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Observatorio (OBS*)

versão On-line ISSN 1646-5954

OBS* vol.9 no.1 Lisboa jan. 2015

 

Onde está o Wally? (In)visibilidades sobre mulheres e política nas práticas de receção jornalística

Where’s Wally? (In)visibilities about women and politics in journalistic reception practices

 

Anabela Santos*, Rosa Cabecinhas**, Carla Cerqueira**

* Bolseira de investigação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057, Braga. (amsantos86@gmail.com)

** Professora Associada Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057, Braga. (cabecinhas@ics.uminho.pt)

*** Investigadora de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057, Braga. (carlaprec3@gmail.com

 

RESUMO

Este artigo analisa o modo como os públicos jovens compreendem, interpretam e se posicionam em relação às representações mediáticas de mulheres que desempenham cargos políticos.

Com base na análise do material que resultou da realização de grupos focais, este artigo mostra que a existência de assimetrias de género nos média informativos não é considerada pelos públicos (jovens) como uma questão relevante. A maioria das/os participantes adotou posicionamentos tranquilizadores relativamente à representação qualitativa de mulheres que exercem cargos políticos, tendo revelado a falta de consciência crítica sobre as consequências da manutenção de relações de poder desiguais no contexto mediático. Além disso, procurando explicar as causas subjacentes aos paradigmas representacionais identificados, as/os participantes raramente questionaram os fatores económicos, socioculturais e políticos que influem na produção noticiosa.  

Enformado por uma perspetiva feminista, este estudo sublinha, assim, a necessidade de promover a literacia crítica mediática juntos dos públicos com vista à desconstrução de assunções de género hegemónicas, bem como de se refletir sobre os eventuais impactos das representações mediáticas ao nível da (re)configuração do espaço político/público.

Palavras-chave: estudos de receção, mulheres e política, representações mediáticas, estudos feministas dos média.

 

ABSTRACT

This paper examines the way in which young audiences understand, interpret and position themselves in relation to media representations of women politicians.

Based on the analysis of focus group data, this paper shows that the existence of gender asymmetries in the news media is not considered by (young) audiences as a relevant issue. Most participants adopted reassuring attitudes towards qualitative representation of women politicians, having shown a lack of critical awareness about the consequences of the maintenance of unequal power relations in the media context. Moreover, in an attempt to explain the causes of the representational paradigms identified, participants rarely questioned the economic, socio-cultural and political factors that exert influence on the news production.

Informed by a feminist perspective, this study therefore asserts the ned to promote critical media literacy projects to deconstruct hegemonic gender assumptions, as well as to reflect about the impact of the media representations on the (re)configuration of the political/public sphere.

Keywords: reception studies, women and politics, media representations, feminist media studies.

 

1. Introdução

No âmbito dos Estudos Feministas dos Média, as práticas de receção têm constituído um importante objeto de reflexão crítica (Watkins & Emerson, 2000:156; Byerly & Ross, 2006:56), a par da análise das representações de género (Ross, 2010; Silveirinha, 2004) e do papel das/os profissionais dos média na perpetuação de assimetrias sociais (Mendes & Carter, 2008:1701).

Desde a década de 1980, a investigação feminista tem procurado estudar a receção de conteúdos veiculados por diferentes média, tais como a televisão (Ross, 1995; Kim, 2006; Ferin-Cunha, 2007; Lobo & Cabecinhas, 2010) e as revistas femininas (Winship, 1987; Mota-Ribeiro, 2010). Recentemente, os videojogos (Walkerdine, 2006), as novas tecnologias móveis e a Internet (Kim, 2007; Cerqueira, Ribeiro & Cabecinhas, 2009) têm emergido como novos campos de análise.

Embora se encontrem em crescente afirmação nas academias ocidentais (Watkins & Emerson, 2000:156), os estudos de receção têm dedicado uma atenção reduzida ao modo como os públicos negoceiam e se apropriam dos conteúdos noticiosos, descurando o papel importante que os média informativos (impressos) adquirem na (re)construção de significados e na manutenção da ideologia (tradicional) de género (van Zoonen, 1994:125).

Reconhecendo a margem de autonomia e independência dos indivíduos em relação às mensagens mediáticas (Hall, 1980; Van Dijk, 2005), propõe-se neste estudo analisar as práticas de receção de conteúdos veiculados por newsmagazines portuguesas. Em particular, pretende-se explorar o modo como os públicos jovens compreendem, interpretam e se posicionam em relação às representações de mulheres que exercem cargos políticos, auscultando a influência das suas concetualizações de género na produção discursiva. Neste sentido, realizou-se uma sequência de onze grupos focais com 101 estudantes universitárias/os, cujos dados textuais e respetivas inscrições ideológicas foram problematizados no quadro da Análise Temática (Braun & Clarke, 2006) a partir de uma perspetiva feminista.

Ao longo das últimas décadas, os média informativos têm constituído uma arena privilegiada para a (re)configuração do espaço político e a mediação da relação da classe política com o eleitorado (Croteau, Hoynes & Milan, 2012:221). Embora diferentes tipos de média produzam efeitos distintos, inúmeros estudos mostram que a imprensa está mais fortemente relacionada com a aquisição e a retenção da informação política (Ross, 2003:108). Em particular, abordando preferencialmente os apelidados “hard issues” (Cardoso, 2009:4342), as newsmagazines encerram um papel crucial na edificação dos modelos cognitivos e na formação de opinião pública sobre assuntos políticos (Neuman, Just & Crigler, 1992:78). Além disso, mediando “quem” adquire importância, “como” se expressa e representa publicamente, e “o que” é aceite, naturalizado ou contestado, este tipo de medium colabora na (re)construção dos lugares de expressão pública e intercâmbio imaterial, podendo influir no exercício da cidadania e na configuração das relações de género no campo político.

Em Portugal, a proibição da discriminação com base no sexo (na esfera política) ficou consagrada, em 1976, no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. Mais tarde, impulsionado pela ratificação da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW)1, em 1980, o Estado Português reconheceu na IV revisão constitucional de 1997 a importância das medidas de ação positiva como uma resposta sociopolítica à prevalência de desigualdades de género em diferentes áreas de atividade humana. A introdução deste tipo de medidas no campo político aconteceu com a adoção da Lei da Paridade (Lei Orgânica nº. 3/2006)2, em 2006, a qual se refletiu numa maior visibilização das mulheres que já integravam os aparelhos partidários, especialmente no caso dos partidos de direita (Santos & Amâncio, 2012:87).

Não obstante o aumento da participação política das mulheres na última década3, a investigação científica tem demostrado que os média (informativos) apoiam uma mediação de género na cobertura de assuntos políticos, que poderá afetar as perceções dos públicos/eleitorado em relação à performance política das mulheres, contribuindo para a reificação da política como um espaço masculino (Ross, Evans, Harrison, Shears & Wadia, 2013:7); a ameaça à manutenção eficiente do sistema democrático (Adcock, 2010:151); e a perpetuação de assimetrias sociais (Gallego, 2009:45).

Deste modo, importa analisar a capacidade de agência dos públicos face às assunções de género veiculadas pelos média informativos, pensar os eventuais impactos das representações mediáticas ao nível da (re)configuração do espaço político/público, bem como ancorar um conjunto de medidas necessárias para potenciar a literacia mediática e o exercício pleno da cidadania (política). O presente estudo erige-se, assim, da necessidade de se estabelecer no âmbito da crítica feminista uma articulação entre os públicos, as mulheres e a política, procurando colmatar a escassez de estudos de receção – quer a nível nacional, quer a nível internacional – que transcendem os “women’s media/genres” e incidem sobre os média informativos (impressos).

 

2. Newsmagazines, género e práticas de receção

Não obstante a maior presença das mulheres nas empresas de comunicação – incluindo nas redações das newsmagazines portuguesas –, vários estudos têm identificado a existência de uma mediação de género nos processos de produção noticiosa (Sreberny-Mohammadi & Ross, 1996; Gidengil & Everitt, 2003a), que tende a consagrar a política como o espaço “natural” dos homens e o de exceção para as mulheres (Ross et al., 2013:7).

À semelhança de outros meios de comunicação social (van Zoonen, 1994; Gallego, 2009; Gill, 2007; Martins, 2013), as newsmagazines sustentam o predomínio da “narrativa do masculino”, fomentando a masculinização da atividade política através da manutenção de um jargão específico, da menor visibilidade das mulheres políticas nos média, da transmissão de representações de género essencialistas, e da genderização dos contextos temáticos.

A imbricação “globalizada” das assunções de género nos média informativos (Ross, 2010:118) pode promover junto dos públicos a apropriação de significados apologéticos de relações de poder desiguais e de assimetrias sociais. Intervindo em consonância com os interesses dos grupos sociais dominantes (Mendes & Carter, 2008:1705), as indústrias mediáticas promovem representações que têm maiores probabilidades de serem aceites e pensadas como “espelhos da realidade” (Carter & Steiner, 2004:20).

Com efeito, os média informativos – como as newsmagazines – possuem um incomensurável poder simbólico e persuasivo, detendo a capacidade de influenciar as cognições sociais dos públicos (Van Dijk, 2005:73) e determinar os limites do conhecimento da realidade social (Ross & Sreberny-Mohammadi, 1997:106). Não encerrando neutralidade – particularmente no que diz respeito às questões de género (Sreberny-Mohammadi & Ross, 1996:112) –, os média influem no modo como os públicos percecionam o universo político, avaliam os acontecimentos e efetuam as suas escolhas eleitorais (Kahn & Goldenberg, 1991:105; Kahn, 1994:154). Uma vez que a maioria dos indivíduos não tem experiência direta com a política, a sua opinião sobre este domínio é significativamente formada a partir dos produtos mediáticos (Kahn, 1994:154; Ross, 2003:97). Os públicos podem, por conseguinte, assimilar os conteúdos veiculados pelos média sem perceberem a influência que estes poderão exercer na modelagem dos acontecimentos (políticos): “o texto e a fala persuasivos passam a não ser vistos como ideológicos, mas como verdades autoevidentes” (Van Dijk, 2005:82).

No entanto, importa sublinhar que os indivíduos não são marionetas ou agentes passivos (Hall, 1980; Kimmel, 2000; Van Dijk, 2005). Corroborando as teorias desenvolvidas a partir da década de 1980 – as quais privilegiam a análise do modo como os públicos usam os média e exploram a sua capacidade de agência (Hall, 1980; Ross, 2003:76) –, sustenta-se que as/os leitoras/es apenas se deixam influenciar pelos conteúdos mediáticos até certa medida (Croteau et al., 2012:22).

Embora as ideologias dominantes tendam a constituir a leitura preferida (Hall, 1980; Van Zoonen, 1994:42; Mendes & Carter, 2008:1705), os públicos podem envolver-se – de forma ativa, autónoma e independente – na utilização dos produtos mediáticos e na (re)construção dos seus significado(s): negociando, contestando e/ou resistindo (Van Dijk, 2005:74). A receção constitui, de resto, uma prática genderizada que pode ser “enabling rather than constracting, empowering rather than oppressive, and active rather than passive” (Watckins & Emerson, 2000:158). Além disso, influindo na (re)configuração das dinâmicas políticas (Hall, 1980:28), os média podem desempenhar um papel muito positivo na manutenção da democracia nas sociedades contemporâneas “by empowering publics to take up their rights to political participation” (Ross, 2003:119).

A variabilidade nas práticas de receção de conteúdos mediáticos – nomeadamente daqueles de âmago político (Ross, 2003:118) – tem relação direta com fatores estruturais, socioculturais e individuais (Croteau et al., 2012:284; van Zoonen, 1994:41), tais como o contexto no qual o/a receptor/a se encontra, o sexo, a idade, o estatuto social e as suas experiências anteriores (Gamson, Croteau, Hoynes & Sasson, 1992; Ross, 2003). Por isso, a realidade construída pelos média pode ser aceite ou refutada, podendo ou não influenciar, de forma determinante, a sua interpretação acerca de determinado acontecimento (Hall, 1980; Gamson et al.,1992:388).

Em suma, concordando com Silveirinha (1998:9), é necessário auscultar o “papel da comunicação na vida política e do espaço em que se trocam os discursos discrepantes dos atores que, em democracia, têm oportunidade de se expressar publicamente”. Por outro lado, importa apurar os mecanismos através dos quais os públicos compreendem as assunções de género imbricadas nos conteúdos sobre figuras políticas. Investigações neste âmbito permitirão destrinçar o papel dos média na constituição de mulheres e homens enquanto sujeitos políticos, interrogando eventuais diferenças, impactos, mudanças e desafios.

 

3. Metodologia

O presente estudo qualitativo foi conduzido durante o mês de outubro de 2012 com o objetivo de analisar as práticas de receção de conteúdos veiculados pelas newsmagazines portuguesas com maior tiragem no contexto nacional (Marktest, 2009): as revistas Visão e Sábado. Em particular, procurou-se explorar as interpretações e os posicionamentos dos públicos (jovens) face às representações mediáticas de mulheres que exercem cargos políticos.

Em termos metodológicos, optou-se pela realização de grupos focais, já que estes comportam inúmeras vantagens para a investigação feminista, constituindo, aliás, um método recorrente no âmbito dos estudos de receção (Mendes & Carter, 2008:1705). No conjunto das suas principais potencialidades, destacam-se a mitigação dos problemas éticos relacionados com o poder exercido pelo/a investigador/a aquando da recolha de dados, e a possibilidade de analisar as co-construções do significado nas práticas de interação social (Wilkinson, 1998).

Nos grupos focais realizados, que decorreram nas instalações da Universidade do Minho, participaram 101 estudantes universitárias/os, dos quais 77 elementos eram do sexo feminino (76,2%) e 24 do sexo masculino (23,8%), com uma média de idades de 20 anos. As/os participantes foram distribuídas/os por onze grupos focais: três grupos com estudantes do sexo feminino, um grupo com elementos do sexo masculino, e sete grupos mistos.

O guião foi desenvolvido de acordo com questões semiestruturadas, previamente elaboradas, que se centraram em dois temas principais: a) usos sociais das newsmagazines (nacionais e estrangeiras); b) perceções acerca das representações de género nas newsmagazines portuguesas.

Numa fase intermédia da prossecução dos grupos focais, foram distribuídas pelas/os participantes como material-estímulo duas reportagens remissivas para questões políticas, a saber: “As rebeldias da protegida de Portas”, publicada na revista Sábado (n.º 372, 16 de junho de 2011), e “Agora é que são elas”, publicada na revista Visão (n.º 957, 7 de julho de 2011). Posteriormente, foi solicitado às/aos participantes que analisassem ambos os trabalhos jornalísticos, tendo em conta as representações de mulheres e homens com intervenção na esfera política/pública.

O material obtido através da realização dos grupos focais foi, num momento subsequente, tratado com recurso ao software NVivo 8.0. Aquando da auscultação do material, a análise temática (Braun & Clarke, 2006) surgiu como a abordagem mais adequada, já que permite “identificar, analisar e relatar padrões (temas) nos dados”, potenciando a compreensão dos significados explícitos e implícitos associados a dados textuais (Guest, Macqueen & Namey, 2012).

Sob a esteira da crítica feminista dos média, o presente estudo contemplou a auscultação dos paradigmas representacionais identificados e as causas que lhes foram atribuídas pelas/os participantes durante os grupos de discussão. A análise destes requereu a constituição de narrativas temáticas que – agregando os temas (in)diretamente relacionados – permitiram interpelar a fluidez, as ambiguidades e as titubeações discursivas, numa recusa do pensamento binário que obsta a compreensão da heterogeneidade das práticas de receção.

Deste modo, recorrendo à analise temática (Braun & Clarke, 2006), a leitura crítica do material inicia-se com a identificação dos paradigmas representacionais, com vista a apurar as interpretações e os posicionamentos das/os participantes, e, num momento posterior, centra-se na explanação das causas atribuídas durante os grupos de discussão.

 

4. Análise e discussão

Nos grupos de discussão4, a maioria das/os participantes reconheceu que as desigualdades de género continuam a existir em Portugal, nomeadamente na esfera política. Contudo, não atribuiu particular relevância à sua dimensão, manifestações e corolários políticos, económicos e socioculturais. Dando ênfase às consecuções verificadas na arena dos direitos das mulheres nas últimas décadas, as/os participantes enformaram as desigualdades de género sobretudo a partir de um prisma otimista e não-problematizante.

“... Acho que agora já não há aquela discriminação mesmo inicial das mulheres não poderem fazer mais nada”. (Rita Mendes, 18 anos)

Quando questionadas/os sobre as causas da manutenção das desigualdades de género na esfera pública/política, as/os participantes apresentaram principalmente aspetos de natureza histórica e sociocultural. Contudo, surgiram ainda discursos que destacaram a possibilidade de as mulheres não possuírem as características necessárias para a intervenção política.

“... Os géneros têm diferenças entre si, então talvez (a capacidade de liderar e a idoneidade para exercer cargos políticos) sejam características mais encontradas em homens do que em mulheres...”. (António Pereira, 25 anos)

Algumas/uns participantes atribuíram a responsabilidade às próprias mulheres, tendo-lhes imputando conivência com práticas de desigualdade exercidas contra si, assim como o desinteresse e o medo em relação à intervenção destas em áreas convencionalmente dominadas por homens. 

“... O problema também já é das mulheres que aceitam e que levam a carga toda dos homens...”. (Luciana Ventura, 35 anos)

 “Eu acho que também antes, como antes eram privadas disso, se calhar agora têm um bocado de medo de arriscar...”. (Leonor Pedrosa, 18 anos)

Enquanto a escassez de mulheres nas esferas de expressão pública foi mormente atribuída às suas atitudes e comportamentos individuais – sem ter em consideração a influência de fatores estruturais –, a sub-participação dos homens na esfera privada (assumida como área convencionalmente associada às mulheres) foi justificada como sendo consequência da atuação de agentes ideológicos, como a família e a educação. Além disso, contrariamente aos das mulheres, os esforços dos homens para igualar os papéis de género foram significativamente valorizados.

Embora a maioria das/os participantes tenha apontado a prevalência de situações de desigualdade de género na sociedade portuguesa, quando o foco da discussão se dirigiu sobre as indústrias mediáticas, estes posicionamentos tenderam a alterar-se. Na verdade, os discursos produzidos manifestaram uma certa relutância em reconhecer a manutenção de assimetrias de género nos média informativos, tendo favorecido a ideia de que a produção de conteúdos se pauta exclusivamente por princípios de imparcialidade e de objetividade (Byerly & Ross, 2006).  

“Eu acho que apesar de haver alguma discriminação contra as mulheres em Portugal, isso não se deve ao papel dos meios de comunicação. Acho que eles tentam manter a imparcialidade que lhes é exigida...”. (Patrícia Castro, 18 anos)

Houve, porém, discursos pontuais que consideraram a discriminação com base no sexo menos grave do que outras formas de discriminação, como aquela baseada na etnia/“raça”. Esta hierarquização de diferentes tipos de discriminação – que, aliás, foi abordada em estudos anteriores (e.g. Cabecinhas, 2007) – revela a escassez de conhecimento e a ausência de consciência crítica sobre a amplitude das assimetrias simbólicas no contexto mediático português.

“... Acho que se nota mais (discriminação nos média) em termos de etnia e de raça do que propriamente em termos de sexo”. (César Pinto, 19 anos)

Em termos gerais, as assimetrias de género nos média foram eminentemente assumidas como uma não-questão, não tendo sido consideradas como um possível critério de avaliação da qualidade jornalística. Excetuando algumas observações acerca das diferenças entre mulheres e homens ao nível da representação qualitativa – as quais, de resto, podem ter sido influenciadas pelo material-estímulo e pelos exemplos avançados pela equipa de investigação aquando dos grupos de discussão –, as desigualdades de género não constituíram objeto de especial interesse, preocupação e/ou reflexão crítica.

 

4.1. Paradigmas representacionais identificados

Numa dinâmica transversal aos grupos de discussão, as/os participantes identificaram e exploraram os paradigmas nos quais as mulheres com incumbências políticas são representadas nos média informativos, a saber: impreparação e necessidade de mentoria (35,6%), vida privada e domesticidade (22,9%), instrumentalização como trunfos políticos (13,4%), participação crescente na esfera política (10,2%), conciliação família-trabalho (8,8%), excecionalidade (7,0%) e fisicalidade (2,1%).

De seguida, analisam-se os modos de representação identificados pelas/os participantes a partir da sua inclusão em três narrativas temáticas: a-) participação das mulheres na política, b-) vida privada e domesticidade, e c-) fisicalidade, corpo e aparência física.

a) Participação das mulheres na política

Inúmeras/os participantes consideraram que as mulheres que intervêm na esfera política – na qualidade de chefes de Estado, membros do Governo, deputadas da Assembleia da República, etc. – tendem a acolher características como a incompetência profissional, a indefinição de interesses e a ausência de convicções (políticas) independentes. São representadas como indivíduos cuja atuação no espaço público/político se deve e depende da mentoria dos seus congéneres homens.

Para a maioria das/os participantes, foi justamente esta a ideia que atravessou uma das peças apresentadas para discussão em grupo, na qual a atual ministra da Agricultura e do Mar, Assunção Cristas, e o presidente do CDS-PP, Paulo Portas, figuravam como protagonistas (Visão, n.º 957). Enquanto a primeira surgiu como desprovida da preparação necessária para exercer o cargo político que lhe fora atribuído, o segundo emergiu como a figura que define o percurso da ministra, assegura proteção e confere mentoria política.

“ (...) Mais do que uma figura na qual ela (Assunção Cristas) pode olhar-se, (Paulo Portas) é alguém que está por trás a mexer as marionetas”. (Joana Silva, 21 anos)

“ (…) Dá a ideia de que ela (Assunção Cristas) é uma menina e que ele (Paulo Portas) só está ali para a proteger porque coitadinha... Está ali um bocadinho perdida”. (Luís Fonseca, 19 anos)

Para além do texto, também os elementos visuais foram objeto de análise por parte das/os participantes. A imagem da peça – na qual Assunção Cristas aparece com a cabeça no ombro de Paulo Portas, que a acaricia – foi tendencialmente interpretada como uma alusão a uma relação de pai e filha.

“ (…) Ela (Assunção Cristas) parece a filha querida do papá”. (Miguel Ribeiro, 20 anos)

Embora não se baseie numa crítica sustentada, a posição das/os participantes aponta, na linha dos estudos feministas, para a imbricação nos média informativos de abordagens essencialistas (Gidengil & Everitt, 2003a; Ross, 2004; Gill, 2007) e do paternalismo protetivo/sexismo benevolente (Glick & Fiske, 1996:493).

Não raras vezes, a autonomia e a idoneidade (política) das mulheres são inquiridas e colocadas em causa, numa legitimação das relações hierárquicas: os homens como mentores, as mulheres como mentoreadas. Enquanto os primeiros são (a priori) considerados idóneos para o exercício de funções políticas/públicas, as mulheres são colocadas sob perscrutação jornalística, tendo de empreender esforços redobrados para legitimar o seu estatuto.

Historicamente, as mulheres têm permanecido como “cidadãs de segunda classe”: a (progressiva) conquista dos seus direitos de cidadania tem sido acompanhada por processos rígidos de binarização e de alterização porque são consideradas indivíduos com características divergentes das do modelo ‘universal’ de pessoa adulta: autónoma, racional e independente (Amâncio, 1998) A redução da diversidade de subjetividades, identidades e experiências a um único modelo de cidadania encerra, para Lister (1997), um propósito principal: a reificação de valores androcêntricos nas estruturas sociopolíticas, ou seja, a instituição como principais características do indivíduo-cidadão de normas que são convencionalmente definidas como masculinas (e.g. imparcialidade, independência, agência política, etc.). Estas configurações ideológicas manifestam, de resto, a manutenção da “lógica da identidade” que – radicada no âmago da retórica universalista – reprime e anula a(s) diferença(s) (Young, 1990), favorecendo a alterização e, por vezes, a exclusão das mulheres da esfera política. Por isso, ainda hoje, uma mulher com responsabilidades políticas “is not simply a politician (male norm) but a special kind of deviant professional, a woman politician” (Ross & Sreberny-Mohammadi, 1997:104).

Intersetando e coexistindo com a representação das mulheres como impreparadas e com necessidade de mentoria (política), várias/os participantes indicaram a existência de um outro paradigma representacional: o das mulheres como trunfos políticos. De forma assinalável, as/os participantes apontaram para o facto de as newsmagazines portuguesas terem representado a entrada e a participação das mulheres na política como uma estratégia dirigida ao fortalecimento da imagem do partido junto do eleitorado, sobretudo em períodos eleitorais.

“ (...) Ele (Paulo Portas) aposta nas mulheres e usa-as talvez como um trunfo eleitoral para a posteridade”. (João Almeida, 21 anos)

Para algumas/uns participantes, as mulheres emergiram especialmente como manobras políticas que os partidos utilizam para granjear o apoio das mulheres (eleitoras).

 “Eles fazem dela (Assunção Cristas) como se fosse um esquema para arranjar mais votos, sobretudo por parte das mulheres…”. (Margarida Oliveira, 20 anos)

Esta observação é, de resto, consonante com a investigação feminista desenvolvida sobre as dinâmicas, as relações e as (inter)dependências que caracterizam o campo político. Veja-se, por exemplo, o estudo de Heldman, Oliver e Conroy (2009): analisando a cobertura mediática de Geraldine Ferraro e Sarah Palin, as autoras concluíram que as mulheres candidatas a posições de relevância política – como a vice-presidência – são escolhidas com o objetivo primeiro de conquistar o apoio das mulheres (votantes) e, por conseguinte, aumentar as hipóteses eleitorais dos respetivos partidos.

Numa exposição tendencialmente corroborante, um número considerável de participantes destacou que a este paradigma representacional subjazem dois postulados essenciais: o de que existe uma identificação de género, segundo a qual as mulheres tenderão a votar em mulheres-candidatas; e o de que as mulheres – enquanto grupo social – possuem um menor interesse em relação à política e, nessa medida, necessitam de ser conquistadas.

“ (...) Ao chamar tantas mulheres para colaborarem com ele, (Paulo Portas) está a atingir a população feminina que, por norma, está mais desligada do mundo da política”. (Rute Santos, 19 anos)

Porém, há estudos que têm demonstrado que a identificação de género não constitui per se um factor explicativo das preferências partidárias do eleitorado, nomeadamente das mulheres (e.g. Dolan, 2004:103). Embora estas manifestem uma maior propensão para votar em candidatas, esta correlação não é linear nem aplicável a todas as circunstâncias eleitorais: intervêm, igualmente, variáveis como a identificação com o partido político (Dolan, 2004:105). Além disso, as intenções de voto podem ainda ser influenciadas por estereótipos de género. Em regra, as eleitoras não reconhecem em candidatas a capacidade de liderança política, pois não associam este traço de personalidade às dimensões do estereótipo feminino (Amâncio, 1998:68).

Além disso, as mulheres figuram como indivíduos debutantes na esfera política: a sua intervenção pertence ao tempo recente – ao de “agora”. É, justamente, este paradigma que várias/os participantes apontaram nas newsmagazines portuguesas e – inclusive – corroboraram, reforçando a invisibilidade histórica e política das mulheres.

“ (...) O que dá mais para retirar é mesmo a subida das mulheres para a política...”. (Pedro Rodrigues, 20 anos)

“ (...) Fala do facto de, agora, virem muitas mulheres para a política...”. (Rita Mendes, 18 anos)

Inúmeras/os académicas/os sustentam que a representação das mulheres como “novidades” coloca os seus discursos e ações sob especial escrutínio (e.g. Ross, 2004; Lobo & Cabecinhas, 2010). De forma recorrente, a atribuição de um carácter debutante à participação das mulheres na política decorre da manutenção do paradigma da “primeira mulher”, que é utilizado para descrever, por exemplo, a integração de mulheres (nas posições cimeiras) de listas eleitorais, da apresentação de candidaturas a cargos de relevância política, entre outros (Heldman, Oliver & Conroy, 2009). Este tipo de abordagens poderá limitar as consecuções (eleitorais) das mulheres na arena política e reificar imaginários androcêntricos (Gigengil & Everitt, 2003:228). Figurando eminentemente como indivíduos estreantes no campo político, as mulheres tenderão a ser vistas como forças ocupantes num território de “natural” pertença aos homens, e não como parte integral do corpo político (Braden, 1996:2; Cabrera, Flores & Mata, 2012:77).

Numa aparente corroboração da ideologia meritocrática, as/os participantes mencionaram ainda o facto de as mulheres figurarem nas newsmagazines portuguesas como indivíduos excecionais que, através de esforços pessoais, conseguiram singrar num campo dominado tradicionalmente por homens – a política. 

“Eu acho que eles (jornalistas) querem dar a imagem de supermulher...”. (Eduarda Martins, 20 anos)

“Acho que é para mostrar que ela (Assunção Cristas) teve coragem e fibra. E que assumiu um cargo que, se calhar, não era bem aquilo que ela queria e aquilo que ela dominava, mas que o assumiu com coragem...”. (César Pinto, 19 anos)

Com efeito, os média informativos privilegiam, inúmeras vezes, o modelo de mulheres-exceção (Cerqueira, 2012), que se estrutura frequentemente em dissonância com as características atribuídas à feminilidade normativa. Nos grupos de discussão – embora alguns discursos tenham apontado, de forma esporádica, a fusão entre os traços de feminilidade e de masculinidade (hegemónicas) –, várias/os participantes destacaram, justamente, o facto de as mulheres terem sido caracterizadas com base em atributos associados ao estereótipo masculino, tais como a capacidade de liderança, o controlo e a supervisão (Amâncio, 1998:68).

“... Fala dela (Assunção Cristas) como um exemplo: “é este o exemplo das pessoas que vão dirigir””. (Catarina Lemos, 20 anos)

“A ideia que se tem de uma mulher quando está com um problema é a de que fica por casa... Quem vai para o campo de batalha mesmo assim são, supostamente, os homens... A bicicleta (com a qual Assunção Cristas aparece numa fotografia) pressupõe um espírito aventureiro enquanto que a ideia do feminino é o contrário...”. (Jorge Peixoto, 22 anos)

Uma vez que as dimensões do estereótipo masculino coincidem, por convenção histórica, com aquelas associadas ao paradigma universalista da cidadania (política), a atribuição às mulheres de traços da masculinidade hegemónica pode indiciar que estas apenas adquirem relevância (mediática) e excecionalidade quando correspondem ao modelo masculino/normativo. Tais abordagens conferem materialidade ao posicionamento de Young (1990): os grupos sociais cujos atributos são considerados a priori como divergentes daqueles que foram instituídos como norma são comummente objeto de estratégias de assimilação. Esta coação assimilacionista tenderá a anular a diversidade de identidades, favorecendo a universalização e a neutralização dos interesses, necessidades e experiências dos grupos dominantes e a sua consagração como o referente simbólico. Por outras palavras, redundará na legitimação de relações hierárquicas, no exercício desigual do poder e, sobretudo, na reificação da opressão social (dos membros) de determinados grupos sociais.

Além disso, descentrando a atenção das assimetrias que atravessam o campo político para enfatizar as conquistas individuais das mulheres, os média (informativos) tendem a perpetuar o “discurso essencialista-individualista” (Nogueira, 2006:64). Como foi referido pontualmente pelas/os participantes, as mulheres surgem como detentoras de um “token status” (Kanter, 1977) que – não obstante os obstáculos de natureza diversa e através do seu esforço individual – obtiveram sucesso nas suas investidas profissionais/políticas.

“... Vemos a Assunção Cristas como uma espécie de supermulher, que conseguiu chegar ao Governo, que fez um monte de coisas importantes e foi bem-sucedida...”. (Patrícia Castro, 18 anos)

Este tipo de paradigma representacional não só contribui para a manutenção das categorias dicotómicas “feminino” e “masculino”, reforçando relações de poder desiguais, como também apoia uma retórica individualista (Nogueira, 2006:70) que ofusca os obstáculos socioculturais e institucionais que limitam a participação política das mulheres e fomentam contextos de opressão e de injustiça social (Young, 1990).

b) Vida privada e domesticidade

Para além da participação das mulheres na política, a vida privada e a domesticidade constituíram igualmente uma importante narrativa temática, compilando assunções semânticas muito pertinentes do ponto de vista feminista.

À semelhança de estudos anteriores (e.g. Kahn & Goldenberg, 1991; Kahn, 1994; Norris, 1997; Ross, 2010), inúmeras/os participantes afirmaram que as newsmagazines portuguesas tendem a explorar aspetos relacionados com a vida privada das mulheres políticas – como as suas relações familiares e a vivência da conjugalidade – e a remetê-las para o espaço doméstico, esboçando frequentes menções ao exercício da maternidade e à prestação de cuidados na família.

“... Aqui mostra uma mulher mais humanística, uma mulher que vai à igreja, uma mulher que quer passar tempo com a família, uma mulher que tem o horário de trabalho de x a x horas e, a partir daí, vai ter com a família. O trabalho não é prioritário. Acho que dá a ideia da mulher como dona de casa”. (Carlos Neves, 18 anos)

Por outro lado, como foi mencionado durante os grupos de discussão, os homens políticos não são, em regra, auscultados a respeito da sua atuação na vida privada/doméstica – particularmente acerca do exercício da paternidade e das suas relações de parentesco (Braden, 1996:6) –, bem como sobre o modo como fazem a conciliação da vida familiar com as responsabilidades profissionais.

“ (...) Se fosse um homem, não estavam aqui a falar dos filhos...”. (Filipa Cunha, 20 anos)

“ (…) Nunca se viu falarem da vida privada de um homem político, dizerem que ele pediu para anteciparem as reuniões para o almoço porque tinha de jantar com a família …”. (Catarina Lemos, 20 anos)

A descredibilização das mulheres enquanto sujeitos de ação/intervenção política – que é potenciada pela exploração da sua vida privada – reflete-se especialmente na genderização dos contextos temáticos nos quais são representadas pelos média (Kahn & Goldenberg, 1991; Kahn, 1994).

Independentemente da posição que ocupem no campo político (e.g. chefes de Estado, membros do Governo, deputadas da Assembleia da República, etc.), as mulheres tendem a surgir como fontes de informação em temáticas que estão relacionadas ou constituem uma extensão das atividades ligadas convencionalmente à esfera doméstica/privada. Em regra, aparecem nos média informativos para opinar sobre as ditas “soft issues”, tais como a educação e o meio ambiente (Kahn & Goldenberg, 1991:110; Kahn, 1994:156), a saúde (Gill, 2007:114) e as questões de género (Ross et al., 2013:3). Por outro lado, os homens surgem representados predominantemente em áreas como a economia e finanças, a defesa nacional, a diplomacia, entre outros (Kahn, 1994:156). E, emergindo como os atores “naturais” nestas esferas, são-lhes atribuídos traços de personalidade relevantes no contexto profissional, incluindo a exigência, a seriedade, o espírito crítico e o dinamismo (Ross & Sreberny-Mohammadi, 1997; Gidengil & Everitt, 2003a).

Decorrendo da atuação da ideologia de género e da manutenção da assimetria simbólica (Amâncio & Oliveira, 2006:38) – que radica na cultura jornalística e nas indústrias mediáticas –, a ênfase na vida privada/doméstica das mulheres (políticas) reforça a não-pertença destas ao espaço público e a sua inabilidade para o exercício sério de funções políticas (Kahn & Goldenberg, 1991; Ross, 2010), bem como garante e valida os papéis tradicionais de género (Braden, 1996), podendo afetar negativamente a sua repercussão política junto do eleitorado.

c) Fisicalidade, corpo e aparência física

Numa convergência com a investigação feminista (e.g. Gallagher, 2001; Gidengil & Everitt, 2003a; Ross, 2010), algumas/uns participantes sustentaram que as mulheres políticas foram, de forma significativa, representadas a partir da sua fisicalidade, corpo e aparência física nas newsmagazines portuguesas.

“ (...) Na questão da imagem, a mulher é muito mais cobrada, a ela é exigida muito mais do que aos homens...”. (António Pereira, 25 anos)

“ (...) Eu lembro-me de quando a ... Ministra da Agricultura foi fazer uma palestra com um vestido curto e houve logo espaço para muitas discussões”. (Carolina Torres, 18 anos)

Os média informativos tendem, de facto, a secundarizar o que as mulheres “pensam” e “dizem”, privilegiando, ao invés, aspetos relacionados com a sua aparência física, indumentária, sentido de moda, etc. Esta tónica na fisicalidade (que, não raras vezes, tangencia a sexualização) aplica-se às mulheres enquanto grupo social, independentemente do seu background, profissão e âmbitos de atuação (Ross, 2004:68).

Embora exerçam cargos de (assumida) relevância pública, as mulheres políticas estão sujeitas, em igual grau e frequência que as demais, a processos de sexualização/objetificação (Ross & Sreberny-Mohammadi, 1997:107). Desde o uso da linguagem aos conteúdos fotográficos, os média recorrem a diferentes estratégias para instituir a feminilidade normativa e constituir as mulheres como heraldos da beleza ocidentalmente padronizada. Como refere Gill (2007:117), as abordagens sexualizadoras das mulheres encerram objetivos específicos: “they are part of the operation of power which trivializes women’s perspectives and keeps them ‘in their place’”.

Por outro lado, diferentemente das suas congéneres, os homens políticos raramente aparecem referidos a partir dos seus atributos físicos. Para as/os participantes, os homens surgiram sobretudo referenciados pelas suas opiniões, ações e comportamentos, ainda que estes possam despoletar controvérsia.

“ (...) A mulher tem muito mais obrigação de ser bonita do que o homem... Retrataram o Lula porque ele gostava de beber cachaça. Agora, no caso da Dilma, é porque ela é feia... Essa coisa de ser feia acho que cai muito mais na mulher”. (Paula Barbosa, 21 anos)

Secundando Baudrillard (1970/2010) e Wolf (1992), a correspondência aos padrões de beleza constitui um imperativo apenas para as mulheres, não se impondo com igual premência aos homens. Convergindo com as dimensões do estereótipo feminino (Amâncio, 1998:64), este tipo de representação confirma, de resto, as asserções de Gallego (2009:45): “Elas (as mulheres) são o objeto observado, que não fazem parte do centro a partir do qual se observa e se narra. Daí que as mulheres sejam apresentadas pelo que são, não pelo que fazem”. Pelo contrário, os “homens são o verbo, e o verbo é ação”: são os sujeitos que agem e protagonizam os acontecimentos, a partir dos quais tudo é narrado.

A importância atribuída à aparência física das mulheres tem subjacente assunções ideológicas (de género) mais amplamente instituídas, isto é, a associação de padrões específicos de beleza à feminilidade normativa. Encerrando a função de “coerção social”, o mito da beleza constitui per se a expressão última da dominação masculina: colabora na manutenção de relações de poder desiguais, movido pelo propósito de “destruir psicologicamente e às ocultas tudo de positivo que o feminismo proporcionou às mulheres material e publicamente” (Wolf, 1992:13-15).

Estribada numa conotação valorativa diferenciada, onde o sexo masculino ocupa uma posição dominante e o feminino surge numa posição subordinada (Amâncio, 1998:68), este tipo de paradigma representacional contribui para o descrédito das opiniões, experiências e performances profissionais das mulheres, limitando as suas potencialidades e consecuções na esfera política (Ross, 2010:98).

Numa abordagem global, as/os participantes identificaram nas newsmagazines portuguesas paradigmas representacionais que são enquadráveis em três narrativas temáticas, a saber: a-) participação das mulheres na política, b-) vida privada e domesticidade, e c-) fisicalidade, corpo e aparência física.

Embora tenham surgido pontualmente posições críticas, a maioria das/os participantes não questionou o caráter ideológico das representações mediáticas das mulheres políticas, nomeadamente daquelas que as enformam como impreparadas e com necessidade de mentoria (por parte dos seus congéneres homens), trunfos partidários e indivíduos debutantes na esfera política. Além disso, apesar de terem apontando o paradigma que atribuiu excecionalidade às mulheres, as/os participantes tenderam a secundar a retórica individualista que – sustentada pela ideologia meritocrática – ofusca os obstáculos institucionais e socioculturais à participação política das mulheres. Parte significativa das/os participantes não auscultou, de forma aprofundada, as assunções que estão implícitas aos paradigmas representacionais identificados, isto é, a descredibilização da idoneidade política e da autonomia profissional das mulheres, o paternalismo protetivo/sexismo benevolente, bem como a legitimação social de relações hierárquicas na esfera política.

Importa, contudo, relevar a existência de discursos contestatórios das referências que as newsmagazines portuguesas endereçaram à vida privada e a aspetos da esfera doméstica das mulheres políticas, bem como à sua fisicalidade, corpo e aparência física. Inúmeras/os participantes destacaram, a esse respeito, a prevalência de diferenças entre mulheres e homens no que concerne às representações mediáticas, sublinhando que – contrariamente aos seus congéneres –, as mulheres políticas são perscrutadas ao nível da prestação de cuidados a outrem, exercício da maternidade, conjugação da família com as responsabilidades profissionais, indumentária, entre outros.

Em conclusão, não obstante a coexistência esporádica de posições tranquilizadoras com outras mais críticas, a maioria das/os participantes não problematizou, de forma sustentada, o papel dos média informativos na (re)construção (genderizada) da realidade social, manifestando uma propensão para reiterar discursos hegemónicos (acerca das mulheres que exercem cargos políticos).

 

4.2. Causas atribuídas aos paradigmas representacionais

Procurando atribuir as (eventuais) causas dos paradigmas representacionais identificados, as/os participantes apresentaram os seguintes tópicos: sexo da/o jornalista (24,6%), estereótipos de género (19,5%), pertença partidária (15,2%), preferências dos públicos (14,4%), iniciativa da/o entrevistada/o (10,2%), fatores históricos e socioculturais (6,8%), política editorial (5,9%) e não-conformidade com as normas de género (3,4%). No presente estudo, as causas atribuídas foram enquadradas em duas narrativas principais: a-) produção e receção: dinâmicas e relações nas/das indústrias mediáticas e b-) género, estereótipos e sociedade.

a) Produção e receção: dinâmicas e relações nas/das indústrias mediáticas

A maioria das/os participantes apresentou causas relacionadas com a produção e a receção de conteúdos noticiosos, não desenvolvendo, porém, uma auscultação crítica dos aspetos económicos, institucionais e políticos que influem nas configurações das/nas indústrias mediáticas.

De forma assinalável, as/os participantes consideraram que o sexo da/o jornalista influencia e enforma – de forma direta, imediata e estática – a performance profissional. Para além da genderização do exercício do jornalismo (a qual será analisada no próximo tópico), os discursos produzidos tiveram subjacente a ideia de que os profissionais do jornalismo detêm autonomia suficiente para implementar as suas próprias estratégias e métodos de trabalho.

Enquanto detentoras/es do monopólio sobre os instrumentos de produção e de difusão a grande escala da informação (Bourdieu, 1997:48), as/os jornalistas possuem, com efeito, a capacidade de controlar a (re)construção do conhecimento e de representar grupos sociais (Van Dijk, 2005:61). Contudo, embora possam efetuar escolhas individuais passíveis de promover novas representações de género e quebrar convenções estereotipadas (Gallagher, 2001:172), a sua autonomia para enquadrar os acontecimentos é limitada devido a constrangimentos inerentes à orgânica das indústrias mediáticas (Harrison, 2006:100; van Zoonen, 1994:64-65). Uma vez que são submetidos/as a um processo de socialização profissional – através do qual conhecem, apreendem e aceitam os valores profissionais, as políticas editoriais e as rotinas organizacionais (Harrison, 2006:107) –, as/os jornalistas adotam as regras da empresa de comunicação para a qual trabalham (Harrison, 2006:118), reiterando as assunções da cultura dominante (Gill, 2007:126). Podem manifestar os seus interesses e preocupações sociais, desde que estes correspondam aos interesses das indústrias mediáticas e se inscrevam nos valores (androcêntricos) que definem a cultura jornalística (Gallego, 2009:52).

Inúmeras/os participantes atribuíram, igualmente, uma relação de causalidade entre as preferências dos públicos mediáticos e os paradigmas representacionais, nomeadamente aqueles que enformam as mulheres políticas no âmbito da sua vida privada.

“ (...) As pessoas gostam de saber que estas pessoas fazem o mesmo que nós, que a sociedade”. (Tiago Moreira, 18 anos)

A assunção primordial de que os conteúdos mediáticos refletem as preferências dos públicos – às quais as/os jornalistas se limitam a responder passiva e meramente – encerra dois problemas essenciais: a-) oblitera e ofusca os interesses económicos, institucionais e políticos das indústrias mediáticas; b-) assume a irrelevância/inexistência entre os públicos de posições críticas dos conteúdos veiculados pelos média (informativos).

No sentido de empreender uma auscultação da significância dos produtos mediáticos, importa, ao invés, relacionar os conteúdos veiculados não só com as preferências dos públicos (que tendem a ser situadas geográfica e cronologicamente), mas também com os espaços/processos de produção (que (re)produzem desigualdades sociais, como o sexismo, o racismo, o ageísmo e o heterossexismo), os modelos de propriedade dos média (que determinam a diversidade temática, o exercício do poder e o acesso aos média), o contexto sociocultural (no qual prevalecem relações de poder desiguais), e os efeitos dos média sobre os públicos (que são determinados por eixos de identidade social vários). Os média (informativos) e o mundo social estabelecem, assim, uma relação dinâmica e complexa: se, por um lado, os primeiros podem influenciar a compreensão dos indivíduos acerca do mundo social; o segundo, por outro, poderá exercer influência sobre as/os produtores e os produtos mediáticos (Croteau et al., 2012:215).

Os discursos das/os participantes sustentaram, igualmente, que a pertença partidária das fontes de informação pode constituir uma causa para justificar os paradigmas representacionais explorados no tópico anterior. Para algumas/uns participantes, os média informativos tendem a dar mais destaque a espetos da vida privada das mulheres de fações de direita:

“ (…) Como o CDS é um partido de direita, eles (jornalistas) exploram muito essa parte pessoal dela (de Assunção Cristas)”. (Margarida Oliveira, 20 anos)

“... Seria (diferente) a representação de mulheres no Bloco de Esquerda e nos Verdes, são os partidos onde se veem mais mulheres e vê-se que são pessoas mais liberais...”. (João Almeida, 21 anos)

Todavia, a auscultação da vida privada aplica-se às mulheres enquanto grupo social, independentemente da sua pertença partidária. Esta mostra-se, ao invés, relacionada com as dinâmicas socioeconómicas que têm lugar nas empresas de comunicação (Ross, 2002).

Num estudo sobre a cobertura televisiva das eleições federais de 1993 e 1997, no Canadá, Gidengil e Everitt (2003b) mostraram que os discursos produzidos por Kim Campbell (Progressive Conservative Party), Audrey McLaughlin e Alexa McDonough (New Democratic Party) foram sujeitos a uma maior interpretação por parte dos média (informativos) e relatados através de uma linguagem negativa e agressiva. Esta investigação comprovou que – independentemente das ideologias políticas que perfilham e das estruturas partidárias a que pertencem – as mulheres foram, de forma recorrente, representadas a partir de abordagens essencialistas resultantes da “mediação de género” (Sreberny-Mohammadi & Ross, 1996).

Além disso, na análise da cobertura mediática das candidatas à vice-presidência dos Estados Unidos entre 1984 e 2008, Heldman, Oliver e Conroy (2009) retiraram ilações semelhantes, tendo identificado menções assíduas à indumentária e às relações de parentesco de Geraldine Ferraro (Democratic Party) e de Sarah Palin (Republican Party). Embora pertencessem a partidos políticos diferentes, ambas as candidatas foram objeto de enquadramentos sexistas nos média informativos estado-unidenses, que as colocaram em desvantagem nos processos eleitorais.

A pertença partidária pode, pois, afetar a cobertura mediática das mulheres políticas em termos quantitativos – já que aquelas que pertencem a partidos mais pequenos têm menos probabilidades de despertar a atenção dos média –, mas não é (substancialmente) impactante no que concerne à dimensão qualitativa (Ross, 2004).

A iniciativa da/o entrevistada/o foi também apontada como uma causa explicativa dos paradigmas representacionais nos quais as mulheres com incumbências políticas aparecem nas newsmagazines portuguesas. De acordo com as/os participantes, as mulheres tendem a destacar aquando das entrevistas aspetos da sua vida privada e da esfera doméstica, pelo que é expectável a incidência jornalística nestas questões.

 “ (...) A Cecília Meireles também não fala muito dela e, por isso, desconhece-se o lado (pessoal) dela ... Portanto, as outras (mulheres políticas) devem falar”. (Susana Gonçalves, 18 anos)

“Aqui também não fala disso (da vida privada) das outras mulheres. Está a falar desta porque esta exigiu, eles (jornalistas) estão a dar um exemplo. São casos específicos”. (Artur Guimarães, 22 anos)

A investigação feminista tem, porém, demonstrado a existência de dinâmicas diferentes na relação entre as mulheres políticas, as/os jornalistas e as indústrias mediáticas. Por exemplo, num estudo transnacional – que envolveu parlamentares da África do Sul, Austrália, Irlanda do Norte e Reino Unido –, Ross (2002) mostrou que as mulheres políticas surgem, primordialmente, na esfera de interesse das/os jornalista enquanto “seres genderizados” (Ross, 2003:7). Na opinião das próprias mulheres, o discurso jornalístico encerra assunções de género que se manifestam na cobertura de eventos políticos, em períodos eleitorais e/ou em episódios do quotidiano. Ainda que as mulheres não abordem aspetos atinentes à sua vida privada e fisicalidade, os média tenderão a fazê-lo (Braden, 1996:63). Reconhecendo a importância de cultivar relações próximas com a classe jornalística, as mulheres que exercem cargos políticos têm adquirido competências várias a fim de controlar, com maior eficiência, as suas crescentes interações com os média (Ross, 2003:10).

Embora as/os participantes não tenham tendencialmente auscultado os fatores económicos, institucionais e políticos que influenciam as configurações das/nas indústrias mediáticas, verificou-se, porém, uma exceção: a atribuição causal da política editorial aos paradigmas representacionais nos quais as mulheres políticas aparecem nas newsmagazines portuguesas.

“ (...) Tem que ver com a política da própria revista ou do próprio jornal”. (Maria Barros, 18 anos)

Esta perspetiva é, de resto, secundada pela crítica feminista dos média (e.g. van Zoonen, 1994; Gallego, 2009; Silveirinha, 2004b): a produção noticiosa é influenciada por variáveis como as idiossincrasias pessoais das/os jornalistas, a cultura jornalística, os constrangimentos organizacionais, o contexto regulatório, os modelos de propriedade dos meios de comunicação social, entre outros (Carter & Steiner, 2004:16).

b) Género, estereótipos e sociedade

Durante os grupos de discussão, as/os participantes mencionaram também causas relacionadas com as questões de género e outras de natureza societal, não inquirindo, contudo, as interseções e a conivência das ideologias hegemónicas com as práticas e os discursos que têm lugar nas indústrias mediáticas.

Para a maioria das/os participantes, o sexo da/o jornalista poderá explicar as representações mediáticas (genderizadas), nomeadamente o enfoque na vida privada. Às mulheres atribuíram eminentemente traços de expectatividade (e.g. sensibilidade, emotividade, pormenorização, maternalidade, etc.). Os homens surgiram, por outro lado, caracterizados como indivíduos que possuem mais rigor, objetividade e “rudeza” no exercício da atividade jornalística.

“Mas acho que a mulher também vai mais ao pormenor, tenta sempre... Tenta mais procurar...”. (Leonor Pedrosa, 18 anos)

 “Um homem cinge-se mais aos factos, enquanto que uma mulher... Tem mais aquele lado maternal e tudo o mais”. (Artur Guimarães, 22 anos)

“... Quando e´ um homem a escrever, há uma sensibilidade diferente. Nota-se que ali não foi escrito por uma mulher, foi por um homem. Há mais rudeza, se me é permitida a expressão, na escrita (do homem) do que na da mulher, do que... na da mulher. É diferente.” (Cristina Novais, 50 anos)

De acordo com investigações anteriores, o sexo da/o jornalista não determina as dinâmicas, performance e práticas profissionais. Excetuando as escolhas das fontes de informação e a relação com os públicos, não se encontram diferenças assinaláveis entre mulheres e homens no exercício da atividade jornalística (van Zoonen, 1998; Cerqueira, 2012).

Para além da presunção de que as/os jornalistas detêm autonomia suficiente nas redações (como fora já contestado anteriormente), os discursos das/os participantes assumiram que as mulheres constituem um grupo homogéneo, partilham perspetivas, abordagens e estilos profissionais semelhantes, e se distinguem especialmente dos seus congéneres homens pela feminilidade (van Zoonen, 1994:63; Gill, 2007:125). Estas perspetivas – que se encontram em estudos como o de Christmas (1997) – tendem, de resto, a promover/consolidar a ideia de que a maior presença das mulheres no campo jornalístico poderá beneficiar a criação de um “projeto feminista ou emancipatório” (van Zoonen, 1994:63). Têm subjacente uma concetualização dicotómica e essencialista, segundo a qual o género constitui uma propriedade estática, imutável e previsível em todos os contextos sociais, incluindo no mercado de trabalho (van Zoonen, 1994:64). Estabelecendo fronteiras indeléveis entre as categorias feminino/masculino e mulher/homem, o pensamento binário corrobora, pois, a divisão sexual do trabalho e a genderização das profissões.

Numa dissidência assumida com o determinismo biológico, a crítica feminista sustenta que o género não constitui uma “expression of biology, nor a fixed dichotomy in human life and character” (Connell, 2009:10). É, ao invés, uma estrutura social, fluída e dinâmica (Connell, 2009:10). (Re)constrói-se nas/pelas relações de poder, instituições, práticas e discursos (Connell, 2009:11; Kimmel, 2000:290), interagindo com outros eixos de identidade social, como a etnia, classe, idade, orientação sexual, nacionalidade, entre outros (Van Zoonen, 1994:33; Dow & Condit, 2005:449). Os média (informativos) surgem, por conseguinte, como espaços onde o género e os seus significados são (re)construídos, (re)negociados e (re)contestados (Van Zoonen, 1994:43).

Há também participantes que remeteram a existência de determinados paradigmas representacionais (nomeadamente daqueles que encerram um caráter depreciativo) para a influência de fatores históricos e socioculturais, tais como os resquícios ideológicos do Estado Novo, preconceitos, o conservadorismo sociopolítico e a prematuridade da democracia portuguesa. Todavia, enfatizando a crescente participação das mulheres nas indústrias mediáticas, os discursos produzidos encerraram um cariz eminentemente desculpabilizador e não-problematizante (e.g. Lobo & Cabecinhas, 2010):

“E isso quer dizer que ainda somos um país de muitas tradições e costumes”. (Carla Pinto, 19 anos)

“... É uma questão do próprio povo, é uma questão cultural...”. (Elisabete Ponte, 18 anos)

A esta posição subjaz, com frequência, uma renitência na aceitação de medidas de ação positiva, mormente a aplicação de quotas baseadas no sexo na esfera política. Não obstante as potencialidades que estas possam comportar – e.g. a redefinição dos conceitos de cidadania, representação e igualdade (Meier, 2008), a alteração das relações de género no espaço público (Meier & Lombardo, 2013), e a mitigação dos obstáculos institucionais e formais que impedem a autodeterminação e o autodesenvolvimento de determinados grupos (Young, 1990) –, as quotas destinadas ao empoderamento das mulheres no campo político suscitam comummente controvérsia e opiniões detratoras.

A crítica aventada com mais frequência – nomeadamente pela maioria das/os participantes – é a de que as quotas violam o princípio meritocrático, privilegiando a seleção com base nas características sociodemográficas e não nas competências pessoais (Crosby, Iyer & Sincharoen, 2006:593). Secundando Santos e Amâncio (2010:45-48), tais posições são consequência da existência de um conhecimento limitado acerca da importância das medidas de ação positiva, da subvalorização de práticas discriminatórias, da influência da ideologia de género, bem como da pressuposição da (falsa) neutralidade do mérito.

Encontraram-se, ainda, discursos que constituíram – ainda que de uma forma pouco fundamentada – os estereótipos de género como uma causa explicativa das representações das mulheres com responsabilidades políticas. Para inúmeras/os participantes, as newsmagazines portuguesas tenderam a associá-las às dimensões do estereótipo feminino (Amâncio, 1998), particularmente a ideias de vulnerabilidade (física), sensibilidade e incapacidade de autossuficiência.

“Este homem (jornalista) estava a associar a fraqueza a ela”. (Susana Gonçalves, 18 anos)

“Há um bocado o estereótipo e é (...) subjugar as mulheres às mãos dos homens, à proteção deles”. (Catarina Lemos, 20 anos)

Inscritos nas indústrias mediáticas e nos processos de produção noticiosa (Gallego, 2009; Ross, 2010), os estereótipos de género influenciam e subjazem às diferenças representacionais entre mulheres e homens nos média informativos (Khan, 1994:155; Braden, 1996; Van Zoonen, 1998; Ross, 2002), podendo influenciar – até certa medida – o eleitorado no que concerne às habilitações profissionais, idoneidade política, capacidade de tomada de decisão e áreas de intervenção das mulheres/candidatas na política. De forma indelével, a manutenção de abordagens estereotipadas expressa, reforça e legitima o “imperialismo cultural”, invisibilizando a “diferença” e reprimindo o potencial emancipatório desta no fomento da diversidade (Young, 1990).

Refira-se, por fim, que algumas/uns participantes consideraram, de forma telegráfica, a não-conformidade com as normas de género (i.e. a ausência de correspondência aos traços e papéis convencionados como “femininos” e “masculinos”) como um aspeto que poderá influir e determinar as representações das mulheres políticas nos média (informativos).

De facto, quando as mulheres no campo político invertem, misturam ou contestam os traços e os papéis sociais que a ideologia (tradicional) de género estabelece e naturaliza, o interesse dos média aumenta de forma exponencial (Gidengil & Everitt, 2003a:562). Corroborando Gallego (2009:47), tudo o que “inverte o estereótipo ou vai contra a norma converte-se em significativo, informativamente falando”. Todavia, a maior cobertura noticiosa não corresponde a um necessário empoderamento político das mulheres: tais abordagens são comummente depreciativas, relevando, de resto, o “media’s opprobrium against women who transgress the orthodox boundaries of what ‘real’ women are and what ‘real’ women do” (Ross, 2004:67).

“A (Angela) Merkel, por exemplo, é gozada por todos os cantos, não é? Por ser uma mulher de pulso rijo. Um homem já não era ... Já era visto com outros olhos”. (Rui Teixeira, 19 anos)

“(Assunção Cristas) É rebelde por não entrar no critério de mulher”. (Patrícia Castro, 18 anos)

Num estudo que incidiu sobre os debates de líderes políticos realizados aquando das eleições federais de 1993, no Canadá, Gidengil e Everitt (1999:62) mostraram, justamente, que a conotação atribuída aos traços de personalidade varia consoante o sexo do sujeito político: “what is perceived – positively – to be combative in a man may be judged – negatively – to be aggressive in a woman”. A representação mediática das mulheres políticas é, pois, afetada indelevelmente. Por um lado, se as mulheres adotam comportamentos combativos, os média tenderão a exagerar e a criticar negativamente a sua (percebida) agressividade; por outro, se as mulheres não atuam de acordo com as normas tradicionais (masculinas) que regem o campo político, serão votadas à marginalização mediática (Gidengil & Everitt, 2003a:574).

Além disso, como as/os participantes assinalaram lacónica e vagamente, as orientações sexuais não-normativas podem ser objeto de escrutínio jornalístico que, não raras vezes, prejudica a imagem das mulheres políticas junto do eleitorado.

“ (…) No caso da Dilma (Rousseff), quando os media brincam que ela é homossexual (não sei é brincadeira ou não)... Assume-se que as pessoas que têm esse preconceito contra a homossexualidade já vão estar contrárias à posição dela”. (António Pereira, 25 anos)

Reportando-se ao estudo de Chang e Hitchon (1997), Gallagher (2001:82) enfatiza, precisamente, a ideia de que os públicos/eleitorado manifestam uma atitude mais positiva em relação a candidatas/os que obedeçam aos traços e aos papéis tradicionais de género. Por outro lado, como refere Kimmel (2000:313), as mulheres que se movem e obtêm sucesso em áreas profissionais dominadas tradicionalmente por homens podem ser vistas – em particular, nos média (informativos) – como “insufficiently feminine, have their sexuality called into question, and risk not being taken seriously as women. If they fail, they are seen as very feminine women, demonstrating that inequality is really the result of difference, not its cause”.

Numa visão geral, procurando atribuir e explicar as (eventuais) causas subjacentes aos paradigmas representacionais identificados anteriormente, as/os participantes tenderam a assumir posicionamentos tranquilizadores (e.g. Lobo & Cabecinhas, 2010), que foram enquadrados em duas narrativas principais, a saber: a-) produção e receção: dinâmicas e relações nas/das indústrias mediáticas, e b-) género, estereótipos e sociedade.

Por um lado, a maioria das/os participantes referiu mormente causas relacionadas com a produção e a receção de conteúdos noticiosos (i.e. sexo da/o jornalista, preferências dos públicos mediáticos, pertença partidária das fontes de informação e iniciativa da/o entrevistada/o).

O sexo da/o jornalista surgiu como um fator determinante da performance profissional, na presunção de que os espaços/processos de produção noticiosa conferem autonomia e liberdade suficientes para que as/os jornalistas estabeleçam as suas estratégias laborais. A perscrutação jornalística sobre aspetos que transcendem a participação política das mulheres (como a vida privada) foi entendida como uma consequência direta da sua pertença partidária, e não como um fenómeno globalizado. Os conteúdos mediáticos apareceram como meros espelhos das preferências dos públicos, numa assunção de que o papel primordial das/os jornalistas consiste em responder passivamente ao que as/os recetoras/es estabelecem. A iniciativa da/o entrevistada/o emergiu, por fim, como uma causa da maior incidência jornalística, por exemplo, nos aspetos da vida privada e na fisicalidade das mulheres políticas, favorecendo-se a ideia de que as representações essencialistas são localizadas e residuais. Embora a maioria das/os participantes tenha reportado os paradigmas representacionais para aspetos relacionados com a produção e a receção, importa relevar a existência de discursos contestatórios de um atributo endógeno das indústrias mediáticas: a política editorial. Algumas/uns participantes destacaram que os interesses/exigências dos órgãos diretivos e os valores ideológicos das empresas de comunicação poderão influir na produção dos conteúdos noticiosos.

Por outro lado, inúmeras/os participantes apresentaram causas relacionadas com as questões de género e outras de natureza societal (i.e. sexo da/o jornalista, fatores histórico e socioculturais, estereótipos de género e não-conformidade com as normas de género).

Entendendo o género como uma categoria fixa, a maioria das/os participantes atribuiu um caráter genderizado ao exercício da atividade jornalística, numa aparente legitimação da divisão sexual do trabalho. Apesar de terem reconhecido que os fatores históricos e socioculturais poderão influenciar a manutenção de desigualdades de género nos média informativos, as/os participantes enformaram-nos a partir de uma perspetiva exonerativa e não-problematizante. Além disso, ainda que não tenham esboçado um crítica sustentada, alguns discursos enfatizaram que a manutenção de estereótipos de género e a não-conformidade com os traços e papéis convencionados como “femininos” e “masculinos” poderão influir na produção noticiosa. Não auscultaram, contudo, os impactos que os processos de estereotipização e o binarismo de género podem provocar na participação política das mulheres, nos média e na sociedade civil.

Em conclusão, as/os participantes não interrogaram, na sua generalidade, as micro-meso-macro configurações das indústrias mediáticas que influem nas representações mediáticas (das mulheres políticas), tais como as idiossincrasias pessoais, a cultura jornalística, os constrangimentos organizacionais, o contexto regulatório, os modelos de propriedade dos média, etc. Além disso, manifestaram uma tendência para corroborar a manutenção da ideologia tradicional de género, não inquirindo criticamente as suas interseções e a conivência com as práticas e os discursos que têm lugar nas indústrias mediáticas.

 

5. Considerações finais

Na linha do compromisso com a mudança sociopolítica e a promoção de uma sociedade mais inclusiva, a auscultação das práticas de receção tem adquirido uma crescente importância no âmbito dos Estudos Feministas dos Média (Mendes & Carter, 2008:1701). Para além de comprovar a variabilidade interpretativa dos públicos em relação aos produtos mediáticos, a crítica feminista da receção tem contribuído para a desnaturalização das diferenças de género, mostrando o seu caráter situado, mutável e dinâmico (Carter & Steiner, 2004:28).

No presente estudo, a análise temática do material resultante da realização de onze grupos focais – que envolveram 101 estudantes universitárias/os – permitiu inquirir as práticas de receção de conteúdos noticiosos. Em particular, possibilitou a auscultação do modo como os públicos interpretam e se posicionam face aos paradigmas representacionais nos quais as mulheres políticas surgem nos média e às suas (eventuais) causas subjacentes.

No que concerne aos paradigmas representacionais, as/os participantes identificaram a existência de três principais narrativas temáticas: participação das mulheres na política; vida privada e domesticidade; e fisicalidade, corpo e aparência física. Contudo, a maioria não problematizou, de forma sustentada, o papel dos média informativos na (re)construção (genderizada) da realidade social, manifestando uma propensão para reiterar e apoiar a reificação das tríades masculino-político-público e feminino-pessoal-privado.

Depois, procurando atribuir e explicar as causas subjacentes aos paradigmas representacionais identificados, as/os participantes referiram sobretudo aspetos relacionados com a produção e a receção de conteúdos noticiosos, a partir de pressupostos como a autonomização do processo produtivo, a partidarização e a essencialização das fontes de informação, bem como a supremacia e a homogeneização dos públicos mediáticos. Além disso, apresentaram causas relacionadas com as questões de género e outras de natureza societal que tenderam a reiterar os postulados do determinismo biológico, da polarização de género, e da exoneração histórica e sociocultural. Na sua generalidade, as/os participantes não questionaram os fatores económicos, socioculturais e políticos que influem na produção noticiosa, assim como tenderam corroborar a manutenção da ideologia tradicional de género, não inquirindo, de forma crítica, os seus mecanismos, discursos e corolários.

Em conclusão, os resultados mostram que a existência de assimetrias de género nos média informativos, ao nível da representação qualitativa, não é considerada pelos públicos (jovens) como uma questão relevante. Não obstante os momentos pontuais de negociação, contestação e resistência em relação aos significados veiculados pelos média, a maioria das/os participantes adotou posicionamentos tranquilizadores que inibiram uma consciencialização individual/social acerca das consequências da manutenção de relações de poder desiguais nos média, na esfera política e na sociedade. Este estudo demonstra, assim, que os públicos produzem sobretudo leituras congruentes com ideologias e discursos hegemónicos, como os de género, as quais, de resto, tendem a ser as abordagens privilegiadas pelos média informativos (e.g. Sreberny-Mohammadi & Ross, 1996; Gidengil & Everitt, 2003; Ross, 2004; Lobo & Cabecinhas, 2010).      

Numa apreciação global, pode afirmar-se que o principal contributo deste estudo consistiu em auscultar – com recurso à análise temática – as (inter)relações entre os públicos, média informativos, género e representação qualitativa, sublinhando a importância de se refletir sobre os eventuais impactos que as representações mediáticas têm ao nível da (re)configuração do espaço político/público e no exercício da cidadania.

Não obstante os contributos empreendidos neste estudo, importa ressaltar que os resultados aqui apresentados não são extrapoláveis. Fornecem apenas indicações preliminares acerca do modo como os públicos interpretam e se posicionam em relação às representações mediáticas e, em particular, às assunções de género veiculadas pelos média informativos. Uma investigação mais profunda exigirá o envolvimento de um maior número de participantes e maior diversidade, nomeadamente ao nível da idade, identidade de género, nível socioeconómico, habilitações educacionais, áreas de formação profissional, etc. Além disso, é necessário garantir uma maior variabilidade em termos de material-estímulo – já que este poderá influenciar os discursos produzidos e a fundamentação dos posicionamentos ideológicos –, bem como potenciar o cruzamento de diferentes abordagens teórico-metodológicas. Será possível, deste modo, avançar com maior propriedade para o estabelecimento de comparações, semelhanças e divergências.

Em suma, impõe-se a necessidade de aprofundar a investigação científica sobre práticas de receção com vista ao empoderamento semiótico dos públicos (jovens) relativamente aos produtos mediáticos, aos contextos socioculturais, económicos e políticos nos quais estes são criados (Hobbs, 2005), bem como ao impacto destes na (re)construção da realidade social e aos mecanismos pelos quais os conteúdos podem ser contestados e/ou modificados (Gallagher, 2001; Silverblatt, 2001). Partindo de uma intervenção concertada na produção e na receção (Kellner, 1995), a educação feminista para os média encerra particular importância para a desconstrução das assunções de género (Gallagher, 2001; Teurlings, 2010). Através de iniciativas como a formação de profissionais dos média para as questões da diversidade e a inclusão de perspetivas feministas nos currículos universitários –, a literacia crítica mediática conferirá às/aos produtoras/es e aos públicos uma compreensão mais abrangente dos significados imbricados na tríade mulheres-política-públicos.

 

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Date of Submission: July 22, 2014

Date of Acceptance: January 12, 2015

 

Agradecimentos

O presente artigo foi desenvolvido no âmbito do projeto de investigação “O género em foco: representações sociais nas revistas portuguesas de informação generalista” (PTDC/CCI-COM/114182/2009), financiado por Fundos FEDER através do Programa Operacional Fatores de Competitividade (COMPETE) e por Fundos Nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

 

NOTAS

1 Adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas no dia 18 dezembro de 1979, esta convenção obriga no artigo 4º os Estados-membros a implementar medidas temporárias (especiais) dirigidas à promoção da igualdade de género em diferentes esferas de intervenção.

2 A Lei da Paridade (Lei Orgânica nº. 3/2006) estipula uma representação mínima de 33% de cada um dos sexos na composição das listas para a Assembleia da República, o Parlamento Europeu e as autarquias locais, bem como estabelece que as listas não podem conter mais de duas/dois candidatas/os do mesmo sexo consecutivamente.

3 De acordo com os dados do Inter-Parliamentary Union, a representação mundial das mulheres nos parlamentos nacionais aumentou na última década, passando de 15,3% em 2004 para 21,7% em 2014. Em Portugal, a representação parlamentar das mulheres é de 31,3%, ocupando a 33ª posição no ranking mundial.

4 De modo a garantir o sigilo e a confidencialidade dos dados, os nomes das/os participantes mencionados neste artigo são fictícios.

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