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Observatorio (OBS*)

versão On-line ISSN 1646-5954

OBS* vol.11 no.4 Lisboa dez. 2017

 

O Dia em que a Presidente caiu: uma Análise do Jornal Nacional

The Day the President fell: An Analysis of the Jornal Nacional

 

Mariana Corsetti Oselame*

* Centro Universitário Ritter dos Reis – UNIRITTER, Brasil

 

RESUMO

No dia 12 de maio de 2016 o Senado Federal brasileiro aprovou a abertura do processo de impeachment contra a presidente da República, Dilma Rousseff. Os programas jornalísticos, que há meses faziam a cobertura da crise política, noticiaram os desdobramentos da histórica votação. Este artigo, que tem como objeto um desses programas – o Jornal Nacional, da Rede Globo – faz uma análise de conteúdo (Bardin, 1977) da edição apresentada no dia em que a presidente caiu. O objetivo geral é interpretar como o afastamento foi noticiado. O objetivo particular é analisar o telejornal à luz dos conceitos de jornalismo (Traquina, 2005), gêneros jornalísticos (Beltrão, 1969, 1976, 1980) e ética (Bucci, 2004).

Palavras-chave: Telejornalismo; Jornal Nacional; Impeachment; Dilma Rousseff; Ética.

 

ABSTRACT

On May 12, 2016, the Brazilian Senate approved the opening of the impeachment proceedings against the president Dilma Rousseff. Journalists who were covering the political crisis reported these historic moment from the capital of the country, Brasília. This article analyzes the Jornal Nacional, the main TV newscast in Brazil, produced by Rede Globo. The overall objective is to interpret how the impeachment was reported. The study used concepts from Traquina (2005), Beltrão (1969, 1976, 1980) e Bucci (2004).

Keywords: Television journalism; Jornal Nacional; Impeachment; Dilma Rousseff; Ethic.

 

Introdução

Refletir sobre o Jornal Nacional talvez seja “chover no molhado”, visto que ele é um objeto de estudo recorrente em dissertações de Mestrado e teses de Doutorado produzidas Brasil afora em Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social. Ciente disso, esta pesquisa pretende assumir como inovação a proximidade temporal entre o objeto escolhido – a edição do telejornal do dia 12 de maio de 2016 – e a realização de uma análise sobre o seu conteúdo, meses após sua veiculação, com vistas a problematizar a presença (ou ausência) da ética jornalística.

A análise se deu, ainda, em meio ao contexto de polarização política que marcou o Brasil nos primeiros seis meses de 2016. Se fosse possível adotar uma única imagem para ilustrar o clima político à época, essa imagem teria as cores de um país dividido. De um lado o vermelho, de outro o verde e amarelo. De um lado os setores ligados à base eleitoral do Partido dos Trabalhadores (PT) clamando pelo respeito à democracia; de outro os contrários ao ideário petista se apropriando das cores da bandeira e de figuras como o juiz da Operação Lava Jato1, Sérgio Moro, para pedir o fim do governo Dilma Rousseff. Ambos os grupos2, igualmente afetados pela crise econômica que atingiu o país a partir de 2015, apresentavam, no plano dos discursos e da produção de sentidos, um mesmo objetivo: lutar por um Brasil mais justo e democrático.

É possível marcar as eleições de 2104 – definidas com uma apertada vitória de Dilma sobre o tucano Aécio Neves por três milhões de votos – como o ponto de partida para uma série de fatos que, em 12 de maio de 2016, resultaram na admissibilidade do pedido de impeachment pelo Senado Federal e, consequentemente, provocaram o afastamento da presidente da República e a ascensão ao poder do seu vice, o peemedebista Michel Temer. O que ocorreu após a eleição – a falta de diálogo entre o Executivo e o Legislativo, o mau desempenho da economia e os desdobramentos da Operação Lava Jato – foi determinante para agravar a crise política e levar milhares de pessoas às ruas em manifestações pelo país.

Os veículos de imprensa deram ampla cobertura aos fatos. Mas como foi essa cobertura? Ela seguiu os princípios estabelecidos pela ética jornalística? Para investigar essa questão de pesquisa, o presente estudo elenca três categorias a priori – jornalismo, gêneros jornalísticos e ética – que servirão de base para análise.

 

Do conceito de jornalismo à ética nas redações

Na tentativa de definir jornalismo, Traquina (2005) apresenta três ideias que representam condições sine qua non para o exercício da profissão. A primeira: jornalismo é uma atividade intelectual, realizada em um contexto de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa. A segunda: só pode haver jornalismo em um regime democrático. E, a terceira: em regimes democráticos e imprensa livre as notícias se tornam, não raro, mercadoria – por isso, o jornalismo é, em última instância, a tensão entre o polo econômico, que vê as notícias como mercadoria, e o “ideológico3”, que as define como serviço público. Enquanto o primeiro está relacionado a como as empresas lidam com a notícia, o segundo tem a ver com o modo como os profissionais percebem o papel que exercem na sociedade.

As liberdades são reais, mais seria uma visão romântica da profissão imaginar que o jornalismo é a soma de todos os jornalistas a agir em plena liberdade. Uma pergunta permanente é precisamente até que ponto um jornalista é livre e são livres os jornalistas. A resposta teórica deste livro reconhece uma “autonomia relativa” do jornalismo, mas reconhece também que a atividade jornalística é altamente condicionada (TRAQUINA, 2005, p. 25).

Primeira categoria a priori deste artigo, o conceito de jornalismo se relaciona com o objeto de estudo na medida em que o Jornal Nacional apresenta os pressupostos citados por Traquina: é uma construção intelectual/criativa da realidade, está inserido no contexto de uma democracia e sofre a influência direta da tensão entre os polos econômico e “ideológico”.

A definição de jornalismo, no entanto, não é suficiente para uma análise da edição apresentada em 12 de maio de 2016. É preciso observar, também, aspectos como o processo de seleção das notícias que serão veiculadas em um determinado produto jornalístico. Entre a discussão inicial da pauta e a edição das matérias há muitas escolhas a serem feitas. Uma delas, ainda nas primeiras etapas de construção do conteúdo, refere-se ao gênero e ao formato em que a pauta será apresentada.

Pioneiro dos estudos de jornalismo no Brasil, Luiz Beltrão publicou, entre os anos 70 e 80, a trilogia Imprensa Informativa (1969), Jornalismo Interpretativo (1976) e Jornalismo Opinativo (1980). Ainda que nunca tenha se referido à expressão “gênero jornalístico”, nessas três obras ele lançou as bases dos estudos sobre o tema no país. Para Beltrão, o jornalismo está baseado em três categorias: a informativa (notícia, reportagem, história de interesse humano ou informação pela imagem), a interpretativa (reportagem em profundidade) e a opinativa (editoriais, artigos, crônicas, opinião ilustrada e opinião do leitor). Essa divisão, de acordo com o jornalista, professor e pesquisador, é feita a partir da função de cada categoria: informar (informativo), explicar (interpretativo) e orientar (opinativo) – funções que são, para Beltrão, as três principais atribuições do jornalismo.

Em Imprensa Informativa (1969) o autor dá ênfase à primeira categoria elencando os aspectos que envolvem a produção da notícia, discutindo a noticiabilidade e ressaltando as características da linguagem jornalística. Entre elas está a impessoalidade, que equivale, nesse contexto, à “objetividade jornalística” ou, simplesmente, à “neutralidade”. Beltrão é muito claro: para ele, o jornalista deve se restringir a contar os fatos, sem emitir os seus julgamentos, deixando a opinião para aqueles profissionais que são, de fato, comentaristas.

O jornalista (...) narra os fatos. Não dá opinião, não torna públicas as suas reações pessoais. Procura atingir o máximo de imparcialidade porque (...) os fatos são sagrados; só o comentário é que é livre. (...) o noticiarista comum (...) deve cuidar de que a notícia reflita o acontecimento tal como sucedeu, deixando a outrem e ao leitor a tarefa de chegar, por sua conta e risco, às próprias conclusões (BELTRÃO, 1969, p.107).

A segunda categoria citada por Beltrão é a interpretativa. Para ele, se o jornalismo informativo visa apurar, redigir e transmitir as informações, o interpretativo precisa ir além, com reportagens em profundidade, contextualizando, apurando e interpretando os fatos. Beltrão (1976, p. 51) argumenta que “é necessário esquadrinhar sua entranha, procurando seus antecedentes melhores, e projetar uma visão futura, formulando um prognóstico atilado, sóbrio e inteligente, para não cair em demasias subjetivas”. Segundo Luiz Beltrão:

O produto distribuído à massa é a informação em toda a sua integridade, captada, analisada e selecionada pelo jornalista, ao qual não cabe o diagnóstico, do mesmo modo que no corpo de uma matéria redacional não cabe a propaganda de um produto, bem ou serviço determinado. O diagnóstico do jornalista ou do grupo empresarial, será lícito quando, a exemplo do anúncio publicitário, for exposto na seção ou no programa competente, de editoriais e colaboração dos jornais ou dos comentários e apreciações críticas em horários e ocasiões pré-determinados no rádio e na televisão (BELTRÃO, 1976, p. 52).

O “diagnóstico” a que o autor se refere nada mais é do que a expressão da terceira categoria elencada por ele, a opinativa, descrita em Jornalismo Opinativo, de 1980. Na obra Beltrão discute a opinião pública e nega a passividade do receptor do conteúdo jornalístico. Ele afirma existirem três possibilidades de opinião no jornalismo: a do editor/veículo de comunicação, a do jornalista e a do leitor/receptor. Sustenta que, em muitas editorias, não basta apenas informar: é preciso analisar, interpretar, ajudar o leitor a formar uma opinião.

Essa opinião, porém, não pode ser exposta sem base na técnica, na ética e no interesse social. Conforme Beltrão (1980), é fundamental seguir três passos: 1) dominar a informação – calcular sua extensão e alcance, inteirar-se amplamente de suas causas, seus aspectos significativos e sua sequência lógica; 2) reger a informação – levá-la ao conhecimento público segundo as normas éticas que regem o jornalismo; 3) assistir à informação – acompanhar os seus efeitos imediatos e mediatos, não “abandoná-la” à própria sorte. Para o pioneiro nos estudos sobre jornalismo no Brasil, a opinião faz parte do papel da imprensa:

(...) o jornal tem o dever de exercitar a opinião: ela é que valoriza e engrandece a atividade profissional, pois, quando expressa com honestidade e dignidade, com a reta intenção de orientar o leitor, sem tergiversar ou violentar a sacralidade das ocorrências, se torna fator importante na opção da comunidade pelo caminho mais seguro à obtenção do bem-estar (...) (BELTRÃO, 1980, p. 14).

Para ser expressa com honestidade e dignidade, a opinião precisa atender aos princípios éticos tão caros ao jornalismo. Derivada do grego éthos, a palavra ética abrange duas dimensões. Uma se relaciona ao indivíduo; a outra diz respeito à sociedade. Conforme Bucci (2004, p. 16), “a conduta ética é fruto da decisão do agente – é por ter racionalidade e liberdade, ou por ter o ‘livre-arbítrio’, como prega a tradição cristã, que ele é senhor de seus atos – mas essa decisão individual tem lugar na sociedade”. Ou seja: o sujeito tem autonomia para agir, mas não o faz sem a influência dos valores da sociedade em que vive.

Aplicada ao jornalismo ou a qualquer outro campo profissional, a ética só tem sentido na prática; ela não é, portanto, um “receituário”, como destaca Bucci (2004, p. 15), mas, antes, “um modo de pensar que, aplicado ao jornalismo, dá forma aos impasses que requerem decisões individuais e sugere equações para resolvê-los”. Um bom ponto de partida para abordar o tema da ética jornalística é situar, no cerne de qualquer uma de suas possíveis acepções, os pressupostos básicos da liberdade de imprensa como a defesa da verdade e da justiça; a pluralidade de opiniões e de pontos de vista; a constante e atenta vigilância dos atos do governo. Não há jornalista que discorde dessas premissas – se o fizesse, iria contra a liberdade de imprensa. No entanto, nem sempre esses pressupostos são de fácil aplicação – ainda mais no contexto dos meios no Brasil, como argumenta Bucci:

Como pode a imprensa fiscalizar o poder – um de seus deveres supremos – se ela se converteu num negócio transnacional, oligopolizado em conglomerados da mídia que trafica influência junto aos governos para conseguir mais concessões de canais e mais facilidades de financiamentos públicos? Onde está a independência do jornalismo? (BUCCI, 2004, p. 12).

Entre os jornalistas, essa falta de independência diz respeito a um dilema situado em um contexto macro, referente ao modo como o profissional se relaciona com o posicionamento da empresa em que trabalha. Embora a decisão ética seja sempre de foro individual, ela é tomada dentro de um ambiente organizacional – o que pode gerar consequências nem sempre agradáveis para quem não segue a “cartilha”. Mas também existem dilemas mais rotineiros, “de ordem mais comezinha” (BUCCI, 2004, p. 20). São situações em que o jornalista não está optando entre fazer o certo e o errado, mas, antes, se vê diante de duas alternativas igualmente corretas – e lícitas. Um exemplo é o caso abaixo:

É justo devassar a intimidade de alguém? Não, todo mundo sabe. Mas, de novo, não é com tanta simplicidade que essas dúvidas costumam aparecer. Pergunte-se outra vez: é justo investigar a intimidade de alguém que esteja exercendo uma função pública e guarda, em sua intimidade, práticas suspeitas que envolvem o Estado? O dilema ético do jornalista, por excelência, é deste tipo. Não se trata apenas de uma hesitação, portanto, entre o certo e o errado (BUCCI, 2004, p. 20).

Bucci, longe de apontar uma saída prática, faz algumas considerações pertinentes no debate sobre a ética jornalística. Pondera que não há como esperar que as redações sejam “ilhas de ética” dentro de empresas que realizam operações não raro escusas; faz um paralelo afirmando que isso seria o mesmo que esperar uma boa medicina dentro de um hospital que compra remédios falsificados. No campo do jornalismo, diz ele, a ética é um pacto de confiança entre a instituição jornalística – no caso a empresa de comunicação – e o público que a tem como referência de compromisso com as funções de informar, explicar e orientar. Por fim, “a ética interna das redações e a ética pessoal dos jornalistas devem ser cultivadas, aprimoradas e exigidas, mas elas só são plenamente eficazes quando as premissas da liberdade de imprensa estão asseguradas” (BUCCI, 2004, p. 25). Em outras palavras, há um desrespeito à ética, por exemplo, quando um telejornal não contempla a pluralidade de opiniões sobre um determinado acontecimento, quando “sugere” e “deixa no ar” uma interpretação fechada de uma notícia e, principalmente, quando não concede ao público a oportunidade de, a partir de tudo o que foi mostrado, formar a sua própria visão.

 

Jornal Nacional: algumas considerações

Quando estreou, em 1° de setembro de 1969, o Jornal Nacional ia ao ar de segunda-feira a sábado, tinha 15 minutos de duração e era dividido em notícias locais, nacionais e internacionais. As manchetes eram lidas por dois apresentadores, Hilton Gomes e Cid Moreira. Já na primeira edição o telejornal inaugurou uma das marcas preservadas até hoje: o hábito de encerrar com uma notícia mais leve, mais “positiva”. À época essa foi uma ruptura relevante em relação ao que era feito pelo Repórter Esso, até então a principal referência de jornalismo no rádio e na televisão, que encerrava as edições com a informação mais importante do dia. Outra ruptura foi a inclusão das “sonoras”, ou seja, as falas dos entrevistados. “No nosso telejornal, além de imagens cobertas com áudio do locutor, inseríamos depoimentos, com voz direta, da pessoa falando”, explicou Armando Nogueira em entrevista ao Memória Globo (NOGUEIRA apud MEMÓRIA GLOBO, 2005, p. 34).

De 1969 a 2016 o Jornal Nacional passou por inúmeras transformações tecnológicas, estéticas e editoriais. Entre as mudanças mais marcantes estão a substituição dos locutores por jornalistas envolvidos na produção das notícias; a presença de apresentadoras; e o cenário suspenso, em um mezanino, mostrando a redação, ao fundo, em tempo real. Em 47 anos, o telejornal viu o cenário das mídias – e o contexto político brasileiro – se transformar. Nesse período, o Brasil foi governado por uma junta militar (em 1969, devido à doença do então presidente Costa e Silva), por três presidentes militares (Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo), por quatro presidentes eleitos democraticamente, por voto direto (Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff) e por três presidentes interinos (José Sarney, que assumiu no lugar de Tancredo Neves, morto antes de tomar posse; Itamar Franco, conduzido ao cargo após o impeachment de Fernando Collor; e Michel Temer, alçado ao posto após o afastamento de Dilma Rousseff pelo Senado). O que não mudou, no entanto, foi o que Ramos chamou de “os piores traços do telejornalismo norte-americano” (2005, p. 145). Segundo ele, o Jornal Nacional, desde o seu início, “comprometeu-se com o gênero informativo, pelo dogma do fetichismo da objetividade, para posar como neutro. A neutralidade foi o grande álibi, para escamotear os seus comprometimentos ideológicos”.

 

Jornal Nacional: a edição de 12 de maio de 2016

O Jornal Nacional de 12 de maio de 2016 teve 1h07min49s e foi quase integralmente dedicado à notícia do dia: a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff no Senado e seu afastamento por um prazo máximo de 180 dias. O telejornal levou ao ar 19 “unidades de conteúdo”, sendo 12 matérias4, seis notas5 e uma sonora6. O tom dessa edição foi dado já na escalada7 lida por William Bonner e Renata Vasconcellos:

 

 

Roda vinheta e, depois dela, Renata chama a primeira matéria:

Foram mais de 20 horas de sessão até o resultado final. Às 6 e 33 da manhã, o Senado aprovou a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Com isso, ela fica afastada do cargo por até 180 dias (neste momento a imagem fecha em Renata, que passa a falar para outra câmera). Cinquenta e cinco senadores votaram a favor do afastamento. Isso representa um voto a mais do que dois terços do Senado, o quórum que vai ser exigido para condená-la em definitivo, ao fim do julgamento.

Bonner chama o próximo conteúdo: “A presidente afastada, Dilma Rousseff, recebeu apoio de manifestantes na saída do Palácio do Planalto. Logo que foi informada oficialmente do afastamento, ela disse, em discurso, que vai lutar até o fim”. Dando sequência ao telejornal, Renata lê a cabeça da matéria que recupera o contexto político que culminou com o afastamento da presidente. “Desde que o processo de impeachment começou a tramitar na Câmara até a manhã de hoje, quando Dilma Rousseff foi afastada temporariamente pelo Senado, foram cinco meses e dez dias de intensa batalha política”.

Bonner chama o VT seguinte, sobre os argumentos que embasaram o processo:

No pedido de impeachment, os juristas Miguel Reale Júnior, Janaina Paschoal e Hélio Bicudo denunciaram a presidente Dilma Rousseff pelas agora famosas “pedaladas fiscais” e por editar decretos que aumentaram gastos do governo sem a autorização do Congresso, como exigiria a lei. (Bonner passa a falar para a câmera da grua, a mesma em que Renata deu início ao telejornal. Enquanto o apresentador lê a cabeça, a câmera vai se aproximando). Segundo a denúncia, são esses os crimes de responsabilidade de Dilma.

A matéria que aparece na sequência é chamada por Renata:

Na saúde de qualquer empresa, os erros e os acertos dos administradores aparecem em números. E isso vale também para os países, quando se olha os índices de inflação, de emprego, de crescimento. O repórter Roberto Kovalick e o comentarista de economia, Carlos Alberto Sardenberg, mostram agora o que dizem os números da economia brasileira.

O VT é o penúltimo do primeiro bloco do telejornal. A matéria que encerra essa primeira parte foi chamada por Bonner: “A presidente afastada terá todo o período de julgamento do Senado para tentar provar sua inocência e voltar ao poder. E ela já disse que lutará até o fim”, diz o apresentador, completando em outra câmera: “A trajetória política de Dilma até aqui foi marcada por êxitos eleitorais, pelo comando de ações estratégicas como o PAC, por altos e baixos na popularidade e, também, por desafios e problemas”.

Após a matéria, Renata encerra o primeiro bloco: “A seguir: o primeiro dia do presidente em exercício”. Bonner completa: “E a carreira política de Michel Temer”. Roda a vinheta e o telejornal vai para o intervalo. Bonner começa o segundo bloco:

O presidente em exercício Michel Temer, do PMDB, defendeu hoje um governo de salvação nacional para combater a crise econômica, no primeiro pronunciamento dele ao país. Temer também pediu confiança nos valores do povo brasileiro, na democracia e nas instituições. Temer tomou posse no fim da manhã.

Corta para o estúdio e Renata chama o próximo conteúdo. “Michel Temer é conhecido pelo estilo conciliador e discreto. E se mantém fiel ao PMDB”, diz a apresentadora. Na sequência, Bonner chama o intervalo: “A seguir: os próximos passos do processo de impeachment de Dilma Rousseff no Senado”. Renata completa: “E os dias de alta tensão na política em Brasília”. Na volta do comercial, a apresentadora chama a primeira matéria do terceiro bloco: “O presidente do Supremo Tribunal Federal assumiu hoje o comando do processo de impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff”. Ao fim do VT, Bonner segue o telejornal: “Essa foi uma semana intensa no Brasil por causa da política. Para os cidadãos, para os próprios políticos e também para nós, jornalistas, encarregados de mostrar tudo o que estava acontecendo”. Depois, Renata lê uma nota:

Quatro jornalistas da TV Globo e da GloboNews em Brasília, os repórteres Marcelo Cosme, Zileide Silva, Roniara Castilhos e Wesley Araruna, foram agredidos, hoje, quando acompanhavam a saída da presidente afastada, Dilma Rousseff, do Palácio do Planalto. Eles foram levados pela assessoria de imprensa do Planalto para um local próximo à rampa, onde Dilma Rousseff discursaria. No mesmo local, manifestantes começaram a gritar contra a presença da imprensa. Os jornalistas foram xingados e, três deles, empurrados e chutados. Os quatro estão bem.

Após a leitura da nota, Bonner lê um comunicado da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão repudiando as agressões, e Renata lê a nota da Associação Brasileira de Imprensa deplorando a violência aos jornalistas no exercício da profissão. Bonner chama o intervalo: “A seguir a cobertura da imprensa internacional sobre a crise”.

Na volta do comercial, Bonner lê: “O afastamento da presidente Dilma Rousseff foi destaque, hoje, na imprensa mundial”. Depois dessa matéria, Renata chama uma sonora do juiz Sérgio Moro, que comanda os julgamentos em primeira instância dos crimes identificados pela Operação Lava Jato: “O juiz Sérgio Moro pediu firmeza no combate à corrupção. Ele falou numa palestra ontem à noite na Universidade Estadual de Maringá, onde se formou”. Na sequência, Bonner lê uma nota sobre a suspensão da coleta de provas contra o senador Aécio Neves – um dos principais líderes da oposição ao governo petista:

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a coleta de provas contra o senador Aécio Neves, do PSDB, e pediu que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, reavalie se quer manter o pedido de investigação sobre o suposto esquema de corrupção em Furnas. Ontem, Gilmar Mendes tinha autorizado abertura de inquérito. Hoje, o senador Aécio Neves apresentou novos documentos, e Gilmar Mendes considerou que esses documentos podem demonstrar que o pedido para abertura de inquérito ocorreu sem novas provas.

Após a nota, Renata chama a última matéria do quarto bloco do telejornal: “Gilmar Mendes tomou posse hoje como presidente do Tribunal Superior Eleitoral”. Após o VT, Bonner chama o último intervalo: “A seguir, o décimo dia de revezamento da tocha olímpica”. O último bloco do Jornal Nacional de 12 de maio de 2016 começa com o registro de uma manifestação contrária ao impeachment na principal avenida de São Paulo.

Um ato contra o impeachment fechou a Avenida Paulista em São Paulo. Os manifestantes caminharam em direção à sede da Federação das Indústrias, que defende o impeachment. A polícia fez uma barreira em frente ao prédio da FIESP. Perto dali, os manifestantes acenderam uma fogueira e queimaram patos amarelos de plástico, que é símbolo da campanha da federação contra o aumento de impostos. Trinta mil pessoas participaram do protesto, segundo os organizadores. A polícia não divulgou nenhum número.

O Jornal Nacional veiculado no dia 12 de maio de 2016 – sintetizado no espelho8 abaixo – termina com Renata lendo uma nota sobre a tocha olímpica.

 

 

A nálise: a edição do dia em que a presidente caiu

Neste artigo utilizaremos a análise de conteúdo (BARDIN, 1977) para interpretar o Jornal Nacional de 12 de maio de 2016. A técnica se resume à articulação entre a descrição da superfície dos textos (o que é visível) e a dedução lógica dos fatores, implícitos, que determinam essas características. “O que se busca estabelecer (...) é uma correspondência entre as estruturas semânticas ou linguísticas e as estruturas psicológicas e sociológicas”, afirma Bardin (1977, p. 41). A análise de conteúdo apresenta três etapas: pré-análise; exploração do material; e tratamento dos resultados, inferência e interpretação dos dados.

A primeira fase, da pré-análise, é um momento de organização que prevê a escolha dos documentos a serem submetidos à análise; a formulação de hipóteses e objetivos; e a elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final (BARDIN, 1977). No contexto deste artigo foi feito, na fase de pré-análise, um primeiro recorte: neste estudo apenas interessam conteúdos relacionados ao afastamento da presidente. O que não estava em consonância com esse critério foi desprezado no corpus, que ficou assim distribuído:

 

 

O presente artigo tem, como questões de pesquisa, três inquietações essenciais. A primeira diz respeito à categoria jornalismo (TRAQUINA, 2005): o Jornal Nacional cobriu o afastamento da presidente privilegiando o polo econômico ou o polo “ideológico” do jornalismo? A segunda questão de pesquisa se refere aos gêneros jornalísticos: há espaço, na edição analisada, para outro gênero além do informativo? Por fim, a terceira inquietação faz um questionamento ético. O afastamento foi noticiado com base nos pressupostos éticos que permeiam o jornalismo e estão na base da liberdade de imprensa como a defesa da verdade e da justiça; e a pluralidade de opiniões e de pontos de vista?

Bardin (1977, p. 100) afirma que a última missão da pré-análise consiste na referenciação dos índices e na elaboração de indicadores. Neste artigo optamos por estabelecer como índice a presença ou ausência de elementos passíveis de questionamentos sob a perspectiva das categorias definidas a priori – jornalismo, critérios de noticiabilidade, gêneros jornalísticos e ética. São palavras, expressões, imagens ou partes das matérias da edição de 12 de maio que provocam questionamentos sobre a real intenção do Jornal Nacional. Quanto aos indicadores, optamos por considerar cada conteúdo como uma unidade e, assim, agrupar essas unidades segundo a existência dos índices estabelecidos.

Uma vez definido o índice – a presença ou ausência de elementos passíveis de questionamentos sob a perspectiva das categorias definidas a priori – e os indicadores – o agrupamento dos conteúdos enquanto unidades –, podemos submeter o corpus à categorização. Embora não seja uma etapa obrigatória da análise de conteúdo, essa categorização nos proporcionará mais um recorte: o dos conteúdos que, dentre todos os que compõe o corpus, apresentam elementos questionáveis a partir da perspectiva dos conceitos de jornalismo, critérios de noticiabilidade, gêneros jornalísticos e ética. Nesse sentido, foram definidas duas categorias: questionável, para agrupar os conteúdos que apresentam o índice; e inquestionável, para reunir os demais. A distribuição dos conteúdos ficou assim:

 

 

Essa categorização permite afirmar que, das 14 matérias analisadas, seis estão na categoria inquestionável, ou seja, não apresentam elementos que poderiam ser questionados do ponto de vista dos conceitos de jornalismo, critérios de noticiabilidade, gêneros jornalísticos e ética. Essas matérias, portanto, serão descartadas nesta análise, que enfocará as matérias que apresentaram elementos possíveis de serem debatidos à luz dos conceitos:

 

 

Considerações finais

O telejornal cobriu a votação da admissibilidade do impeachment, fazendo uma boa contextualização de como foi a sessão do Senado que culminou com a abertura do processo. Acompanhou o dia da presidente afastada, Dilma Rousseff, e do presidente em exercício, Michel Temer, narrando todos os passos dados por eles desde que foram notificados pelo senador Vicentinho Alves. Contextualizou a crise política, pontuando, cronologicamente, como o processo se desenvolveu. Explicou o que são as pedaladas fiscais e a emissão de decretos de abertura de créditos suplementares; proporcionou ao público uma visão geral do cenário econômico brasileiro e das possiblidades de mudança em longo prazo. Além disso, recuperou as trajetórias políticas de Dilma e Temer, informou sobre os próximos passos do processo de impeachment, mostrou os bastidores da cobertura da imprensa na semana decisiva para o governo e noticiou a agressão a jornalistas da Globo.

É possível inferir ainda que o Jornal Nacional se preocupou em mostrar a repercussão do afastamento da presidente na imprensa internacional e buscou, por meio da inclusão de uma sonora gravada na noite anterior, associar a abertura do processo de impeachment a um dos personagens frequentemente citados pelos apoiadores da saída de Dilma, o juiz Sérgio Moro. O telejornal ainda “colou” nessa edição histórica a notícia da suspensão da coleta de provas contra o senador Aécio Neves devido à corrupção em Furnas e, no VT que mostrou a posse do novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, aproveitou para reforçar a legitimidade do vice Michel Temer no poder, contrariando o “discurso do golpe” do PT.

Se a cobertura do afastamento da presidente Dilma correspondeu ao dia noticioso, no entanto, não significa que ela tenha sido feita em concordância com o conceito de jornalismo utilizado neste artigo como categoria a priori. A primeira questão de pesquisa aqui proposta, desta forma, referente à tensão entre os polos econômico e “ideológico” do jornalismo, pode ser respondida afirmando que o Jornal Nacional de 12 de maio de 2016, embora tenha noticiado os fatos relevantes do ponto de vista jornalístico, não o fez de maneira isenta, não privilegiou o polo “ideológico” – no sentido de Traquina, relacionado ao serviço público – da profissão. Se o tivesse feito teria primado pelo equilíbrio e não teria, nas entrelinhas, assumido postura contrária à permanência da presidente e ao que nos referimos anteriormente como “discurso do golpe”.

No que diz respeito aos gêneros jornalísticos, uma vez identificada a posição do Jornal Nacional, é possível questionar a objetividade das matérias apresentadas – especialmente a do VT sobre os números da economia, em que os gêneros interpretativo e opinativo se misturam e oferecem ao público uma leitura “pronta” da situação. Dessa forma, a matéria contraria ideia apresentada por Beltrão (1976), de que não cabe ao jornalista, no gênero interpretativo, fazer um “diagnóstico”. Esse diagnóstico deve ser feito pelo próprio público que, munido das informações e da pluralidade de opiniões veiculadas na imprensa, tem a capacidade de formar a própria visão. Dessa forma, comprova-se o que afirma Ramos (2005): o Jornal Nacional está, ainda hoje, pautado pelo gênero informativo e pelo dogma da objetividade; a neutralidade segue sendo o seu grande álibi para escamotear comprometimentos ideológicos. O problema maior não seria nem um eventual comprometimento partidário – embora essa postura seja inadmissível em uma emissora de TV que, por ser concessão pública, deveria primar pelo direito à informação livre de posições políticas de quaisquer ordens. O problema é vender-se como isento, como objetivo e imparcial e, nas entrelinhas, posicionar-se de modo a orientar o público a assumir determinada posição como verdade.

Em suma, essas questões nos levam à reflexão ética que motivou este artigo – e que constitui a última questão de pesquisa aqui proposta. O afastamento da presidente Dilma Rousseff foi noticiado com base nos pressupostos éticos que permeiam a profissão de jornalista e que estão na base da liberdade de imprensa como a defesa da verdade e da justiça; a pluralidade de opiniões e de pontos de vista; e a constante vigilância dos atos do governo? Em uma palavra: não. A cobertura do afastamento da presidente Dilma foi noticiada conforme uma visão de mundo específica, partindo da perspectiva de que o impeachment foi legítimo, atribuindo à gestão petista a culpa pela crise econômica e dando um certo tom de otimismo ao novo governo, do peemedebista Michel Temer. Assim, travestindo-se de altamente profissional, isenta e ética, foi construída a edição do Jornal Nacional do dia em que a presidente caiu. Os dados aqui discutidos indicam que a pluralidade de opiniões foi suprimida; e a liberdade de imprensa, pensamento e expressão, tão cara à democracia, foi ultrajada. Momentâneas, essas considerações ainda precisam ser validadas em uma perspectiva histórica, já que o processo observado em maio de 2016 ainda está em andamento – e as suas consequências só poderão ser integralmente compreendidas aos olhos da História, e não mais do Jornalismo.

 

Referências bibliográficas

Bardin, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. 226 p.         [ Links ]

Beltrão, L. A imprensa informativa. São Paulo: Americana, 1969, p. 424.         [ Links ]

. Jornalismo interpretativo: filosofia e técnica. Porto Alegre: Sulina, 1976. 120 p.

. Jornalismo opinativo. Porto Alegre, Sulina, 1980. 118 p.

Blázquez, N. Ética e Meios de Comunicação. São Paulo: Paulinas, 1999. 711 p.         [ Links ]

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Jornal nacional. Rede Globo de Televisão. 12 maio 2016. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/5020592/. Acesso em: 11 jun. 2016.

Memória globo. Jornal Nacional: a notícia faz história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. 407 p.         [ Links ]

Ramos, R. Rede Globo e a ditadura militar: atualização histórica e ideologia. In: Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 143-148, jul./dez.2005.         [ Links ]

Traquina, N. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2005.p.223        [ Links ]

 

NOTAS

1 Megaoperação contra a corrupção iniciada em março de 2014 no Brasil (N. A.).

2 Para efeitos de contextualização do clima político, optou-se por descrever os dois polos mais “exaltados” do ponto de vista da realização de manifestações públicas. É importante reconhecer, contudo, que em uma democracia complexa como a brasileira faz-se impossível mapear todos os alinhamentos políticos e ideológicos existentes. A adoção de dois polos, portanto, é uma generalização necessária para facilitar a descrição do clima político – mas nem de longe dá conta de abranger a realidade complexa e multifacetada da política brasileira.

3 Traquina utiliza o termo “ideologia” no sentido de defender que o jornalismo está calcado no interesse público.

4 Nas redações de televisão, “matéria” é chamada genericamente de “VT” (N.A.).

5 Uma nota corresponde a uma informação breve que pode ou não ser ilustrada com imagens (N.A.)

6 Trecho da fala de uma fonte (N.A.).

7 Em televisão, “escalada” é o nome que se dá às manchetes apresentadas na abertura do telejornal. A escalada tem como objetivo chamar a atenção do público para que ele continue assistindo àquele programa (N.A.)

8 Nas redações de televisão, “espelho” é o nome que se dá à organização das matérias conforme a ordem de entrada, o tempo e o tipo de conteúdo que elas representam no contexto de um telejornal (N.A.).

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