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Observatorio (OBS*)
versão On-line ISSN 1646-5954
OBS* vol.11 no.4 Lisboa dez. 2017
Quadro europeu de referência para a competência digital: subsídios para a sua compreensão e desenvolvimento
The European digital competence framework: contribution for its comprehension and development
Margarida Lucas*, António Moreira** e Nilza Costa***
*Centro de Investigação em Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (CIDTFF), Departamento de Educação e Psicologia, Universidade de Aveiro
**Centro de Investigação em Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (CIDTFF), Departamento de Educação e Psicologia, Universidade de Aveiro
***Centro de Investigação em Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (CIDTFF), Departamento de Educação e Psicologia, Universidade de Aveiro
RESUMO
A competência digital dos cidadãos europeus continua longe do desejável para as necessidades de uma economia e sociedade altamente digitalizadas, sendo assim premente a necessidade de se estabelecer uma resposta global ao défice digital. A criação, em 2013, de um quadro europeu de referência para a compreensão e desenvolvimento da competência digital foi um passo nessa direção, mas os esforços para a sua aplicação continuam a ser de difícil concretização, em particular em Portugal. A importância do quadro consubstancia-se no contributo para a clarificação das principais componentes da competência digital, bem como para o estabelecimento de uma linguagem sólida e partilhada sobre a mesma. Porém, o seu principal objetivo é promover o desenvolvimento de iniciativas, para já nas áreas da educação, formação e emprego, que melhorem os níveis de competência digital dos cidadãos europeus.
Este artigo tem um duplo objetivo: apresentar, fundamentadamente, o quadro europeu de referência para a competência digital e mapear iniciativas que têm surgido como consequência da sua existência. Estas, assim como o défice de outras, serão discutidas neste artigo na medida em que poderão servir de base para o desenvolvimento futuro de ações que valorizem a relevância da competência digital de qualquer cidadão e sugerir áreas de trabalho a serem desenvolvidas.
Palavras-chave: DigComp, tecnologias digitais, sociedade digital, educação, formação, emprego, certificação
ABSTRACT
The level of European citizens’ digital competence remains far from desirable for the needs of a highly digitized economy and society and the need for the EU to establish a comprehensive response to the digital skills deficit is rising. The creation of a common framework for the development and understanding of digital competence in 2013 was a step in the right direction, but the efforts towards its application continue to prove slow in its realization in Portugal. This article has a double objective. The first is to present the European framework for the development and understanding of digital competence. The second is to map initiatives that have emerged as a consequence of its existence. These, as well as the deficit of others, can help develop actions that value a relevance of the digital competence of any citizen and suggest areas of work to be developed, particularly in the Portuguese context. The importance of the framework is to clarify the main components of digital competence, as well as to establish a solid and shared language on the same. However, its main objective is to promote the development of initiatives in the areas of education, training and employment that can improve the digital competence of European citizens.
Keywords: DigComp, digital technologies, digital society, education, training, employment, certification
A competência digital no contexto europeu
Em 2006, o Parlamento Europeu e o Conselho apresentaram uma recomendação que inclui oito competências-chave a desenvolver através da aprendizagem ao longo da vida, enquanto medida fundamental da resposta europeia à globalização e à transição para economias baseadas no conhecimento (Parlamento Europeu e Conselho, 2006). A competência digital é uma dessas competências-chave, considerada transversal ao desenvolvimento de todas as outras competências-chave, e essencial para uma inclusão social satisfatória, para a participação cívica ativa e consciente na sociedade e na economia e, ainda, para o crescimento competitivo, inteligente e sustentável da sociedade atual (Comissão Europeia, 2010). A recomendação de 2006 espoletou o lançamento de uma série de iniciativas, sendo disso exemplos a Agenda Digital para a Europa1, a campanha eSkills for Jobs2, ou a Coligação para a Empregabilidade Digital3 que, em termos globais, visam combater o número de jovens e de trabalhadores com défice de competência digital e sensibilizar os sistemas de ensino, formação e qualificação profissional, bem como o meio empresarial, para as oportunidades disponibilizadas aos cidadãos digitalmente competentes.
Ao mesmo tempo, criou-se a necessidade de se desenvolver um quadro comum de referência que pudesse promover a compreensão e o desenvolvimento da competência digital dos cidadãos e fornecer um conjunto de indicadores que permitisse às entidades públicas e privadas melhorarem a orientação, desenvolvimento e avaliação dos percursos educativos e formativos de jovens, de desempregados, de trabalhadores, de futuros trabalhadores e dos cidadãos em geral. No entanto, e apesar da formulação de políticas que destacam a importância da digitalização da educação, dos serviços e da economia, a competência digital ainda não se encontra generalizada no espaço europeu, particularmente em Portugal, conforme dados abaixo.
Dados do Eurostat de 20144 revelavam que a disponibilidade de tecnologias digitais na Europa não se apresenta como obstáculo ao desenvolvimento da competência digital: praticamente 100% da população tinha acesso a telemóvel, 81% dos agregados familiares tinha acesso à Internet e 67% da população usava-a todos os dias. Em Portugal, 70% dos agregados familiares tinham acesso à Internet e 69% utilizava-a todos os dias. Mas ser-se digitalmente competente hoje em dia não depende apenas do acesso às tecnologias digitais, nem do saber utilizá-las, mas de um conjunto determinado de conhecimentos, habilidades e atitudes que resultam numa utilização eficaz, eficiente, adequada, crítica, criativa, autónoma, flexível, ética e reflexiva das mesmas (Ferrari, 2012). Com efeito, dados de 2016 sobre o Índice da Digitalidade da Economia e Sociedade (DESI5), relativos à competência digital, revelaram que 45% da população europeia tinha um nível de competência insuficiente. Destes, considerava-se que 21% não tinha qualquer nível de competência, uma vez que nunca usavam a Internet. Em Portugal, a percentagem de cidadãos que não usava a Internet, e que é, por isso, considerada sem competência, correspondia a 28%. No total, 52% da população portuguesa apresentava um nível de competência insuficiente. Apesar de ser um dos países a apresentar o crescimento mais rápido em relação ao nível de competência digital dos seus cidadãos, juntamente com a Holanda, Estónia, Alemanha, Malta e Áustria, Portugal ainda ocupa o 20º lugar entre os países da UE e continua a ter um défice de competência digital grave (Comissão Europeia, 2016).
Dados referentes aos estudantes europeus, de 2013, apontavam para que apenas 30% se podia considerar digitalmente competente e que havia ainda 28% que não tinha acesso a tecnologias digitais, nem no local onde estudavam nem em casa. De uma maneira geral, concluía-se que os estudantes não dispunham das competências necessárias para as utilizar de forma crítica e criativa (Comissão Europeia, 2013). Contrariamente à crença de que os chamados nativos digitais fazem um uso competente das tecnologias digitais, outros dados recentes referentes a Portugal, mostram que os jovens têm uma perceção positiva da sua competência digital, mas demonstram falta de competências de pesquisa, seleção e tratamento de informação usando a tecnologia. Também não duvidam espontaneamente da fiabilidade da informação que encontram na Internet e as pesquisas que efetuam resultam, normalmente, em conhecimento e compreensão insuficiente (Santos, Azevedo & Pedro, 2013; Kanitar, 2014). Os dados mostram ainda que os estudantes demonstram uma variação relevante em elementos da competência digital, como sejam a confiança na partilha de conteúdos, a consciência da identidade online, da privacidade e proteção ou a adequação do comportamento e ética online (Aresta, Santos, Pedro & Moreira, 2013; Santos, Azevedo & Pedro, 2013).
Em síntese, e apesar de se considerar que a competência digital é hoje fundamental para que qualquer cidadão possa beneficiar de diferentes aspetos da vida social, cultural, cívica, económica e de saúde (van Deursen, 2010; Ala-Mutka, 2011), os dados e estudos mencionados revelam que esta ainda não está suficientemente desenvolvida a diferentes e diversos níveis.
O mapeamento da competência digital, isto é a compreensão do que ela é e implica, requer a provisão de descritores que especifiquem termos de forma tão precisa quanto possível, a fim de garantir uma sobreposição substancial entre a conceção teórica e a descrição empírica. Ao longo dos últimos anos foram desenvolvidos vários referenciais e instrumentos com vista a operacionalizar esta competência (Eshet-Alkalai, 2004; Katz, 2007; Newman, 2008; Calvani, Fini & Ranieri, 2010; UNESCO, 2011). Uns colocam o enfoque na aplicação da tecnologia para executar diferentes tarefas, tais como definir, aceder, avaliar, gerir, integrar, criar ou comunicar (Katz, 2007; International Society for Technology in Education, 2007), enquanto que outros dividem a competência digital em áreas de competência, englobando, por exemplo, dimensões tecnológicas, cognitivas e éticas (Calvani et al., 2010) e/ou de literacia, incluindo a literacia fotovisual, da informação ou socioemocional (Eshet-Alkalai, 2004; Newman, 2008).
O desenvolvimento de diferentes iniciativas que enquadram a problemática da competência digital resultou numa pluralidade de perspetivas e de falta de coerência e coesão a nível europeu sobre o que é e como se pode mapear esta competência, algo que não aconteceu, por exemplo, em relação a outras competências-chave, como é o caso da comunicação em línguas estrangeiras, elemento considerado prioritário na consolidação de um espaço europeu de verdadeira mobilidade e de compreensão multicultural, onde coexistem múltiplas línguas. No caso vertente, procurava-se atribuir níveis de proficiência reconhecidas em toda a União Europeia (EU), facilitando, nomeadamente, a integração dos cidadãos em espaços que não os de proveniência. É nesta sequência que surge o Quadro Comum Europeu de Referência para as Línguas6 (QECR) e o processo de certificação de competências e qualificações linguísticas, consubstanciada no Passaporte de Línguas, disponível no Europass7.
Reconhecendo este aspeto e, ao mesmo tempo, o papel crucial que a competência digital desempenha na sociedade e economia atuais, a Comissão Europeia propôs o desenvolvimento de um quadro de referência que pudesse, por um lado, criar consenso a nível europeu sobre o que é e quais são as principais componentes da competência digital, potenciando, assim, a sua compreensão e desenvolvimento e que, por outro, permitisse uma aferição de descritores transversais que possibilitem a orientação, desenvolvimento e avaliação de diversas iniciativas. Foi neste âmbito que surgiu o projeto The Digital Competence Framework for Citizens, também conhecido por DigComp (que se tornou a forma comum de se lhe referir), do qual surgiu uma primeira proposta em 2013 (Ferrari, 2013) e duas atualizações da mesma: uma em 2016 (Vuorikari, Punie, Carretero & Van den Brande, 2016) e outra em 2017 (Carretero, Vuorikari & Punie, 2017).
É sobre este projeto, mais concretamente sobre o trabalho nele realizado quanto ao quadro de referência para a compreensão e desenvolvimento da competência digital que dele resultou, que o presente artigo se debruça. Nele apresentam-se alguns contributos para a clarificação do conceito de competência digital, definindo-o e distinguindo-o de outros. Apresenta-se posteriormente o quadro começando por uma visão geral do mesmo, elencando os seus objetivos, metodologia e estrutura. Seguidamente referem-se as áreas de competência definidas e as competências propostas para cada uma dessas áreas. Antes da conclusão apresentam-se, ainda, exemplos de conhecimentos, habilidades e atitudes, exemplos de aplicação de competências a diferentes propósitos e um exemplo da estrutura detalhada do quadro. Também se discutem algumas das implicações da sua utilização a níveis diversos, nomeadamente na formulação e apoio a políticas, no design instrucional para a educação, formação e emprego, bem como em processos de certificação, à semelhança do que já se constituiu em realidade no domínio das línguas, e que se antevê no Europass pela disponibilização de uma grelha de autoavaliação da competência digital8.
Literacia digital e competência digital: contributos para a clarificação de conceitos
Nos últimos anos, o conceito de competência digital tornou-se um conceito-chave na discussão sobre o que os indivíduos devem ser capazes de fazer e alcançar através da utilização de tecnologias e ferramentas digitais. É um conceito amplo, multidimensional, complexo e interligado, que cobre várias áreas de estudo (Calvani et al., 2010; Ferrari, 2012) e dinâmico, uma vez que tende a acompanhar a evolução das tecnologias e a sua utilização na sociedade (Ala-Mutka, 2011). É, também, um conceito com matizes políticas (Ilomäki, Paavola, Lakkala & Kantosalo, 2014), uma vez que reflete os objetivos políticos e as expetativas de necessidades futuras, alimentadas pela competição económica da sociedade do conhecimento, na qual as tecnologias são vistas como uma solução e uma oportunidade (OCDE, 2010; Comissão Europeia, 2012). Não é estranho, portanto, que o conceito careça de consenso. Ele é referido e interpretado de diferentes formas em documentos e relatórios políticos, em investigações e trabalhos académicos, nas práticas de ensino, aprendizagem e de certificação, no contexto empresarial, a nível nacional e internacional.
As diferentes referências incluem, por exemplo, o conceito de literacia digital (Meyers, Erickson & Small, 2013; Røkenes & Krumsvik, 2016), literacia tecnológica (Amiel, 2006), novas literacias (Coiro, Knobel, Lankshear & Leu, 2008), multiliteracia (Selber, 2009), multimodalidade (Kress, 2010), habilidades digitais (Helsper & van Deursen, 2015), literacia para os media digitais (Buckingham, 2007) ou ainda o conceito de habilidades de Internet (van Deursen & van Dijk, 2009), para referir apenas algumas. Ilomäki et al. (2014), na revisão que desenvolveram sobre como a competência digital e outros conceitos relacionados são referidos na literatura, apresentam 34 com ligações a 6 áreas distintas de estudo, incluindo a área da comunicação, dos média, da sociologia, da documentação, da tecnologia e das ciências da educação. Também no contexto português se encontram várias referências, tanto em documentos e relatórios políticos como em trabalhos académicos. Nelas encontram-se os conceitos de competência digital (Costa et al., 2008; Lagarto & Marques, 2015), competências TIC (Costa et al., 2008), competências tecnológicas (Pereira, 2011; Lagarto & Marques, 2015), competências infocomunicacionais (Borges & Oliveira, 2011), competências informáticas (Lagarto & Marques, 2015), literacias digitais básicas e generalizadas (Horta, Mendonça & Nascimento, 2012), literacia digital (Pereira, 2011) ou literacia mediática (Pereira, Pinto, Madureira, Pombo & Guedes, 2014; Lopes, 2015). Quer no contexto nacional, quer internacional, há exemplos de utilização de mais do que uma terminologia no mesmo texto, de forma indistinta e sinonímica (ex. Røkenes & Krumsvik, 2016; Lagarto & Marques, 2015), o que eventualmente evidencia ausência de uma preocupação de utilização de uma designação única.
Os conceitos e designações mais comuns, bem como aqueles que, normalmente, são usados como sinónimos são, de acordo com vários autores (Ilomäki et al., 2014; Calvani et al., 2010; Adeyemon, 2009), os de literacia digital e competência digital. Embora haja autores que, nos seus trabalhos, se lhes refiram enquanto sinónimos, como Calvani et al. (2010), Hatlevik e Christophersen (2013) ou Røkenes e Krumsvik (2016), entre outros, são vários aqueles que os definem de forma distinta (Ala-Mutka, 2011; Ferrari, 2012), preferindo alinhar-se com a terminologia proposta pelas recomendações europeias (Calvani et al., 2010; Li & Ranieri, 2010) - competência digital, ou com aquela que é mais comum nos seus países de origem (Krumsvik, 2008).
Um dos primeiros autores a definir o conceito de literacia digital foi Gilster (1997), que o descreveu como a capacidade para perceber e utilizar a informação em diferentes formatos a partir de uma vasta gama de fontes, e que apontou como seu principal elemento o pensamento crítico, ao invés das habilidades tecnológicas. Desde então, as definições têm-se multiplicado, havendo autores que entendem a literacia digital como o resultado de uma estratificação e integração complexa de competências, habilidades e conhecimentos. Por exemplo, Tornero e Varis (2010) sugerem que a literacia digital é a fusão de habilidades puramente técnicas, de competências intelectuais e de competências que se relacionam com uma cidadania responsável. Gapski (2007) elege duas vertentes - uma relacionada com a utilização/funcionalidade da tecnologia e outra com objetivos pedagógicos -, que se operacionalizam em três formas de competência: interpretação de mensagens, escolha de mensagens, e articulação de mensagens. Por sua vez, estas competências informam objetivos e medidas de proficiência funcional, cognitiva e ética. Mais recentemente, Ala-Mutka (2011) entende que a literacia digital resulta da convergência de diferentes tipos de literacia relacionada com as TIC e os média digitais: a literacia tecnológica (a capacidade para utilizar computadores e outras tecnologias), a da Internet (capacidade para utilizar a Internet de forma proficiente), a dos média (capacidade para analisar as mensagens e o contexto dos média digitais) e a literacia da informação (capacidade para obter, aceder e compreender informação). Considera, ainda, como definição mais abrangente do conceito de literacia digital aquela enunciada por Martin & Grudziecki (2006), que o apresenta como a consciência, atitude e capacidade que os indivíduos têm para utilizar, de forma apropriada, ferramentas digitais para identificar, aceder, gerir, integrar, avaliar, analisar e resumir recursos digitais, construir novo conhecimento, criar média expressivos e comunicar com os outros em contextos de vida específicos e refletir sobre este processo. Já a recomendação europeia sobre literacia digital define-a como o conjunto de habilidades necessárias para alcançar a competência digital (Comissão Europeia, 2008), definição assaz estranha, dado que confunde o conceito propriamente dito com o processo de o adquirir, contrariando simultaneamente o postulado de que não se define um conceito integrando-o na sua definição, tornando assim a definição circular.
Por sua vez, a competência digital é definida pelo Parlamento Europeu e Conselho (2006) como a utilização crítica e confiante das tecnologias da sociedade da informação para o trabalho, o lazer e a comunicação. Refere, ainda, que esta é sustentada pelas habilidades em TIC, mais concretamente pela utilização de computadores para recuperar, avaliar, armazenar, produzir, apresentar e trocar informação, e para comunicar e participar em redes de colaboração via internet. Para Calvani et al. (2010) a competência digital é a capacidade de explorar e enfrentar novas situações tecnológicas de forma flexível, de analisar, selecionar e avaliar criticamente dados e informação, de explorar potencialidades tecnológicas para representar e resolver problemas e construir conhecimento partilhado e colaborativo, ao mesmo tempo que promove a consciência de responsabilidades pessoais e o respeito recíproco por direitos e obrigações. Para estes autores, a definição enfatiza a coexistência de 3 dimensões de integração: tecnológica, cognitiva e ética.
Ferrari (2012) adota o conceito de competência por considerar, com base em Kress (2010), por exemplo, que o discurso em torno do conceito da literacia tende, no fundo, a centrar-se no “velho” argumento da codificação e descodificação, i.e., da leitura e da escrita, ainda que numa perspetiva multimodal. Considera, também, que este conceito incluiu um conjunto de atitudes que ficam em segundo plano no debate da literacia e que, estando tão interligadas com o conhecimento e as habilidades, se tornam indissociáveis. Recorrendo a Gee, Hull e Lankshear (1996) e a Coiro et al. (2008), a autora refere que a aquisição e desenvolvimento de competência na era digital é um mindset que permite ao utilizador adaptar-se aos novos requisitos impostos pela evolução das tecnologias. Para além disso, defende que o “tornar-se competente” deve inserir-se numa prática social que inclui determinadas formas de falar sobre a tecnologia e de interagir socialmente com ela, bem como um conjunto de crenças e valores sobre a mesma. A aquisição e desenvolvimento da competência compreendem, assim, uma forma específica de agir e interagir com tecnologias – o que implica atitudes específicas –, de as compreender – o que implica a existência de conhecimento específico –, e de ser capaz de as utilizar – o que implica habilidades específicas. Ser-se digitalmente competente envolve, por isso, um conjunto de conhecimentos, habilidades, atitudes, capacidades e estratégias necessário para usar as tecnologias e os meios de comunicação digitais para executar tarefas, resolver problemas, comunicar, gerir informações, colaborar, criar e partilhar conteúdo, e construir conhecimento de forma eficaz, eficiente, adequada, crítica, criativa, autónoma, flexível, ética e reflexiva, para o trabalho, o lazer, a participação, a aprendizagem e a socialização (Ferrari, 2012).
De um modo geral pode-se concluir que, ainda que cada autor, entidade ou organismo enfatize diferentes aspetos, todos parecem concorrer para as noções de que a literacia e competência digital são conceitos multidimensionais que envolvem a integração complexa de processos técnicos, cognitivos, metacognitivos e de consciência cívica e ética. Acresce, também, a noção de que se deve tomar em consideração dimensões concetuais e críticas, a capacidade para compreender a natureza subjacente aos fenómenos tecnológicos, bem como o conhecimento das implicações éticas e sociais que derivam da utilização das tecnologias digitais. A definição de competência digital proposta por Ferrari (2012), e anteriormente apresentada, serviu de base ao desenvolvimento do quadro de referência para a competência digital, sendo assim esta que se vai adotar neste artigo. É sobre este quadro que o presente trabalho se debruça a partir deste ponto
O quadro europeu de referência para a competência digital (DigComp)
Objetivos, metodologia e estrutura do DigComp
A construção do quadro europeu de competência digital (DigComp) surg no âmbito de um estudo desenvolvido pelo Joint Research Centre (JRC) - Institute for Prospective Technological Studies (IPTS), um dos 7 institutos de investigação da Comissão Europeia, no âmbito de um acordo administrativo instituído com a Direção-Geral da Educação e da Cultura (DGEC) dessa mesma Comissão. O estudo foi desenvolvido entre janeiro de 2011 e dezembro de 2012 e teve como objetivos chave: i) identificar as principais componentes da competência digital em termos dos conhecimentos, habilidades e atitudes necessários para se ser digitalmente competente; ii) desenvolver um quadro de referência descritivo que pudesse contribuir para a orientação e validação de processos de formação, qualificação, avaliação e acreditação e iii) propor um roteiro para possível utilização do quadro de referência para todos os cidadãos europeus. A construção da 1ª proposta do DigComp foi concretizada em várias etapas, as quais incluíram:
- o mapeamento concetual do conceito de competência digital (Ala-Mutka, 2011);
- um relatório com estudos de caso que incluiu a análise de 15 referenciais atuais de competência digital (Ferrari, 2012);
- uma consulta online a cerca de 95 stakeholders, a partir da qual foram coligidos e estruturados os contributos sobre os principais componentes da competência digital (Janssen & Stoyanov, 2012);
- um workshop de especialistas que serviu para refinar e validar o input resultante da consulta online realizada;
- o esboço de uma proposta para um quadro conceptual, que contempla os quatro pontos/contributos anteriores;
- a consulta online a múltiplos stakeholders que permitiu alcançar um consenso e refinar os descritores;
- uma proposta final incluindo o feedback fornecido pelos stakeholders envolvidos.
A proposta final consistiu em dois produtos, que se relacionam entre si:
- uma grelha de autoavaliação que propõe as áreas de competência digital e descritores para três níveis de proficiência, disponível no Europass;
- um quadro de referência que compreende cinco dimensões:
Dimensão 1: áreas de competência;
Dimensão 2: competências pertinentes para cada área;
Dimensão 3: níveis de proficiência previstos para cada competência;
Dimensão 4: exemplos de conhecimentos, habilidades e atitudes aplicáveis a cada competência (os exemplos não são diferenciados em níveis de proficiência);
Dimensão 5: exemplos de aplicação da competência a diferentes propósitos (os exemplos são diferenciados em níveis de proficiência).
Desde a sua publicação, em 2013, que o DigComp tem passado por processos de revisão, validação e atualização, muito em virtude do ritmo acelerado com que a nossa sociedade, as tecnologias, o mercado de trabalho e a educação se movem, bem como do feedback recolhido junto de diferentes atores que têm estado a implementar o quadro nos seus países. O resultado da primeira de duas fases de atualização previstas para o DigComp foi publicado em 2016 (Vuorikari et al., 2016) e tornou-se conhecido como DigComp 2.0, ao mesmo tempo que atribuiu à primeira versão a denominação de DigComp 1.0. A atualização teve início em 2015 com o feedback do Grupo de Trabalho para as Competências Transversais da estratégia Educação e Formação 2020 e envolveu, para além do JRC-IPTS e da DGEC, outros stakeholders como a Direção-Geral do Emprego, dos Assuntos Sociais e da Inclusão, a fim de assegurar a complementaridade entre ações existentes e emergentes (por exemplo, a campanha eSkills for jobs, o Mercado Único Digital, etc.). O DigComp 2.0 introduz alterações no vocabulário utilizado, no nome das áreas de competência (dimensão 1), na designação das competências e dos descritores (dimensão 2), que agora incluem atualizações relevantes sobre, por exemplo, a legislação da UE no que diz respeito à recente reforma da proteção de dados9, e um alinhamento mais visível e explícito com outros documentos, tais como o Quadro de Avaliação Global da Literacia da Informação e Mediática (UNESCO, 2013). O resultado da última fase de atualização foi publicado em 2017 (Carretero, Vuorikari & Punie, 2017) e tornou-se conhecido como DigComp 2.1. Esta atualização diz respeito ao aumento do número de níveis de proficiência (dimensão 3), de três para oito, que são, de acordo com os seus autores, mais refinados, de modo a permitirem o desenvolvimento de materiais de aprendizagem/formação direcionados para o desenvolvimento desta competência, o desenho de instrumentos de avaliação da competência digital, a orientação profissional ou a promoção laboral. A revisão e atualização dos níveis de proficiência contou com a participação e contribuição de vários stakeholders e peritos durante mais de um ano e a sua validação foi feita mediante consulta online. Para cada nível de proficiência são ainda apresentados novos exemplos de aplicação de competência para contextos de aprendizagem e de emprego (dimensão 5). Desde a proposta inicial, a dimensão 4 foi aquela que não sofreu qualquer atualização10. A estrutura do DigComp foi elaborada a partir do Quadro Europeu eCompetence11 (eCF) para profissionais em TIC por apresentar uma estrutura clara, validada e amplamente implementada por vários stakeholders a nível europeu, do Quadro Comum Europeu de Referência para as Línguas (QECR) e do Quadro Europeu de Qualificações para a Aprendizagem ao Longo da Vida12 (QEQ).
Áreas de competência e competências
As áreas de competência digital identificadas correspondem às da "Literacia de informação e de dados", "Comunicação e colaboração", "Criação de conteúdo digital", "Segurança" e "Resolução de problemas". Para cada uma delas foram identificadas uma série de competências relacionadas, totalizando 21. As competências identificadas em cada área variam em número, de um mínimo de 3 até um máximo de 6 (Quadro 1).
É de notar que o DigComp (1.0, 2.0 e 2.1) numera as áreas de competência de 1 a 5 e todas as competências são, também, numeradas sequencialmente, por exemplo, 2.6. A primeira sequência identifica a área de competência e, a segunda, a competência propriamente dita. Esta progressão não reflete, no entanto, qualquer tipo de hierarquia. A primeira competência de cada área é aquela que inclui aspetos mais técnicos: nestas competências específicas, o conhecimento, as habilidades e as atitudes apresentam aspetos operacionais como componente principal. Contudo, as habilidades técnicas e operacionais estão também incluídas em cada uma das restantes competências. Por exemplo, a primeira competência listada na área da "Literacia de informação e de dados" é "Navegação, pesquisa e filtragem de dados, informação e conteúdo digital". Estas podem ser entendidas como competências mais técnicas (como saber usar motores de busca, navegar na Internet para obter informações e conteúdo ou saber aplicar filtros), ao passo que a segunda competência listada nesta área, "Avaliação de dados, informação e conteúdo digital", inclui níveis mais elevados de compreensão e pensamento crítico, como, por exemplo, julgar a validade do conteúdo encontrado na Internet, avaliá-lo e interpretá-lo.
As áreas de competência 1, 2 e 3 são bastante lineares, enquanto que as áreas 4 e 5 são mais transversais. Isto significa que, ao passo que as primeiras áreas se referem a competências que podem ser rastreadas em atividades e utilizações específicas, as duas últimas aplicam-se a qualquer tipo de atividade que se realize através de meios digitais. Tal não significa que as três primeiras não estejam interrelacionadas. Embora cada uma delas tenha a sua própria especificidade, há vários pontos que se sobrepõem e referências que se cruzam com outras áreas. A este respeito convém referir que a área relativa à "Resolução de problemas" é a de competência mais transversal de todas. Embora surja como área de competência independente no quadro de referência, a "Resolução de problemas" pode ser encontrada em todas as outras áreas de competência. Por exemplo, a área relativa à "Literacia de informação e de dados" inclui a competência "Avaliação de dados, da informação e de conteúdos digitais", que faz parte da dimensão cognitiva da resolução de problemas, como já foi referido. A "Comunicação e colaboração" e a "Criação de conteúdo digital" incluem vários elementos da “Resolução de problemas” (nomeadamente interagir, colaborar, desenvolver conteúdos, integrar e reelaborar, programar...). Apesar de se terem incluído elementos da resolução de problemas em áreas de competência relevantes, a equipa que desenvolveu o DigComp 1.0 considerou necessário criar uma área independente dedicada à resolução de problemas pela relevância da mesma no que diz respeito à apropriação de tecnologias e práticas digitais.
Níveis de proficiência
O DigComp 1.0 propunha três níveis de proficiência para a dimensão 3 e o DigComp 2.1 propõe oito. Estes oito níveis de proficiência traduzem-se em resultados de aprendizagem que são definidos através da utilização de verbos de ação (utilizando a taxonomia de Bloom) e inspirados pelo vocabulário do QEQ. A descrição de cada nível de proficiência contém conhecimentos, habilidades e atitudes apresentados num descritor único para cada nível de proficiência. Cada nível representa um passo em frente no desenvolvimento da competência por parte do cidadão, de acordo com o desafio cognitivo, a complexidade das tarefas que cada um pode executar e o grau de autonomia na conclusão das tarefas. A título de exemplo, um cidadão classificado no nível 2 é capaz de lembrar e realizar uma tarefa simples com a ajuda de alguém quando precisa. Um cidadão classificado no nível 5, no entanto, pode aplicar o conhecimento, realizar tarefas diferentes e resolver problemas, e também ajuda outros a fazê-lo. Os seis primeiros níveis do DigComp 2.1 estão relacionados com os três níveis identificados no DigComp 1.0, mas dois novos níveis foram adicionados, que correspondem a um nível altamente especializado (Quadro 2).
Conhecimentos, habilidades e atitudes
O DigComp 1.0 apresenta uma lista, embora não exaustiva, de conhecimentos, habilidades e atitudes para cada competência (dimensão 4) que, como referido anteriormente, foi a única dimensão que não sofreu qualquer alteração desde a publicação inicial. Os conhecimentos previstos são teóricos e/ou factuais. As habilidades previstas são cognitivas - envolvendo a utilização da lógica, da intuição e do pensamento crítico -, e práticas - envolvendo a destreza manual e a utilização de estratégias, materiais, ferramentas e instrumentos. Em termos de atitudes toma-se como essencial que os cidadãos sejam críticos e reflexivos face à informação, que sejam utilizadores responsáveis e interessados no envolvimento de comunidades e redes digitais.
Aplicação da competência a diferentes propósitos
O DigComp 2.1 apresenta, também, novos exemplos de aplicação de cada uma das competências a diferentes propósitos. Embora os propósitos sugeridos se dirijam especificamente a contextos de Aprendizagem e de Emprego, podem ser tidos em linha de conta outros como sejam o Lazer, o Social, o Comprar e Vender, a Cidadania e o Bem-estar. No DigComp 2.1, os exemplos de aplicação são diferenciados de acordo com os níveis de proficiência propostos em formato de cascata, i.e., para uma competência são dados exemplos para um nível, para a competência seguinte são dados exemplos no nível seguinte e assim sucessivamente. Por exemplo, as competências 1.1 e 1.2 apresentam exemplos para o nível básico, as 1.3 e 2.1 para o nível intermédio, etc. A título de exemplo, e tomando de novo a competência 1.1 “Navegação, pesquisa e filtragem de dados, informação e conteúdos digitais”, apresentamos um exemplo de aplicação da competência para os níveis 2, 5 e 8, para um contexto de Emprego:
- Nível 2: Com a ajuda, se necessária, de um(a) conselheiro(a) de emprego sou capaz de identificar, a partir de uma lista, os portais de emprego que me podem ajudar a procurar um emprego.
- Nível 5: Sou capaz de mostrar a um(a) amigo(a) como encontrar aplicativos no seu smartphone, utilizando diferentes palavras-chave e critérios de avaliação para selecionar aqueles que melhor se enquadram no seu perfil de emprego.
- Nível 8: Sou capaz de criar novos aplicativos ou plataformas para navegar, pesquisar e filtrar portais e ofertas de emprego, de acordo com as necessidades de candidatos a emprego.
Utilização atual do DigComp e suas implicações
Desde 2013, data da publicação da 1ª versão, que tem havido várias aplicações do DigComp a nível europeu13. Uma análise das diversas aplicações permite identificar como grupos-alvo principais, embora não exclusivamente, os cidadãos com capacidade reduzida para utilizar tecnologias digitais no dia a dia, os desempregados e aqueles que procuram emprego, os empregadores à procura de novos funcionários e os docentes e formadores. Identificam-se também, e essencialmente, três categorias de uso: (i) formulação e apoio de políticas; (ii) design instrucional para a educação, formação e emprego; e (iii) avaliação e certificação.Em relação à primeira categoria, o DigComp serviu, por exemplo, para o desenvolvimento do Índice da Digitalidade da Economia e Sociedade (DESI), cujos indicadores relativos à competência digital se baseiam nas áreas da “Literacia de informação e de dados”, “Comunicação e colaboração”, “Criação de conteúdo digital” e “Resolução de problemas”. Em Espanha, desde 2014 que o Governo Basco utiliza a grelha de autoavaliação do DigComp, disponibilizada no Europass, enquanto ferramenta gratuita de diagnóstico para avaliar a competência digital dos seus cidadãos. Criou também, nessa altura, um serviço público que certifica a competência digital dos cidadãos e dos funcionários para permitir às empresas e administrações avaliar mais criteriosamente as competências digitais das pessoas nas suas organizações, e daquelas que a elas se pretendam candidatar (Vuorikari et al., 2016).
A segunda categoria de utilização do DigComp, referente ao design instrucional para a educação, formação e emprego, é aquela que inclui mais iniciativas de implementação. O quadro de referência tem sido utilizado, por exemplo, para desenvolver novos programas de formação para a educação de adultos (na Flandres), para desenvolver programas de formação profissional para professores (na Espanha, Croácia, Lituânia, ou Noruega), ou para orientar programas de educação e formação do setor terciário, como os desenvolvidos pela Telecentre Europe (TE), uma organização europeia sem fins lucrativos que coordena uma série de projetos, centros de aprendizagem TIC, centros de educação para adultos e bibliotecas, com o intuito de combater a exclusão social e digital (Vuorikari et al., 2016).
Não sendo a que inclui mais iniciativas de implementação, os exemplos referentes à terceira categoria de utilização são aqueles que resultam em maior visibilidade (Vuorikari et al., 2016). O exemplo do País Basco referido anteriormente constitui um deles (avaliação e certificação da competência digital dos funcionários públicos e restantes cidadãos), mas há outras regiões e países a disponibilizarem ferramentas baseadas no DigComp para a avaliação e certificação dos seus cidadãos. A Guadalinfo, rede de autoridades locais e regionais da Região de Andaluzia, com mais de 760 centros que oferecem acesso gratuito a tecnologias digitais, disponibilizou, em 2015, uma ferramenta de autoavaliação com base no DigComp, que liga os resultados dessa avaliação com opções de formação nas áreas de competência digital nas quais são identificadas lacunas. O Skillage14 é um teste online desenvolvido pela TE que pretende avaliar a compreensão das tecnologias digitais dos jovens em contexto profissional. Na Polónia, a Fundação European Computer Competence Certificate (ECCC) valida e certifica as competências digitais dos cidadãos. A Dinamarca criou a Digital Competency Wheel para avaliar, certificar e fornecer uma perspetiva geral do nível de competência digital dos seus cidadãos15.
No panorama nacional, nos últimos anos, têm-se promovido iniciativas que apresentam como área prioritária de intervenção a melhoria da literacia, da qualificação e da inclusão digital. Destacam-se, por exemplo, a Agenda Portugal Digital, aprovada em 2012 e atualizada em 2015 ou a Estratégia Nacional para a Inclusão e Literacia Digitais (ENILD) (2015-2020), aprovada em 2014 e promovida pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), em colaboração com diversos stakeholders. A ENILD assentava em três eixos operacionais, articuláveis entre si, cada um deles com um objetivo específico: (1) a adoção de um quadro de referência com base no DigComp (1.0, pois era a versão disponível na altura) para avaliar, reconhecer e validar as competências digitais dos portugueses, (2) a implementação de uma rede à escala nacional que pudesse mobilizar infraestruturas e recursos, e (3) a compilação e disponibilização de uma ampla oferta de recursos destinados à formação das competências digitais.
Pese embora tenham sido desenvolvidas diversas ações no âmbito desta estratégia, a ENILD ficou aquém no que à discussão, definição e implementação de um quadro de referência alinhado com o DigComp diz respeito. Na verdade, e ainda que o período de vigência da ENILD continue em curso, a sua situação atual encontra-se indefinida, tendo sido, aparentemente, substituída (ou assimilada) pela iniciativa nacional para a competência digital: a INCoDe.2030.
A INCoDe.2030 é uma ação integrada de política pública do XXI Governo, dedicada ao reforço de competências digitais, que pretende posicionar Portugal e os portugueses no grupo de topo dos países europeus em competências digitais num horizonte que se estende até 2030 (Portugal INCoDe.2030, 2017). A iniciativa identifica três desafios: (i) generalizar a inclusão, (ii) estimular a empregabilidade; e (iii) produzir novo conhecimento através da cooperação internacional, que serão enfrentados através da implementação de uma série de medidas que se estruturam em torno de cinco eixos de ação:
- Eixo 1. Inclusão: assegurar a generalização do acesso equitativo às tecnologias digitais a toda a população, para obtenção de informação, comunicação e interação;
- Eixo 2. Educação: assegurar a educação das camadas mais jovens da população através do estímulo e reforço nos domínios da literacia digital e das competências digitais em todos os ciclos de ensino e de aprendizagem ao longo da vida;
- Eixo 3. Qualificação: capacitar profissionalmente a população ativa dotando-a dos conhecimentos necessários à integração num mercado de trabalho que depende fortemente de competências digitais;
- Eixo 4. Especialização: promover a especialização em tecnologias digitais e aplicações para a qualificação do emprego e a criação de maior valor acrescentado na economia;
- Eixo 5. Investigação: garantir as condições para a produção de novos conhecimentos e a participação ativa em redes e programas internacionais de I&D.
À semelhança do previsto para a ENILD, a INCoDe.2030 também assume o DigComp, neste caso a versão 2.0, enquanto documento estruturante e orientador (Portugal INCoDe.20130, 2017) de diversas medidas, como sejam, por exemplo, o desenvolvimento de um sistema de autodiagnóstico de competências digitais para o cidadão ou a adaptação de um quadro de referência às necessidades específicas dos trabalhadores em funções públicas. Estas são, como acabámos de elencar, semelhantes a algumas das medidas já em curso em diferentes países europeus e, embora as mesmas não se constituam como uma lista exaustiva, permitem antever uma série de implicações que podem advir da adoção e implementação de um quadro de referência europeu.
Tomando as diferentes categorias de uso elencadas no início desta secção - (i) formulação e apoio de políticas; (ii) design instrucional para a educação, formação e emprego, (iii) avaliação e certificação -, poderemos sintetizar referindo que o quadro europeu de referência pode, respetivamente, contribuir para: (i) medir o nível de competência digital da população ou de diferentes grupos-alvo; definir metas políticas para o desenvolvimento dessa competência; (ii) contribuir para a definição de programas/projetos específicos ou apoiar a comunicação de políticas relativamente a diferentes grupos-alvo; (iii) rever currículos, programas e conteúdos; desenvolver currículos/programas para determinadas funções ou grupos-alvo; (re)orientar o desenvolvimento de materiais de aprendizagem; promover a adoção de novas metodologias de formação, de ensino e de aprendizagem; identificar lacunas de competência e oportunidades de desenvolvimento; analisar, numa perspetiva prospetiva, o mercado de trabalho setorial e necessidades de formação; definir perfis digitais para determinadas funções/profissões; descrever ofertas de emprego e avaliar candidatos a emprego; e (iii) criar um sistema de certificação reconhecido e comparável entre os diferentes estados membros.
Tratando-se de uma iniciativa bastante recente, anunciada em março de 2017, é natural que a informação relativa à operacionalização das várias medidas, nomeadamente no que ao DigComp diz respeito, seja ainda escassa. Trata-se de uma iniciativa de importância relevante para o contexto nacional que se espera não perder o seu ritmo ou desviar-se daquilo que são os pressupostos que permitam, por exemplo, a comparação e validação, a nível europeu, das áreas de competência, competências e níveis de proficiência, mantendo Portugal alinhado com os restantes países que optem por se posicionarem numa atitude de paridade total entre si no espaço europeu.
Conclusão
A Recomendação do Parlamento Europeu e do Conselho (2006) preconiza o desenvolvimento da competência digital como uma das oito competências-chave para a aprendizagem ao longo da vida e transversal à aquisição de todas as outras, como sejam a comunicação em língua materna, em língua estrangeira, ou o aprender a aprender. Este documento desencadeou um conjunto de iniciativas que priorizam o desenvolvimento da competência digital como forma de combater o défice digital e promover o desenvolvimento das competências necessárias que se exigem aos cidadãos de hoje, para uma inclusão digital satisfatória e uma participação socioeconómica ativa e consciente em diverso sectores da sociedade. Simultaneamente, criou a necessidade de desenvolver um quadro comum de referência que potencie a compreensão e o desenvolvimento da competência digital e que permita uma aferição de descritores transversais com a finalidade de possibilitar o desenvolvimento e a avaliação de diversas iniciativas.
O quadro europeu de referência para a competência digital é o resultado de um estudo com base na consulta e participação ativa de uma vasta gama de intervenientes (decisores políticos, investigadores, stakeholders) ligados a diferentes áreas (indústria, educação e formação, emprego, parceiros sociais). Compreende um total de 21 competências distribuídas por cinco áreas de competência distintas - “Literacia de informação e de dados”, “Comunicação e colaboração”, “Criação de conteúdo digital”, “Segurança” e “Resolução de problemas” -, e fornece uma linguagem comum sobre a forma de definir, identificar e descrever as principais áreas de competência digital, oferecendo, portanto uma referência comum a nível europeu.
Desde 2013 tem sido utilizado para vários fins, particularmente para (i) a formulação de políticas conducentes ao desenvolvimento da competência digital, (ii) o design instrucional para a educação, formação e emprego, e (iii) a avaliação e certificação. O nível de abstração das competências previstas no quadro permite que as mesmas sejam adaptadas a um grupo-alvo específico, ou a qualquer contexto a que se apliquem. Todas as inovações, alterações e/ou modificações a que o quadro de referência, pela sua natureza, esteve exposto, foram objeto de escrutínio atento dos autores, que, entretanto, se materializou na versão portuguesa do DigComp 2.1 (Lucas & Moreira, 2017).
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NOTAS
1 https://infoeuropa.eurocid.pt/registo/000043826/documento/0001
3 https://www.fct.pt/dsi/competenciasdigitais/cped/index.phtml.en
4 http://ec.europa.eu/eurostat. Os dados apresentados dizem respeito a cidadãos com idades compreendidas entre os 16 e 74 anos.
5 https://ec.europa.eu/digital-single-market/en/desi. Os dados apresentados dizem respeito a cidadãos com idades compreendidas entre os 16 e 74 anos.
6 http://www.dge.mec.pt/quadro-europeu-comum-de-referencia-para-linguas
7 https://europass.cedefop.europa.eu/pt/documents/european-skills-passport/language-passport
8 https://europass.cedefop.europa.eu/pt/resources/digital-competences
9 http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=uriserv:OJ.L_.2016.119.01.0001.01.POR&toc=OJ:L:2016:119:FULL
10 A grelha de autoavaliação disponível no Europass também não sofreu qualquer alteração, encontrando-se desatualizada no que diz respeito às dimensões 1, 2 e 3.
11 http://www.ecompetences.eu/
12 http://www.dges.mctes.pt/NR/rdonlyres/90DBE647-5CB6-4846-B88F-101180D9E425/4890/TheEQFforlifelonglearning_brochure_PT.pdf