social.

 

ABSTRACT

The experience of Brazilian Landless Workers Movement (MST) in which community radios have a fundamental role, is the context for the analysis and problematisation of ideas concerning the right to communication (Peruzzo 2011, Deane 2007), communicative citizenship (Mata 2006) and representation (Fraser 2009). The radios foster conscientisation (Freire 1987), mobilisation and (re)construction of the peasant identity through programming and activities that focus on the exercise of the right to free expression and valorisation of popular cultural manifestations. Furthermore, the movement radios become a channel for dialogue with the local community. They also present conflicts and contradictions, among which are resource scarcity, barriers imposed by the restrictive radiobroadcasting law in Brazil and the transition to digital media. This paper analyses tensions and potentialities of movement radios, which are embedded in the movement’s spaces such as rural settlements and schools. Departing from interviews with militant popular communicators the paper intends to discuss and contribute to the development of concepts such as right to communication (Peruzzo 2011), communicative citizenship (Mata 2005) and representation (Fraser 2009). The study demonstrates that the radios exert a mediating function (Couldry 2010) between the movement and local communities and function as a space for learning the exercise of communicative citizenship and right to communicate.

Keywords: community radio, communicative citizenship, right to communication, representation, social movement.

 

Introdução

A criação de rádios comunitárias como forma de expressão popular e ação política se destaca na América Latina, principalmente a partir da segunda metade do século 20 (veja, por exemplo, Gumucio-Dagron 2005 e Peruzzo 2011). Em zonas rurais, rádios comunitárias prestam serviços públicos de informação ao mesmo tempo em que se constituem em uma arena para a expressão de manifestações culturais e formatos3 que não encontram espaço em veículos comerciais. Nesse contexto, o MST4, enquanto movimento social representante da classe trabalhadora rural, vai encontrar no rádio uma forma de unir a militância, educar e dialogar com as comunidades locais. Essa relevante experiência comunicacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil – na qual as rádios comunitárias exercem uma função fundamental ao longo dos 30 anos de existência do movimento – serve como contexto para a análise e problematização das ideias de direito à comunicação (Peruzzo 2011, Deane 2007, Mata 2006), cidadania comunicativa (Mata 2006) e representação (Fraser 2009). Inseridas no movimento, as rádios comunitárias cumprem uma função predominantemente democrática, educativa e política. Fomentam a conscientização (Freire 1987), a mobilização e a (re)construção da identidade camponesa por meio de uma programação composta por atividades centradas no exercício do direito à livre expressão e valorização das manifestações culturais populares.

Partindo da experiência prática de três rádios do movimento, discutimos aqui conceitos teóricos como direito à comunicação (Peruzzo 2011) e direito de comunicar (Deane 2007), com ênfase nos conflitos e limitações que emergem nos processos de comunicação comunitária e alternativa. A experiência de rádios comunitárias é inserida no contexto da educomunicação, resgatando a conexão entre práticas midiáticas (cf. Couldry 2010 e Couldry 2012: media practices) do MST e as práticas educativas emancipadoras (Freire 2001).

Argumenta-se assim que o direito à comunicação e o direito de comunicar estão intimamente interconectados às possibilidades de agência. Dessa forma, ao mesmo tempo em que uma educação emancipadora praticada (entre outras formas) através da comunicação midiática promove a conscientização, construindo sujeitos aptos ao agir político, são necessárias estruturas materiais e políticas que facilitem essa ação. Não se pretende, entretanto, resolver o histórico debate sociológico entre estrutura e agência (Giddens 1991), mas sim iluminar as interconexões entre essas duas categorias e reafirmar a importância da ação comunicativa em criar as condições necessárias para a agência no terreno social.

A partir das experiências comunicativas do MST e das vivências de militantes, discute-se nesse artigo o exercício da comunicação como um direito. Nesse sentido, o direito à comunicação é analisado a partir do ponto de vista dos sujeitos que reivindicam o acesso à comunicação e o direito de comunicar. No cenário atual, em que a internet é considerada por muitos5 como uma mídia participatória e comunitária por excelência, é necessário lembrar que nem sempre se dispõe dos recursos tecnológicos e estruturais necessários para a efetiva utilização da comunicação digital. Por esse motivo ressalta-se aqui o papel do rádio enquanto mídia participatória e de sua utilização em processos de conscientização e formação de sujeitos.

Com efeito, passada a euforia inicial, hoje é possível analisar, problematizar e questionar os avanços e benefícios trazidos pelas mídias digitais em termos de participação popular e mudança social com mais cautela e um olhar crítico para esses mais de vinte anos de experiência ao redor do mundo. Curran et al. (2012:179) argumentam que o foco “descontextualizado e estreito” na tecnologia da internet leva a uma representação errônea do seu impacto. Os autores explicam que as previsões otimistas quanto à internet não se realizaram porque processos culturais, econômicos e políticos que historicamente permeiam nossas sociedades se refletem no desenvolvimento das comunicações digitais. É nesse contexto que McChesney (2013:216) enfatiza o papel crucial de processos sociais e criação de políticas públicas na formação e desenvolvimento do potencial das tecnologias, que, segundo ele, não são determinantes de uma “revolução digital”. Tendo em vista tais argumentos, torna-se essencial aprofundar a discussão das relações entre mídia, comunicação, participação social e democracia, tomando como ponto de partida (como sugere McChesney) os processos sócio-politico-culturais em que as tecnologias estão inseridas.

 

Comunicação como um direito

Pode-se dizer que o reconhecimento do papel de sistemas de comunicação em diversas escalas no estabelecimento e manutenção da democracia emerge no cenário dos organismos internacionais com as discussões em torno da Nova Ordem Mundial de Informação e Comunicação (NWICO) que culminaram na publicação do relatório “One World, Many Voices”, em 1980, pela UNESCO. O objetivo de atingir uma comunicação plural e diversificada permanece na agenda de órgãos de cooperação internacional durante as próximas décadas e em 2003 realiza-se em Genebra (Suíça) o World Summit on the Information Society (WSIS). Milan (2013) vê um desenvolvimento entre a NWICO e o WSIS porque, segundo a autora, enquanto a primeiro envolvia apenas Estados, no segundo foram convidados a participar grupos da sociedade civil em condições iguais a governos e setores da indústria. Tais iniciativas tiveram como objetivo fomentar o acesso democrático aos meios de comunicação e o equilíbrio nos fluxos internacionais de comunicação. Em paralelo, a visão da comunicação como um direito ganha corpo em discussões na disciplina de mídia e comunicação. Projetos de desenvolvimento, educação e difusão de informação usando rádio como principal mídia já eram realizados, no Brasil, desde a década de 60, como, por exemplo, o Movimento de Educação de Base (MEB). Com o objetivo principal de conscientizar (cf. Freire, 1987) e educar trabalhadores e trabalhadoras, o MEB favoreceu atividades participativas nas quais trabalhadores rurais eram incentivados a debater e discutir e “encontrar seus próprios métodos para a analisar sua realidade e seus problemas” (Bordenave 1977:33). Esses exemplos ilustram como, por meio de diferentes mídias, a comunicação pode ter um papel de protagonista no processo de participação democrática na sociedade e na comunidade além de refletir o argumento de McChesney (2012: 216) de que tecnologias adquirem a forma que cada sociedade escolhe para desenvolvê-las.

Após o enfraquecimento dos projetos e iniciativas de comunicação popular durante os anos da ditadura militar no Brasil, de 1964 a 1984, a ideia da comunicação como um direito básico do cidadão começa a ser (re)construída. Segundo Peruzzo (2011), até os anos 1990 a comunicação popular e comunitária era vista como uma demanda específica dos movimentos sociais. Tais grupos, por não serem representados ou não terem suas necessidades atendidas pelos grandes meios de comunicação, necessitariam de direitos específicos para poder ter acesso aos meios de comunicação e informação. Nota-se, também, que o conceito de informação, baseado em noções desenvolvimentistas de difusão de inovações (Rogers 2010) dominava as discussões sobre acesso aos meios de comunicação. Nesse sentido, acesso à comunicação se igualava a acesso à informação por meio de diferentes mídias. À medida em que o acesso aos meios de comunicação começa a ser visto como um direito de cidadania (Peruzzo, ibid.), o conceito de participação se incorpora à noção de comunicação como um direito. Isso significa que, para além do simples acesso à informação através de mídias variadas e plurais, o exercício da cidadania também inclui a capacidade de produzir mensagens.

No âmbito político, essa noção do exercício da cidadania através do fazer comunicativo, ou da produção de mensagens, pode ser conectada ao conceito de representação introduzido por Fraser (2009). Segundo a autora, representação se refere tanto à representação política quanto à representação simbólica no sentido de que problemas e demandas coletivas e individuais tenham visibilidade pública e de que todos os afetados por esses problemas possam participar dos processos deliberativos que levam à sua solução. Mesmo que o conceito de representação de Fraser não esteja diretamente ligado à representação midiática, é possível utilizá-lo como um fundamento político para o estabelecimento do direito à comunicação. Ele remete à ideia proposta por Silverstone (2007) de que mídias são espaços de visibilidade (spaces of appearance) nos quais problemas e situações distantes (socialmente, politicamente ou geograficamente) se materializam convidando o público ao engajamento.

Assim, a ideia do direito à comunicação está ancorada na noção (por falta de um termo adequado em português) de publicness desenvolvida por Habermas (1991) como o espaço simbólico onde se dão os debates públicos e onde se exerce o que Mata (2006) chama de cidadania comunicativa. A autora (2006:13) define cidadania comunicativa como “o reconhecimento da capacidade de ser sujeito de direito e demanda no terreno da comunicação pública, e o exercício desse direito”. Se considerarmos que, na atualidade, muito mais do que instituições ou tecnologias, as mídias constituem o ambiente em que vivemos (como propõem Silverstone 2007 e Appadurai 2005, entre outros), podemos deduzir o quanto importantes são os direitos que garantam a participação nesse “ambiente midiático” e a necessidade, proposta por Mata, de que esses direitos desenvolvam categorias analíticas que deem conta de tais relações emergentes. O desenvolvimento tecnológico que, junto a outros fatores, constituiu as condições materiais do atual ambiente midiático em que vivemos, também exige que se criem direitos capazes de garantir ampla participação nos processos comunicativos. Na medida em que as mídias proporcionam visibilidade, elas tornam aquilo que veiculam público no sentido de que pode ser potencialmente acessado por um grande número de pessoas; entretanto, como coloca Deane (2008), a maioria dos veículos comerciais não pode ser considerado público na acepção habermasiana, uma vez que são empresas privadas com fins lucrativos com pouco ou nenhum interesse pelas questões de interesse público. De fato, os mesmo interesses políticos e econômicos de grupos dominantes que se fizeram valer nos meios de comunicação anteriores à internet se transferem às mídias digitais, como notam Hindman (2008) e Morozov (2012). No caso específico do Brasil, a recente discussão acerca da neutralidade de rede, privacidade e regulamentação do armazenamento de dados envolvendo grupos da sociedade civil, políticos e empresas de telecomunicações, que culminou na assinatura do Marco Civil da Internet6 pela presidenta Dilma Rouseff em 23 de abril de 2014 demonstra a relevância das dimensões social, política e econômica para que a internet realmente se constitua numa mídia instrumentalizadora da participação política e da diversidade7.

A partir desse breve e simplificado mapeamento conceitual, argumenta-se que a noção de participação está intrinsicamente ligada ao direito à comunicação, porquanto entende-se que, através de diversas formas de ação comunicativa, seria possível participar em processos democráticos em várias escalas. Entretanto, dizer que participação está ligada ao direito de comunicação não significa afirmar que a possibilidade de comunicar se constitua automaticamente em participação, como lembra Carpentier (2012). O autor chama atenção para a relação entre participação e poder enfatizando que a participação não está localizada apenas no macro-nível das políticas públicas mas também no nível de relações locais de poder. Esse conflito entre as potencialidades da comunicação e o exercício de fato do ato de comunicar (ou da ação comunicativa) constitui o cerne da análise das iniciativas concretas de comunicação participativa, popular ou comunitária. No que diz respeito ao exercício da ação comunicativa e da participação cidadã através de diferentes meios de comunicação, há que se levar em consideração os possíveis conflitos econômicos, políticos e sociais que estruturam o agir comunicativo.

 

O rádio como mídia educomunicativa

Muito antes de que questões relacionadas à participação e cidadania fossem discutidas em conexão com as novas mídias digitais, o uso do rádio como meio de participação popular e instrumento para o exercício da cidadania tem sido objeto de diversas análises. Gumucio-Dagron (2005), por exemplo, relata a experiência de rádios de mineradores na Bolívia na década de 80; Nassanga, Manyozo e Lopes (2012) analisam a relação entre o jornalistas em rádios comunitárias e as novas tecnologias de comunicação em Moçambique, Uganda e Mali; Gustafsson (2012) discute como rádios comunitárias nas favelas de Nairobi ajudam a dar voz aos problemas sociais desses locais; e Bordenave (1977) analisou os programa educacional Movimento Educacional de Base, para citar alguns estudos sobre o rádio como mídia participativa e sua utilização como arena para o exercício do direito à comunicação.

Para que se possa explicar o êxito e a popularidade do rádio como meio de comunicação popular e a sua utilização em projetos educacionais é necessário entender, como enfatiza Williams (2003), os processos sociais em que as práticas relacionadas à mídia emergem. Em seu argumento, Williams defende que não se deve abstrair as tecnologias da sociedade em que elas são criadas, pois tecnologias são desenvolvidas com certos propósitos e práticas em mente, que, por sua vez, respondem a necessidades sociais (ibid, p.7). Nesse sentido, o uso do rádio como meio de comunicação popular, comunitário ou alternativo e em projetos de educação se insere em um tecido sociocultural no qual predomina a oralidade e num projeto de educação dialógico. Em tal contexto, o rádio, com seu modo de transmissão baseado no discurso oral, na transmissão imediata e no contato com o ouvinte, atende às necessidades sociais de comunidades rurais. A esses fatores se somam os baixos custos e a facilidade de produção da rádio comunitária em relação a meios de comunicação impressos e audiovisuais.

Dentro do MST, o rádio emerge como meio de comunicação midiática atendendo, em princípio, às necessidades de comunicação dentro de acampamentos, como aconteceu, no Brasil, na primeira ocupação do movimento, a Fazenda Anoni, no Estado do Rio Grande do Sul, em meados da década de 80. Alguns acampamentos compostos por mais de mil famílias8 distantes umas das outras necessitavam construir uma estrutura que facilitasse a comunicação entre elas, fortalecendo, assim, o movimento como um coletivo. Desse modo, com o desenvolvimento das propostas sociais e princípios do MST, a comunicação radiofônica se estabeleceu como uma forma de sociabilidade no movimento. As práticas relacionadas ao rádio passam, assim, a obedecer aos princípios de informação e formação que permeiam a comunicação no movimento.

As potencialidades (como em affordances, termo utilizado por Williams mas cunhado pelo psicólogo James J. Gibson ,1986) do rádio permitiram tanto a participação na mídia como através da mídia (Carpentier 2007). As rádios comunitárias ou administradas pela igreja começaram a ceder espaço para que o movimento transmitisse programas caracterizando a participação através da mídia. Em paralelo, em alguns acampamentos e assentamentos se consegue montar uma rádio sobre a qual os acampados e assentados tinham total controle, caracterizando a participação na mídia.

A sistematização do rádio nos processos comunicativos do movimento resultou na realização de várias oficinas de produção radiofônica e de um curso profissionalizante de nível secundário buscando qualificar militantes para a atuação em rádios. Além da formação técnica, o currículo do programa abordava questões pertinentes à indústria cultural e a relação entre a mídia e a participação política9. Esses princípios denotam uma visão holística de educação para além dos bancos escolares e conteúdos programáticos, alinhada ao paradigma freireano de conscientização, ou seja da busca do entendimento da história como luta de classes e da sua própria posição nesse conflito. Além disso, como coloca Harnecker (2002), o movimento entende a luta social como um espaço educativo; dentro desse espaço busca-se a construção de veículos de comunicação próprios onde militantes possam agir como protagonistas da sua representação midiática.

 

Metodologias e materiais

O material analisado aqui é parte de um projeto de pesquisa em andamento que se propõe a analisar as práticas midiáticas e processos comunicativos no MST em seu papel contra-hegemônico, a partir das vivências de militantes do movimento. O projeto é um estudo de caso de inspiração etnográfica fazendo o que epistemologicamente se pode classificar como etnografia midiática (media ethnography, cf. Radway, 1991). A orientação metodológica foca então nas experiências, expectativas, opiniões e avaliações dos informantes em relação às suas práticas midiáticas enquanto militantes do movimento. A pesquisa da qual o material utilizado nesse artigo faz parte é guiada por questões que buscam compreender os processos comunicativos sob três eixos – construção e manutenção de símbolos, significados e narrativas, materialidade e racionalização das práticas midiáticas e, por fim, como o movimento dialoga com a sociedade sob uma perspectiva contra-hegemônica.

A primeira fase do estudo de caso foi realizada entre julho e setembro de 2013. Durante esse período foram feitas visitas a três assentamentos, a um acampamento do MST, a uma escola do movimento e a assessorias de imprensa do MST, em Brasília e São Paulo. A atividade de comunicação é o elemento norteador na seleção de informantes e locais para visitas. Dos cinco locais visitados (três assentamentos, um acampamento e uma escola), dois possuem uma estação de rádio, e, na escola, funciona uma rádio interna mantida e operada pelos educandos.

Nesse artigo, analisamos um recorte de cinco entrevistas de um total de 22, realizadas em três assentamentos (Fazenda Pirituba - Itapeva-SP, Conquista da Fronteira - Hulha Negra-RS e Ernesto “Che” Guevara, em Wenceslau Guimarães -BA) e em uma escola do movimento (Instituto de Educação Josué de Castro, IEJC em Veranópolis -RS). As entrevistas foram feitas durante as visitas a esses locais e seguem um modelo dialógico (Flick, 2009) baseado nos conceitos que guiam a pesquisa. Dessa forma as entrevistas se adequam à vivência e à atividade de cada informante. Por exemplo, certas perguntas que são relevantes e específicas para a realidade de uma comunicador das rádios de assentamentos podem não ter a mesma relevância para assessoras de imprensa, e vice-versa. Por isso, optou-se por basear as entrevistas em torno de conceitos como racionalizações, identidade, imagem, potencial contra-hegemônico, potencial de contra-dominância através da mídia.

As entrevistas tem entre 45 e 117 minutos de duração e foram realizadas nos locais de trabalho e/ou residência dos informantes – rádios, sede dos assentamentos e escola. Os entrevistados e entrevistadas são um ex-assessor de imprensa e hoje coordenador pedagógico do IEJC, dois comunicadores e uma comunicadora da Rádio Camponesa de Itapeva e um comunicador da Rádio Terra Livre de Hulha Negra. De acordo com normas éticas da universidade em que essa pesquisa é realizada, os informantes assinaram um termo de consentimento para a gravação e utilização da entrevista na tese de doutorado e em artigos científicos. As entrevistas foram posteriormente transcritas, e, quando houve possibilidade, enviadas aos respectivos informantes para eventuais comentários. Seguindo a operacionalização do projeto de pesquisa, as transcrições foram codificadas de acordo com os conceitos trabalhados nas entrevistas e descritos acima.

 

Entendendo as relações entre rádio, sociabilidades, cidadania e participação

O estabelecimento de rádios do MST por si só já se constitui num processo coletivo de debate e negociação em que a comunidade decide os termos de funcionamento da rádio. Nos dois assentamentos visitados onde havia uma rádio funcionando, a programação é mantida por militantes que contribuem na rádio algumas horas por dia. Fisicamente, a rádio também funciona como um espaço de comunicação, pois há um fluxo constante de pessoas, que vão de visitantes informais que pedem uma música ou dão um recado a entrevistados nos diversos programas. Dessa forma, as rádios são uma materialização do direito à comunicação conforme a definição de Peruzzo (2011) e discutido em seções anteriores desse artigo. A partir das entrevistas pode-se notar que, cientes de suas necessidades e das dinâmicas sociais presentes num grupo de famílias de sem-terra, os militantes consideram o rádio como o veículo ideal para suprir tais necessidades. Essa avaliação acontece de forma orgânica, seguindo os processos de socialização em curso na comunidade local e no movimento. Diferente de programas de desenvolvimento de mídia em que o rádio é imposto a um determinado grupo ou comunidade como melhor opção para suas necessidades comunicacionais10, dentro do MST o rádio se insere organicamente como uma forma de potencializar processos comunicativos já existentes.

Na fala de um dos militantes que participou da criação da rádio Camponesa, no assentamento Fazenda Pirituba, pode-se notar como o rádio se insere nos processos comunicativos do movimento:

Um passo muito importante do MST foi criar, através de outros mecanismos que tinha, um boletim, um informativo. Divulgar através de um meio de comunicação os boletins né, tinha algumas, no período... até rádio comercial que cedia espaço pro MST falar... e o coletivo então foi entendendo essa importância de quem sabe aqui na região criar [uma rádio]... Então nós começamos aqui na região a ver a possibilidade de criar uma rádio comunitária.

Esse mesmo raciocínio se repete na fala de outro comunicador, este da rádio Terra Livre, no Rio Grande do Sul:

[...] a nossa rádio nasceu da necessidade, na época, quando os companheiros foram assentados, isso aí há mais de 20 anos aqui na nossa região, ... era uma região só de fazendeiros aqui nessa volta... o primeiro assentamento saiu em Nova Esperança, depois Santa Elmira e assim por diante e quando o nosso povo queria se organizar tinha assim [...] reuniões pra fazer alguns encaminhamentos na época aí, ou precisava de médico, ou remédio ou coisa parecida. Aí como aqui são muitas famílias, na época aí longe, também é ruim a comunicação, não tinha nem telefone na época, a partir daí então surgiu a necessidade de nós montar uma rádio e a partir daí foi montada essa rádio.

E por fim, um ex-assessor de imprensa e hoje coordenador pedagógico em uma das escolas do movimento explica como a rádio emerge da necessidade de comunicação dos assentados mas também tece a trama social que os une num coletivo:

Pra mim é o exemplo clássico de qual é a função de uma rádio no movimento, nós temos aqui no Rio Grande do Sul a região de Hulha Negra, tem em torno de 1000 famílias assentadas, é uma região que historicamente pertenceu ao latifúndio. Então você tinha numa região de milhares de quilômetros quadrados, sem exagero, sei lá, 100 casas. Você tinha a casa do patrão, do fazendeiro, a casinha ali do peão e o resto era campo pra gado. E aí no lugar dessas 100 casas hoje você tem 1000 casas, você tem 1000 famílias e você tem 1000 famílias que exigem 1000 geladeiras, 1000 televisões, só que você não tem poste elétrico pra isso. E o que é o caso típico de Hulha Negra, mas que é de vários assentamentos, você tem estradas absolutamente precárias. O que que essas famílias perceberam 15 anos atrás, que elas precisavam ter uma rádio do movimento lá, pra se comunicar, porque elas eram 1000 famílias espalhadas em vários assentamentos, 10 assentamentos distantes. [...]Então a rádio ela é fundamental praquela comunidade de 1000 famílias existir. Ela serve tanto pra dar o aviso da assembleia de Deus, da Igreja Católica, do time de futebol, da festa da comunidade, da festa de debutante como pras notícias do MST.

Dessa forma, as rádios respondem não apenas a demandas específicas do movimento por espaços de comunicação entre militantes mas também a necessidades das comunidades rurais. As comunidades em que as rádios estão inseridas não são constituídas apenas por assentamentos do MST, incluindo famílias de pequenos agricultores e periferias das cidades. Nesse contexto as rádios funcionam como um serviço público de informação para essas comunidades, como se constata no trecho de entrevistas abaixo:

A nossa rádio é o seguinte, ela... hoje se tu for... se nós ficar, uma hipótese, se nós ficar três dias fora do ar a nossa comunidade fica perdida porque aqui é falado, tal dia vai ter entrega de ração, tal hora vai sair o caminhão do leite ou deu problema, quebrou o caminhão do leite, vai sair atrasado, ou o mercado vai tá fechado. Se chega a acontecer tudo isso aí nesses dias que nós estamos fechados aqui, a comunidade fica perdida.

Os processo de criação e subsequente manutenção das rádios comunitárias pode ser considerado uma forma de agir comunicativo. O trecho abaixo ilustra a importância que se dá para a participação da comunidade na mídia (cf. Carpentier 2007):

A gente sempre prioriza primeiro iniciar um debate antes de implementar, antes de chegar com o equipamento, antes de montar o equipamento ou antes de montar o equipamento e “vamo montar”... A gente sempre inicia com um debate com a direção regional pra que tenho um entendimento do que é o rádio, para que, para quem, que é uma frase bastante utilizada e no rádio a gente utiliza bastante isso e depois a gente vai para o debate com as comunidades pra comunidade se sentir parte da rádio porque se a direção instala uma rádio e a comunidade não se sente parte a gente acaba tendo dificuldades depois, fica um ou outro trabalhando com isso.

Se entendermos, com Peruzzo (2011) e Deane (2005), o direito à comunicação como o direito a participar do processo de comunicação em sua totalidade (receber mensagens, emiti-las e ser ouvido pelo receptor), podemos dizer que o processo de estabelecimento das rádios se constitui uma aproximação ao exercício desses direitos. Na medida em que a rádio se torna um meio de comunicação construído pela e para a comunidade, o processo de construção é uma aprendizagem do exercício do fazer comunicativo e da cidadania comunicativa. Essa aprendizagem pode levar a um exercício mais profundo da cidadania comunicativa, fazendo com que os envolvidos no processo adotem posturas de demanda em escalas mais amplas. Entretanto, não é possível considerar o processo de estabelecimento da rádio como único causador do desenvolvimento da cidadania comunicativa. Nem tão pouco se pode dizer que o estabelecimento de rádios pelo movimento se configura no pleno exercício do direito à comunicação, ideia que será desenvolvida na seção seguinte.

 

Direito à comunicação e à representação

Estruturalmente limitados pelo sistema da mídia hegemônica, com instituições sob o controle de seus antagonistas políticos, militantes do movimento exercitam efetivamente sua agência no momento em que resistem às limitações estruturais impostas e constroem coletivamente seus canais e espaços de comunicação e sociabilidade. O estabelecimento das rádios parte do reconhecimento a priori de que camponeses e camponesas militantes do movimento não gozam do direito à comunicação, necessitando assim agir para que esse direito seja reconhecido. Esse reconhecimento, como ressaltam os informantes, é parte do processo de conscientização da militância, evidente na fala de um dos coordenadores da Rádio Camponesa em Itapeva, SP:

A gente sempre inicia com um debate com a direção regional pra que tenha um entendimento do que é o rádio, para que, para quem que é uma frase bastante utilizada e no rádio a gente utiliza bastante isso e depois a gente vai para o debate com as comunidades pra comunidade se sentir parte da rádio porque se a direção instala uma rádio e a comunidade não se sente parte a gente acaba tendo dificuldades depois, fica um ou outro trabalhando com isso.

Pode-se notar que as práticas associadas ao rádio tornam essa mídia uma arena para o exercício do direito à comunicação onde militantes tem a possibilidade de atuar como emissores e produtores de mensagens, contribuindo assim para a construção coletiva da identidade do movimento e de seus membros. Por parte dos militantes e do movimento enquanto sujeito coletivo acontece o que se pode chamar de apropriação do rádio enquanto formato cultural (cf. Williams 1980). O termo apropriação é adequado nesse contexto porque denota a agência dos militantes em adaptar o veículo às suas necessidades. Tal agência é institucionalizada no movimento quando se criam cursos que se constituem em espaços de formação e discussão.

A presença física da estação de rádio contribui para a proximidade entre produtor e público de tal forma que as duas funções possam ser exercidas concomitantemente. Para além do fortalecimento da coletividade e construção de símbolos e narrativas comuns, há a expectativa de que a agência que emerge através desses processos comunicativos extrapole para o âmbito da mobilização política. Essa reflexividade e relação entre a teoria e a prática militante se revela na fala de um dos coordenadores do curso técnico em comunicação oferecido pelo Instituto de Educação Josué de Castro

Antes do curso de comunicação, da turma um, que isso é 2002 né, final de 2002, antes da turma um houve várias oficinas de rádio principalmente. A gente chamava oficinas de comunicação e cultura porque eram junto com o coletivo de cultura. Então fazia discussões políticas em determinado momento, fazia as oficinas práticas separados... Mas nós percebemos que elas não eram suficientes, então você precisava dum tempo maior pra... uma coisa é você fazer uma oficina de rádio comunitária de uma semana, você sai mexendo no equipamento, outra coisa é você debater a natureza da rádio, que foram as coisas que o curso começou a trazer, por exemplo: as rádios do MST devem tocar as músicas da indústria cultural?

Ao mesmo tempo, os efeitos das pressões estruturais são sentidos pelo movimento, que enfrenta dificuldades em manter as rádios funcionando. No estado do Rio Grande do Sul, por exemplo das dez rádios atuantes na década de 1990, hoje existe apenas uma e no estado de São Paulo, de um projeto inicial para a criação de quatro rádios, apenas uma foi criada. Durante o trabalho de campo, foram canceladas visitas a duas rádios: uma, no estado de Santa Catarina, devido a um incêndio; e outra, no estado do Paraná, porque ela havia sido temporariamente fechada, (visitas a duas rádios nos estados de Santa Catarina e Paraná foram canceladas em razão de um incêndio em uma delas, em Santa Catarina, e fechamento temporário da rádio no estado do Paraná).

As pressões estruturais incluem a proibitiva legislação brasileira, que limita em um quilômetro o raio de transmissão de uma rádio comunitária, e a falta de recursos materiais e humanos. De acordo com a Lei 9.612 de 1998, que estabelece o direito à criação de rádios comunitárias, e com o decreto 2.615 do mesmo ano, que regulamenta a radiodifusão comunitária, essas estações devem operar em frequência modulada (FM), baixa potência (25 Watts) e baixa cobertura, não ultrapassando 1 quilômetro de raio da antena transmissora11. Ainda de acordo com a legislação, as rádios comunitárias devem manter uma programação de no mínimo oito horas diárias. Tais imposições legais, em vez de facilitar e incentivar a implementação de rádios nas zonas rurais, representam um empecilho a ser contornado, como é ilustrado nos seguintes trechos de entrevistas com um comunicador e uma comunicadora da rádio Camponesa, localizada no município de Itapeva, estado de São Paulo:

A gente tinha o planejamento de quatro rádios. Das quatro a gente conseguiu implantar somente uma, mas com a dificuldade que não tem a outorga que é o documento de liberação do ministério para o funcionamento. Então o equipamento tá parado, a gente conseguiu fazer todo o processo de oficina, a gente fez uma oficina em nível estadual com pessoas das outras regiões também onde iam ser montadas as rádios e também pensando em aumentar o coletivo e essa rádio não teve essa continuidade devido a esse pequeno problema. As outras rádios a gente tem algumas peculiaridades, por exemplo em Ribeirão Preto a gente tem a outorga só que não tem os equipamentos, que é uma outra coisa né. Então já se iniciou um processo de debate por lá, com a direção principalmente, mas a gente queria ter os equipamentos pra começar o diálogo com a comunidade. Por que daí o diálogo com a comunidade a ideia é que não seja tão demorado. Vai ser tipo de uma semana e aí a gente começa já a implementar pra aproveitar aquele gás né. Então em Ribeirão Preto tem a outorga e não tem o equipamento e em Promissão a gente tem o equipamento só que a gente tem dificuldade de conseguir fazer o debate político. Então não tem pessoas que ajudam a coordenar isso, que a gente sempre prioriza pra isso, que tenha um responsável pelo setor para conduzir. E a região tá um pouco defasada, então a gente não tá conseguindo muito. E na região do Pontal do Paranapanema existe a ideia que a região do Pontal do Paranapanema e Promissão já tiveram rádios, rádios camponesas e o do Pontal a gente tem a ideia só que não tem nada, não tem nem equipamento e nem a liberação. Então a gente precisa iniciar um debate lá, que a gente também não teve tempo também diante da conjuntura desses últimos tempos de fazer esse processo.

No trecho acima, o comunicador e coordenador da rádio enumera os vários fatores necessários para o estabelecimento de uma rádio e como esses fatores se configuram em limitações. A reflexão demonstra um profundo entendimento sobre o processo de construção de um veículo de comunicação comunitária, processo no qual os militantes do movimento exercem o papel de sujeitos de demanda (Mata 2006).

Outra comunicadora da mesma rádio, explica as dificuldades em manter programas informativos e jornalísticos (além da programação musical da rádio):

pelas dificuldades da militância nossa porque nós não estamos tendo militantes que fiquem ativos aqui e a gente precisava ter, a gente precisava se organizar melhor e ter alguém que ficasse específico pra tomar conta desse informativo. E informativo você sabe, não é uma coisa que é só soltar no ar e pronto, você tem que ter todo aquele momento de preparação, então as vezes por causa da correria, da nossa militância a gente fica meio, sai um pouco desse foco, mas ele existe sim.

Novamente se nota a existência de um processo de reflexão e entendimento das necessidades do movimento e de como o rádio enquanto tecnologia de comunicação pode ser apropriado para atender a essas necessidades.

Por fim, um dos coordenadores do curso técnico em comunicação na escola do movimento e também ex-assessor de imprensa reflete sobre as limitações estruturais da comunicação comunitária no movimento em particular e no país de um modo geral:

o que o movimento coloca, para alguns setores do campo da democratização da comunicação, é que nós entendemos que não basta medidas paliativas pra comunicação no Brasil, o que nós precisamos são de reformas estruturais mais profundas em relação à comunicação. Então não adianta por exemplo, que é uma crítica que nós fazemos... veja... aumentar o espectro de alcance das rádios comunitárias, nós somos favoráveis, principalmente no campo, essa média de um quilômetro, no campo ela é ridícula, é a distância de um vizinho pro outro. Muito bem... mas nós não podemos nos dar por contentes só com isso, nós não podemos aceitar que exista uma rede Globo e exista a rádio do Zé que tem o alcance de mais de um quilômetro, quer dizer, são condições desparelhas... É isso que nós queremos... nós achamos que não basta que a rádio comunitária do Zé tenha mais alcance, nós queremos discutir o sistema de comunicação no Brasil, queremos discutir o monopólio, queremos discutir a concentração.

Assim, mesmo que possibilitem o exercício da agência comunicativa e se constituam em espaços de formação e conscientização da militância, estas rádios raramente conseguem se constituir numa alternativa de comunicação contra-hegemônica. Tal limitação é reconhecida pelos informantes que entendem a rádio comunitária ligada a um movimento social do campo como um canal para auto-representação, formação e serviço público de informação que é limitado por fatores estruturais como a restritiva legislação de radiodifusão brasileira, e conjunturais como a escassez de recursos.

Extrapolando para uma escala maior, pode-se dizer que essa mesma assimetria de poder entre grandes corporações e grupos comunitários e movimentos sociais que se percebe no setor de radiodifusão se dá também na internet. Por outro lado, a análise da situação das rádios do MST nos permite entender que democracia, cidadania comunicativa e participação política são processos sociais em que a apropriação de tecnologias é um elemento constituinte e não determinante. Ou seja, uma tecnologia não é por si só democrática ou participatória, ela pode adquirir essas características dependendo dos processos sociais em que estiver inserida.

 

Considerações finais

Esse artigo objetiva contribuir para o debate em torno da comunicação como direito humano, a operacionalização e exercício desse direito e a sua intersecção com o exercício da cidadania e com a educação, partindo das vivências de comunicadores e comunicadoras de rádios do MST. O estudo empírico permitiu um entendimento sobre a materialização do direito à comunicação e cidadania comunicativa através das experiências de militantes do maior movimento social do Brasil e um dos maiores da América Latina. As experiências de comunicadores e comunicadoras no Movimento Sem Terra foram analisadas a partir dos conceitos de práticas relacionadas à mídia (Couldry 2012), direito à comunicação (Peruzzo 2011) e cidadania comunicativa (Mata 2005). A análise indica que as rádios apresentam características plurais que se desenvolvem de acordo com processos de mobilização política e particularidades de cada região e da militância local com um viés comum que é o de se constituir num espaço para o exercício do direito à comunicação através da participação na mídia e da valorização das manifestações culturais populares. O estabelecimento das rádios em assentamentos e escolas se constitui num processo de apropriação da mídia pelos militantes. A apropriação vai além do simples uso pois engloba processos de reflexão e discussão coletiva para que determinada forma de comunicação se insira nos princípios do movimento e atenda às suas necessidades. A apropriação está intimamente ligada ao conceito de affordance - ou seja, às potencialidades de uma determinada tecnologia que serão utilizadas de acordo com fatores externos a ela (nesse caso a dinâmica e as necessidades do movimento enquanto sujeito coletivo e da comunidade formada por assentados ou por educandos, no caso da escola).

Nota-se, também, um metaprocesso em que o direito à comunicação se transforma em conhecimento que, por sua vez, é transmitido e praticado no sistema de educação constituído pelo movimento, como mostra o exemplo da rádio interna na escola do MST. A operacionalização do direito à comunicação como conhecimento construído pelo movimento e posto em circulação se configura em um estágio inicial do exercício da cidadania comunicativa como definida por Mata (2006). As rádios do movimento se estabelecem então como uma arena de aprendizagem, conscientização e expressão com um potencial para extrapolar os limites simbólicos do movimento.

Além de servir como catalisador para discussão e formação, as rádios, quando de fato estabelecidas, passam a funcionar como um veículo de diálogo com a comunidade local que recebe seu sinal. Entretanto, o relativo sucesso dessas rádios em estabelecer uma mediação (cf. Couldry 2010) entre o movimento e a comunidade local (que, muitas vezes, também encontra na rádio elementos que não são oferecidos por outros veículos, como informações relevantes à sua vida diária e música local), não pode obscurecer os conflitos e dificuldades enfrentadas em estabelecer demandas políticas através das rádios.

Os esforços empregados pelo MST no estabelecimento e manutenção das rádios comunitárias e na capacitação de seus quadros para a atuação nesses veículos ressaltam o importante papel das mídias consideradas antigas – e do rádio em particular - para comunidades rurais. Mais do que isso, o processo de apropriação do rádio como mídia comunitária e participatória pelo MST nos leva a problematizar posições tecnodeterministas que atribuem características democráticas às mídias digitais.

 

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NOTAS

1 A autora agradece a contribuição da Prof. Dra. Rosane Rosa - Universidade Federal de Santa Maria, Brasil durante o processo de pesquisa e produção desse artigo.

2 Trabalho de campo foi realizado com bolsa de pesquisa da Fundação Memorial Lars Hierta - Suécia.

3 Como por exemplo o rádio-teatro.

4 O MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é hoje o maior movimento social do Brasil, com cerca de 1,5 milhão de membros. O movimento foi fundado em 1984 para promover redistribuição de terras e representar trabalhadores rurais em uma série de demandas incluindo educação, saúde, cultura e infra-estrutura.

5 Jenkins (2006) acredita que a convergência representa uma mudança na maneira como pensamos nossas relações com a mídia, que se manifesta primeiramente nas relações com a cultura popular, mas que tem implicações em como aprendemos, trabalhamos e participamos em processos políticos. Castells (2009:55) afirma que a articulação de todas as formas de comunicação num hipertexto digital composto e interativo implica em “consideráveis consequências para a organização social e mudança cultural”. Tufekci e Wilson (2012) demonstram em estudo que redes sociais em geral e o facebook em particular foram cruciais na formação de decisões individuais quanto à participação em protestos, logística de protestos e possibilidade de sucesso das manifestações que ocorreram no Egito em 2011.

6 O Projeto de Lei 2.126/11 popularmente conhecido como Marco Civil da Internet ”estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil”, o texto do projeto pode ser acessado em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1238705.

7 Para uma discussão mais aprofundada sobre o desenvolvimento das políticas de comunicação no Brasil ver Cabral Filho e Costa (2014).

8 Como, por exemplo, os assentamentos na região de Hulha Negra, Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai.

9 Entrevista concedida à autora por Miguél Stédile, membro do grupo de educadores do Curso Técnico em Comunicação oferecido pelo Instituto de Educação Josué de Castro, em Veranópolis, Rio Grande do Sul.

10 Um exemplo é o projeto RadioActive 101 desenvolvido pela União Européia (http://pt.radioactive101.eu) que tem como objetivo ”promover inclusão, aprendizagem informal, empregabilidade e cidadania ativa de uma maneira original e excitante”. De acordo com as categorias propostas por Mata (2006), nesse esse projeto vê o cidadão como sujeito de necessidades e não como sujeito de demandas.

11 Para um apanhado geral sobre os dispositivos legais que criam e regulamentam a radiodifusão comunitária no Brasil consulte o site da Abraço (Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária). As informações citadas nesse artigo foram obtidas em http://www.abraconacional.org/as-perguntas-e-respostas-mais-frequentes-sobre-radio-comunitaria/, acessado em 2/07/2014.

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