Introdução
O futebol possui uma enorme visibilidade no Brasil e no mundo, a partir do recorte de gênero masculino. Um esporte que, desde a sua chegada, em 1894, conquistou em pouco tempo adeptos no Brasil - inicialmente, sendo praticado por homens brancos e pertencentes à elite. A partir da década de 1920, o negro começa a ser aceito no esporte, logo acontecendo uma rápida adesão das classes mais populares. No período correspondente ao Governo Vargas, ocorre um forte incentivo à prática e promoção de uma cultura futebolística no país (Witter, 1990). Em contraste, nesta mesma época, as mulheres foram interditadas, por meio de decreto-lei1, de praticar o futebol. Com efeito, podemos sugerir que a história do futebol é perpassada por uma perspectiva interseccional (Crenshaw, 2002) iniciada pelas questões de gênero, classe e raça. É essa perspectiva que se torna uma das principais justificativas e motivações do afastamento e proibições das mulheres no futebol (c.f. Goellner, 2005). A mulher conquistou o direito de voltar a praticar a modalidade - de forma legal - em 1979, quando a Seleção masculina já era tricampeã mundial. A Seleção nacional de mulheres disputou a primeira partida apenas em 1986. Isso revela a construção de uma cultura de futebol ligada ao masculino, para além da ideia de virilidade e força atrelada a determinadas modalidades esportivas (Goellner, 2005). E, ainda, explica a falta de incentivo à prática e participação das mulheres nos espaços futebolísticos, que perdura até hoje. Esse contexto é atravessado, também, pela pouca visibilidade da modalidade em espaços midiáticos.
Os registros da prática do futebol de mulheres (FM) entre as décadas de 1940 e 1980 pela mídia, quando ainda vigorava a proibição, são raros (Costa, 2017). O periódico carioca Jornal dos Sports apoiou a inserção feminina no futebol com editoriais, cobertura de campeonatos e jogos avulsos, chegando até mesmo a patrocinar pequenos eventos por volta de 1940 (Costa, 2017). Já na década de 1970, o jornal O Globo noticiou o primeiro Campeonato de Futebol Feminino, na Itália. Na televisão, as primeiras aparições de partidas de futebol de mulheres (FM) só vieram acontecer a partir da década de 1990, no canal aberto TV Bandeirantes, com o incentivo do narrador Luciano do Valle. Desde então, esta emissora transmite, sem regularidade, campeonatos e jogos entre mulheres.
Importa ressaltar que há um hiato de 61 anos entre a estreia da Copa do Mundo de futebol praticada por homens para a estreia das mulheres na competição. Para além do evidente espaço temporal, esse tempo foi marcado pelo processo de construção do futebol como esporte ligado à identidade nacional (DaMatta, 1982; Knijnik, 2006).
A Copa do Mundo de Futebol Feminino é realizada desde 1991 e a Seleção Brasileira participou de todas as edições, chegando a resultados relevantes em 1999, quando foi terceiro lugar, e 2007, quando conquistou o vice-campeonato, mas o assunto foi pouco tematizado pela mídia esportiva brasileira. Na história das Copas, há registros da transmissão de algumas partidas na programação do canal fechado ESPN Brasil, em 2003, e TV Bandeirantes, em 20072. Em 2015, o torneio foi transmitido pelo canal público TV Brasil, pelo canal de TV aberta Bandeirantes e pelo canal pago SporTV - e, mesmo assim, a cobertura foi apenas parcial. Uma pesquisa realizada pelo grupo de pesquisa Gênero, Mídia e Esportes no âmbito do OBMIDIA - Observatório de Mídia: Gênero, Democracia e Direitos Humanos, da Universidade Federal de Pernambuco, indicou a baixíssima noticiabilidade da Copa do Mundo Feminina de 2015 em veículos de mídia esportiva, quando comparada à edição de 2014 de sua contraparte masculina (Barreto Januário; Veloso & Cardoso, 2016).
Em 2019, o torneio chegou à sua oitava edição. Esta foi a primeira que a TV Globo, líder em audiência3 no país, transmitiu. Todos os jogos do Brasil foram transmitidos pelo canal aberto. A atuação da Seleção na fase de grupos empolgou a torcida e os números de audiência cresceram gradativamente, até as oitavas de final, quando o Brasil saiu derrotado pela França. A partida, realizada em 23 de junho de 2019, foi assistida por mais de 35 milhões de telespectadores, divididos entre Globo, Band e SporTV. O número representa um recorde4 para o FM no país, após esforço de inserção da temática pela mídia.
Pretendemos neste estudo compreender como a Copa do Mundo de Futebol Feminino saiu de uma condição de pouca visibilidade para se tornar um assunto noticiável para a mídia esportiva brasileira. Para isso, fazemos uma comparação entre as coberturas midiáticas nas Copas do Mundo 2015 e 2019, a partir do mapeamento de notícias publicadas em sites de jornalismo esportivo de grande alcance no Brasil.
Este artigo dá continuidade ao trabalho de observação que já vem sendo desempenhado pelo grupo Gênero, Mídia e Esportes desde a Copa do Mundo de 2015. Discutimos o futebol de mulheres como objeto que passa a compor a agenda midiática, processo atravessado pela emergência de novas tecnologias midiáticas e pela construção de um público mobilizado. A partir do estudo realizado em 2015, abrimos o debate para novos fenômenos atrelados a essa visibilidade - ainda radicalmente destoante quando comparada a atenção recebida pelo futebol de homens.
O nosso objeto de estudo são cinco dos principais sites de notícias esportivas no Brasil: UOL Esporte, Globo Esporte, ESPN, Torcedores.com e Placar - este último incluído nesta pesquisa, já que não fez parte do estudo de 2015. Buscamos promover o debate e reflexão em torno das representações e critérios de construção das notícias na promoção da audiência e o conceito de agendamento midiático (McCombs & Shaw, 1977), bem como, o papel social e de controle na construção dos valores-notícias (Silva, 2014). Por fim, apresentamos a análise das notícias dos referidos portais no período da Copa do Mundo de 2019, utilizando como método a análise de conteúdo (Bardin, 1977), com ênfase qualitativa, para identificar padrões temáticos e de enquadramento na cobertura jornalística do mundial.
Futebol de mulheres: do apagamento ao início de uma visibilidade social
A relação entre a mídia e o futebol de mulheres tem despertado no Brasil cada vez mais a atenção de pesquisadores, especialmente nas duas últimas décadas (Goellner, 2003; 2005; Knijnik & Souza 2004; Mourão & Morel, 2005; Barreto Januário, 2019; Costa, 2017). Entendemos que o contexto do FM no Brasil carrega um legado pautado em relações de poder de ordem política, paternalista e patriarcal. A sociedade brasileira segue demarcada por relações sociais hierarquizadas e por privilégios que corroboram com as questões interseccionais (Crenshaw, 2002; Auad & Corsino, 2018) que envolvem gênero, classe e raça enquanto fatores de afastamento e silenciamento de grupos sociais. Todo o histórico de proibições acerca do futebol de mulheres reverbera até hoje na (in)visibilidade do FM no Brasil e no mundo. Knijnik e Souza (2004, p. 210) apontam que “as diferenças biológicas têm dado respaldo a perseguições, formação de representações sociais preconceituosas, e até mesmo a discriminações”. Os autores concluem que “se diferenças são bem-vindas, as desigualdades sociais, também no campo esportivo, devem ser repudiadas”.
É preciso resgatar na história os enfrentamentos e conquistas que as mulheres precisaram impor para dar à luz a um cenário social mais democrático e equânime hoje e no futuro. É sabido que a proibição instituída no Brasil pelo governo de Getúlio Vargas, que durou de 1941 a 1979, possui consequências até os dias de hoje (Goellner, 2005; Mourão & Morel, 2005; Barreto Januário, 2015; Barreto Januário et al, 2016). Com efeito, tais posturas e práticas de afastamento descortinam o processo de apagamento das mulheres enquanto sujeitos políticos na história do futebol brasileiro. Um futebol que precisa da chancela discursiva “feminino” quando se trata de mulheres (Barreto Januário, 2019), já que ao falar de “futebol”, assume-se uma prática masculina. Preferimos então pensar o chamado futebol feminino como futebol de mulheres (FM), com o intuito de afastar qualquer premissa biologizante (Goellner, 2003; Auad & Corsino, 2012).
É pertinente ressaltar que a compreensão de gênero enquanto construção social, bem como suas associações e performances (Butler, 1986), é fundamental para compreender os estudos empíricos e processos que definem e legitimam as organizações e práticas esportivas. Podemos constatar isso a partir do ranking das principais seleções de futebol de mulheres. Tetracampeã, a Seleção dos Estados Unidos detém a hegemonia nas competições mundiais, seguida da Alemanha, Noruega e Japão. Com exceção da Alemanha, as mesmas Seleções na modalidade masculina são inexpressivas e sem títulos no mundial. A exemplo, o futebol (soccer) nos Estados Unidos é reconhecido como um esporte especialmente praticado por mulheres (Knijnik, 2006).
Segundo Aira Bonfim (2019), o futebol de mulheres apresenta marcos introdutórios tantos nas festas esportivas frequentadas pelas elites brasileiras como nos picadeiros de circos nacionais. A pesquisadora defende que foi a partir da década de 1920 que conhecidos teatros e circos, como o Alcebíades, Queirolo e Nerino, foram espaços de exibição pública de atrizes enquanto jogadoras de futebol (Bonfim, 2019). O fato ratifica a nossa compreensão de que a modalidade vai muito além de uma prática esportiva, tratando-se também de um fenômeno cultural, social e por que não dizer de ordem política.
O tema era quase inexistente quando se fala sobre a trajetória do futebol no Brasil, o que corrobora com apagamento da participação das mulheres na construção da cultura futebolística no país, mesmo tendo protagonismo na concepção do termo “torcida” em português do Brasil (Barreto Januário, 2019)55. Silvana Goellner (2005) argumenta que, além da falta de patrocínio, existem dois fatores que podem explicar essa lacuna: 1. A suposta masculinização das mulheres, premissa que se pauta nas próprias justificativas de afastamento da mulher do futebol, perfazendo as razões abonadas na proibição de Vargas, pautadas no discurso de que a prática vai “contra a natureza feminina”; e 2. “A naturalização de uma representação de feminilidade que estabelece uma relação linear e imperativa entre mulher, feminilidade e beleza” (Goellner, 2005, p. 143).
Essa justificativa delega nos esportes em geral os ditos papéis sociais ligados a ideias das masculinidades e feminilidades dominantes (Connell, 2005)6.
O percurso que delimita as atividades esportivas está pautado ainda hoje nas práticas binaristas de gênero já no âmbito escolar, por exemplo, enquanto instituição disciplinar (Foucault, 1979). Até muito recentemente, o futebol de mulheres tinha pouca ou nenhuma visibilidade nos veículos de mídia (Barreto Januário et al., 2016). Além disso, quando o assunto aparecia nos grandes meios, por muito tempo foi regra uma abordagem orientada por perspectivas rígidas de gênero, em que a mulher aparece valorizada apenas quando atende a determinados padrões de beleza e feminilidade. A busca pela “musa” da Seleção ou da torcida ainda não foi completamente abandonada pela narrativa jornalística, tampouco pelos veículos de entretenimento (Barreto Januário et al., 2016).
É possível adicionar aos argumentos de Goellner (2005) o processo, ainda lento, que assistimos ganhar um pouco mais de relevância e dar os seus primeiros passos na ideia de mercantilização do FM, que pode auxiliar na estruturação, futura equanimidade de condições e profissionalização da prática para além do futebol masculino. Vitórias marcantes, como a conquista dos Jogos Pan-Americanos de 2007, sediados no Rio de Janeiro e exibidos pela Rede Globo, apresentaram ao público uma Seleção brasileira talentosa e promissora. Nos Jogos Olímpicos de 2016, também realizados no Rio de Janeiro, em 2016, houve um despertar mais concreto, por parte do público e da mídia, para aos feitos da Seleção de mulheres (Barreto Januário, 2016), que começa a ganhar mais atenção quando comparada à participação dos homens na fase de grupos do mesmo evento. É que desde a Copa do Mundo de futebol masculino de 2014, a Seleção vinha perdendo prestígio, a partir da derrota por 7 a 1, contra a Alemanha. O apoio às mulheres, em 2016, parece ter sido impulsionado por um certo revanchismo em relação aos homens - embora estes tenham saído dos jogos Olímpicos com a medalha de ouro e as mulheres não tenham subido ao pódio. Esse apoio da torcida foi visível nas redes sociais digitais, com campanhas como #MartaMelhorQueNeymar (Figueiredo, 2019), que comparavam os centroavantes das duas modalidades. Definitivamente, a mobilização do público e visibilidade midiática foram mais contundentes durante a oitava edição da Copa do Mundo da FIFA, sediada na França em 2019, com a transmissão dos jogos da Seleção brasileira em TV aberta, fato que vamos evidenciar mais à frente.
Esse contínuo processo de interdição e ruptura faz parte da construção do futebol de mulheres no Brasil e é preponderante para compreender como a modalidade é percebida e consumida pelo público brasileiro, bem como é representada pela grande mídia nacional. Dessa forma, pretendemos discutir os processos de agendamento e valores-notícia na compreensão da forma como a Seleção Brasileira de mulheres vem sendo retratada no Brasil ao longo dos últimos anos.
Audiência e agendamento: um fenômeno potente
Alsina (2009, p. 14) considera a notícia “uma representação social da realidade cotidiana, gerada institucionalmente e que se manifesta na construção de um mundo possível”. Concordamos com Alsina ao entender a notícia como construção social da realidade, conceito que tem sua origem na Fenomenologia Social, com Alfred Schutz, na primeira metade do século XX. Essa concepção teórica considera que o mundo dos mass media desenha um lugar significativo na construção, aplicação e partilha de significados (Correia, 2005). Desse modo, ao pensar sobre as interdições impostas ao futebol de mulheres, não é de espantar que a modalidade tenha sido também negligenciada pelo jornalismo esportivo praticado pela grande mídia, já que, em geral, o jornalista tende a reproduzir o que é socialmente aceitável na atitude natural do mundo da vida: “a percepção do que é tido por noticiável e a produção da notícia implicam o recurso a quadros de experiências” (Correia, 2005, p. 133). Robert Park considera que os mass media internalizam uma capacidade própria de reconhecer a noticiabilidade de um evento ao perceber o que é importante, em um certo tempo e espaço, tanto para o mundo do jornalismo, como para o mundo do público. Os jornalistas adquirem “um extraordinário conhecimento do que é ou será (…) considerado como notícia a um público geral ou específico para o qual eles escrevem” (Park como citado em Franciscato 2005, p. 176).
Noticiabilidade (Traquina, 2005, p. 63) pode ser definida como o “conjunto de critérios e operações que fornecem a aptidão de merecer um tratamento jornalístico, isto é, possuir valor como notícia”. Traquina (2005) apresenta os critérios de noticiabilidade como um conjunto de valores-notícia que determinam se “um acontecimento, ou assunto, é susceptível de se tornar notícia” (Traquina, 2005, p. 63). Segundo Wolf (2003, p. 195), os valores- notícia devem ser reconhecidos como um dos componentes da dinâmica que envolve a seleção e produção de notícias. Para Traquina (2005, p. 95), “o leque de valores-notícia é vasto; a paleta tem imensas cores”. De fato, encontramos inúmeras tabelas operacionais para análises de acontecimentos noticiosos.
Como exemplo, trazemos a proposta de Silva (2014), que apresenta 12 valores-notícia para operacionalizar eventos noticiáveis: 1) Impacto: quantidade de pessoas envolvidas no fato ou afetadas por ele; 2) Proeminência: pessoas com notoriedade, celebridades, heróis, entre outros; 3) Conflito: guerras, brigas, greves, reivindicações;
4) Tragédia/drama: catástrofes, acidentes, emoção; 5) Proximidade, geográfica ou cultural; 6) Raridade; 7) Surpresa; 8) Governo: interesse nacional, pronunciamentos, decisões, eleições, viagens; 9) Polêmica; 10) Justiça: julgamentos, denúncias, investigações; 11) Entretenimento/curiosidade: esportes, aventura, divertimento; e 12) Conhecimento/cultura: descobertas, invenções, atividades e valores culturais, religião. Partiremos desta classificação como uma das bases para nossa análise mais adiante, embora esta não seja a única tentativa de categorizar critérios de noticiabilidade e valores-notícia7.
É importante lembrar que “os critérios de relevância são flexíveis e variáveis em relação à mudança de alguns parâmetros” (Wolf, 2005, pp. 199-200). Ou seja, a noticiabilidade também pode ser interpretada como produto de uma construção social que diz respeito a um determinado tempo e espaço, com abertura para mudanças. É notável, portanto, que a Copa do Mundo de futebol de mulheres, desde 1991 até 2015, permaneceu praticamente invisível para os grandes meios, salvo exceções. Mas na edição de 2019, como já mencionado, identificamos transformações na qualidade e quantidade da cobertura midiática do evento esportivo.
Partimos do pressuposto de que não há uma explicação única para justificar o interesse das pessoas em torno do futebol de mulheres, mas que, sim, existe um conjunto gradual de mobilização a qual o agendamento midiático (McCombs & Shaw, 1977) e os efeitos de uma audiência potente (Mesquita, 2014) têm se mostrado fundamentais. Como argumentado por Barreto Januário e Veloso (2019), percebemos no Brasil, desde 2015, uma “primavera feminista”, no que tange temas relacionados ao empoderamento feminino e formas de representação da mulher na mídia, mais preocupada com uma retratação fidedigna à mulher contemporânea e suas conquistas. Este é um dos aspectos que explica um agendamento constante de pautas sobre o tema.
A Teoria do Agendamento, ou agenda setting, “defende a ideia de que os consumidores de notícias tendem a considerar mais importantes os assuntos que são veiculados na imprensa, sugerindo que os meios de comunicação agendam nossas conversas” (Pena, 2005, p. 142). Essa mesma hipótese foi discutida meio século antes, por Walter Lippman (1922). O autor já sugeria um papel causal entre agenda da mídia e a agenda pública, sendo a veiculação das notícias o principal elo entre os acontecimentos do mundo e as imagens desses acontecimentos na nossa mente (Pena, 2005).
A hipótese do agenda setting não sustenta que a mídia tenta persuadir […]. Descrevendo e precisando a realidade externa, a mídia apresenta ao público uma lista de fatos e respeito dos quais se pode ter uma opinião e discutir […]. A asserção fundamental da agenda setting é que a compreensão das pessoas em relação à grande parte da realidade social é modificada pelos meios de comunicação (Shaw como citado em Wolf, 2005, p.143)
Como dissemos, a Copa do Mundo de futebol de mulheres de 2019, realizada na França, foi a primeira edição do torneio a ser transmitida pela TV Globo. Com os direitos de transmissão, a Globo passou a veicular em seus programas jornalísticos televisivos, diariamente, uma série de reportagens sobre o torneio, introduzindo seus telespectadores à temática que se aproximava. Na estreia da Seleção Brasileira contra a Jamaica, o principal narrador da empresa, Galvão Bueno, esteve à frente da transmissão, o que foi cirúrgico à finalidade de passar um recado: o abraço ao futebol de mulheres, naquele momento, era para valer. O efeito foi imediato: mais de 30 milhões8 de pessoas assistiram à vitória brasileira somente pela emissora carioca, dobrando a audiência no Rio de Janeiro e fazendo crescer 90% em São Paulo.
Um dos jornais mais tradicionais do Brasil, a Folha de São Paulo, destacou o esforço que a Globo fez para inserir o futebol de mulheres em sua programação. O jornal mencionou o envio pela emissora da correspondente Carol Barcellos para a cobertura na França.
No Brasil, por décadas ‘Copa do Mundo’ quis dizer só o torneio masculino, ainda que o país tenha a seleção feminina mais forte da América do Sul há décadas, e a maior estrela do esporte, Marta, seis vezes premiada como melhor jogadora do mundo. As reportagens de Barcellos na França foram parte do maior esforço da história de sua rede de TV para tratar a Copa do Mundo feminina como destaque, no país mais populoso da América do Sul. As partidas da seleção brasileira, da vitória na estreia contra a Jamaica à dramática eliminação diante da anfitriã França, foram transmitidas pela primeira vez no canal de TV aberta da companhia, e narradas por Galvão Bueno, que costuma narrar os jogos da seleção masculina (Panja, 2019)9.
Se é verdade que a imprensa “pode não conseguir, na maior parte do tempo, dizer às pessoas o que pensar, por outro lado ela se encontra surpreendentemente em condições de dizer aos próprios leitores sobre quais temas pensar alguma coisa” (Cohen como citado em Wolf, 2005, p. 143-144). De acordo com Rodrigo Capelo, especializado em negócios do esporte, ao menos três fatores explicam o sucesso de audiência da Copa do Mundo 2019:
Em primeiro lugar, há um evidente interesse do público em consumir a modalidade. Em segundo, a Copa conseguiu a transmissão da TV Globo na rede aberta em 2019, em substituição à TV Brasil em 2015. Também jogou a favor da Copa de 2019 o fato de que a cobertura foi maior, ou seja, mais partidas foram transmitidas por canais abertos e fechados. A Bandeirantes, por exemplo, que havia feito a transmissão apenas das oitavas de final em 2015, neste ano passou a fase de grupos (Capelo, 2019)10.
A emissora líder de audiência no país dividiu os direitos de exibição com a Band na TV aberta. O único canal pago que exibiu as partidas da Copa foi o SporTV, que transmitiu 96% da competição, contra 46% na edição de 2015 (Capelo, 2019). Até então, o jogo entre mulheres mais visto era Estados Unidos x Japão, na final da Copa do Mundo de 2015, quando foi assistido por 25 milhões de pessoas no país norte-americano. De acordo com dados da Kantar Ibope Media11, mais de 108 milhões de pessoas foram impactadas pelas partidas no Brasil. Em 2015, o mesmo torneio havia chegado a 42 milhões - mas deve-se ressaltar que a quantidade de partidas transmitidas, na ocasião, foi bem menor: no mundial do Canadá, a emissora pública TV Brasil transmitiu os jogos da Seleção brasileira, desde a fase de grupos até as oitavas de final, quando a equipe comandada pelo técnico Vadão foi derrotada pela Austrália; já a Band exibiu apenas o jogo da Seleção nas oitavas de final.
Os números expostos pela entidade máxima do futebol mundial, a Fifa (2019)12, denotam que o fenômeno foi muito além das fronteiras brasileiras. No mundo inteiro, um total de 1,12 bilhão de telespectadores sintonizou o torneio pela TV ou em alguma plataforma digital. Isso significa que a média de audiência por partida mais do que dobrou em relação à Copa do Mundo do Canadá, em 2015, quando cada jogo foi visto por aproximadamente 8,39 milhões de pessoas. Na Copa atual, o número foi de 17,27 milhões de espectadores/jogo: um aumento de 30% da audiência. A final entre Estados Unidos e Holanda foi a partida mais vista na história, com audiência média de 82,18 milhões - aumento de 56% na final de 2015 (52,56 milhões). Ao todo, 263,62 milhões de pessoas foram alcançadas com a cobertura da final, número que representa 22,9% do total da competição.
Outro dado reforça a consolidação da influência digital, com o crescimento da a audiência a partir das transmissões via streaming13. A Fifa estima que 481,5 milhões de pessoas acessaram a cobertura da França 2019 em plataformas digitais, o equivalente a 43% do alcance total da audiência. Com esse recorte, é inevitável não apontar a tendência de um público que busca sua programação sob demanda, influenciando veículos tradicionais a abrangerem o espaço ao FM e adequarem a esse novo mercado.
Na nossa sociedade, a mídia é, em grande parte, a que constrói a realidade social (Atheide, 1976). Porém, ressalta Alsina (2009, p. 95), é preciso levar em consideração que “não estamos diante de um processo unilateral, mas que é gerado um reconhecimento dessa função por parte do receptor do discurso. As notícias ajudam a construir a sociedade como se fosse um fenômeno social compartilhado”. É nesse “compartilhar” que queremos chegar. Além dos fatores já apontados, acrescentamos que a audiência tem o poder de ser potente (Mesquita, 2014) - ou seja, o interesse da mídia em oferecer mais cobertura para a Copa do Mundo feminina parte também de uma percepção de que existe uma audiência mobilizada em torno do assunto. Essa audiência é capaz de se fazer visível a partir do uso de plataformas como as redes sociais digitais. Desse modo, um tema antes invisível passa a merecer destaque.
Por meio da conectividade e do acesso aos dispositivos tecnológicos, um dos principais aspectos observados neste fenômeno que engrenou nesta década diz respeito à condução da audiência para que seja produzido aquilo que ela quer que seja veiculado. O público pressiona, observando, por exemplo, quando houve omissão de determinado assunto ou até mesmo uma cobertura inapropriada (Mesquita, 2014).
A relação da audiência com o jornalismo sempre foi institucionalizada. Porém, como ressalta Madureira (2010), esse convívio mantinha “jornalista e audiência em suas funções originais - o primeiro com absoluto controle sobre o que será ou não publicado, o segundo em uma postura meramente reativa ao trabalho do jornalista” (p. 42). Não é mais assim, especialmente após a emergência das redes sociais digitais. Coche (2014) destaca a importância desses meios para preencher as lacunas deixadas pela cobertura da grande mídia - ou seja, uma modalidade esportiva que não recebe atenção dos meios de massa pode propiciar diversas práticas de consumo na internet. Este tem sido o caso do futebol de mulheres (Coche, 2014). Nos últimos anos, blogs e perfis nas redes sociais digitais completamente dedicados à cobertura da modalidade14, como Dibradoras e Planeta Futebol Feminino, mostraram que existe público disposto a discutir o assunto. A Copa América feminina de 2018, por exemplo, não teve transmissão em canais de televisão brasileiros, mas reuniu uma quantidade considerável de torcedores em plataformas online, como mostra o estudo de Lima (2019), que analisou as práticas da torcida nos comentários disponíveis em redes sociais digitais. Na ocasião, a ausência de cobertura midiática foi criticada pelos usuários (Lima, 2019).
A internet é caracterizada pela maior facilidade de manipular, distribuir e reproduzir informações; pela possibilidade de acompanhar múltiplos eventos simultaneamente e pela interatividade. Com a opção de interagir com a notícia, bem como com outros leitores, os atores (pessoas, instituições ou grupos) ganharam um novo meio para expor opiniões e adentrar em debates através das redes sociais digitais. Através delas, a competição ganha mais uma explicação possível para o sucesso, quando muitas mulheres trataram a ação de assistir aos jogos como um “ato de resistência”15.
A atuação de uma audiência que interage ativamente com o produtor da notícia é classificada por Mesquita (2014) como audiência potente. De acordo com a pesquisadora, quando nos referimos à audiência potente estamos falando de cidadãs e cidadãos que estabelecem uma relação ativa com os veículos de comunicação, envolvendo-se ou sendo envolvidos nos processos, práticas e nas rotinas jornalísticas para construção social da realidade.
Assim, o futebol de mulheres - ou, ao menos, a Copa do Mundo da França - passa a compor a agenda dos mass media, adquirindo valor-notícia a partir de toda uma trajetória de enfrentamentos da própria modalidade e de seus torcedores. A conquista desse espaço de grande visibilidade também contribuiu para o agendamento do tema em outros meios jornalísticos, como os jornais impressos e os portais de notícias online, como veremos a seguir.
A Copa da França nos sites de notícias brasileiros
Este estudo dá sequência às pesquisas realizadas pelo OBMIDIA durante a Copa do Mundo de futebol de mulheres, em 2015 (Barreto Januário, 2017; Barreto Januário & Veloso, 2019), quando foram analisadas 69 notícias de quatro portais de jornalismo esportivo de abrangência nacional: Globo Esporte, UOL Esporte, ESPN e SporTV16. A posteriori, a referida pesquisa acrescentou também o portal Torcedores.com para uma análise qualitativa. Os resultados do estudo demonstraram que as notícias sobre o mundial estiveram restritas à cobertura do desempenho da Seleção Brasileira, análises das partidas e reportagens que destacavam o papel de Marta, grande estrela do futebol de mulheres brasileiro. Esses estudos chegaram às seguintes categorias temáticas: Notícia Padrão, Marta e Cia., Destaque Positivo e Desvalorização do Gênero Feminino. A classificação revela sobretudo a falta de diversidade da cobertura jornalística do mundial do Canadá.
Para dar continuidade à mencionada pesquisa, o presente estudo analisou os mesmos portais (Torcedores, Globo Esporte, UOL Esporte, SporTV e ESPN), acrescentando a revista Placar, veículo especializado em jornalismo esportivo. Como método, utilizamos a análise de conteúdo (Bardin, 1977), para identificar padrões temáticos na cobertura jornalística da Copa do Mundo de 2019. A supracitada classificação de valores-notícia de Silva (2014) também deu suporte à análise, no sentido de interpretar o papel das categorias temáticas identificadas no contexto de produção jornalística. A fase de coleta partiu dos dados disponíveis no Twitter, plataforma em que todos os sites analisados divulgam os links das suas matérias. A coleta considerou o período da Copa do Mundo da França, de 7 de junho a 7 de julho, e foi feita de forma automatizada, com o uso da ferramenta TAGS17, que permitiu o armazenamento de 21.467 tweets publicados pelos portais, contemplando todas as notícias publicadas no período, além de conteúdos exclusivos para aquela rede social.
O material foi então submetido à “leitura flutuante”, fase da análise de conteúdo (Bardin, 1977) em que surgem as primeiras impressões. Em seguida, foram selecionadas as unidades de análise, sendo descartadas aquelas que não se referiam à Copa do Mundo feminina ou que estavam fora do período desejado. A amostra foi reduzida para 1.954 unidades. Em seguida, foram descartados os conteúdos que não direcionavam o leitor para alguma matéria no portal (que não continham link). Também nesta fase, o SporTV foi descartado, já que a maioria de seus conteúdos se encontrava idêntico no Globo Esporte, pois os dois portais pertencem ao grupo Globo. Foram desconsiderados os conteúdos exclusivamente em formato de vídeo, pois tratavam-se reproduções de conteúdos exibidos originalmente na televisão, fugindo ao propósito original de analisar matérias produzidas para a web. Após essa limpeza, a quantidade de unidades do corpus ficou como segue na tabela 1:
Site | Descrição | Unidades |
Torcedores.com | Plataforma colaborativa, não pertence a um grande grupo midiático. Possui mais de 500 colaboradores do Brasil inteiro. | 440 |
UOL Esporte | Espaço do portal UOL que trata das notícias esportivas do Brasil e do Mundo. | 220 |
Globo Esporte | Site de esportes do Grupo Globo. Lançado em 2005 como Esporte na Globo, em 2006 passou a ter o nome atual. O portal também insere conteúdo do canal de esportes da Globosat, o SporTV. | 160 |
ESPN | Rede de TV por assinatura dos Estados Unidos dedicada à transmissão e produção de programas esportivos 24 horas por dia. Possui um espaço específico para mulheres, o ESPNW. | 57 |
Placar | Revista brasileira especializada em esporte. Lançada em 1970, pertence à Editora Abril. | 49 |
Total | 926 |
Fonte: Elaboração própria
Restaram 926 unidades de análise, o que representa um grande salto quantitativo em relação ao estudo de 2015. Para efeitos de comparação, se excluídos o site Torcedores e a revista Placar, que não foram contabilizados na pesquisa anterior, chegaríamos a um total de 437 unidades, contra 69 do primeiro estudo. Isso representa um crescimento de 533% na presença da Copa do Mundo feminina nos sites esportivos brasileiros.
Reparamos que cada portal possui características individuais - no caso da ESPN, muitos dos conteúdos do portal estavam abrigados no ESPNW, editoria específica para as mulheres, sugerindo um tratamento mais segmentado ao FM por parte da emissora. A maior parte dos conteúdos foi identificada no site Torcedores.com, mas isso se explica devido ao modelo de negócio do site, uma plataforma colaborativa para torcedores. Os mais de 500 colaboradores são encorajados a publicar uma grande quantidade de conteúdos, facilitando que o site tenha notícias em maior número. Identificamos, ainda, que UOL Esporte e Globo Esporte tiveram boa parte de suas matérias assinadas por mulheres.
Em seguida, as unidades foram submetidas ao processo de análise e categorização temática. As categorias não foram definidas a priori, mas surgiram com base na interpretação dos próprios dados. Este procedimento já foi capaz de mostrar que, entre 2015 e 2019, a ampliação da cobertura não se deu apenas quantitativamente, como também qualitativamente. Enquanto em 2015 os olhares dos jornalistas concentraram-se na atuação da Seleção brasileira - muitas vezes dando protagonismo quase que exclusivo à Marta -, no mundial da França uma diversidade de outros assuntos adquiriu relevância e, consequentemente, valor-notícia. Abaixo, listamos as categorias que emergiram no processo. Salienta-se que a mesma unidade pode ter sido classificada em mais de uma categoria, já que uma matéria poderia abordar mais de um tema (tabela 2).
Categoria | ESPN | Globo Esporte | Placar | Torcedores.com | UOL | Total (%) |
Notícia Padrão | 27 | 88 | 27 | 213 | 89 | 47,9% |
Mídia sobre mídia | 0 | 5 | 12 | 68 | 36 | 13% |
Efeito Marta | 9 | 16 | 7 | 48 | 22 | 11% |
Desempenho do Brasil | 6 | 18 | 9 | 19 | 32 | 9% |
A Copa em Números | 1 | 8 | 2 | 43 | 16 | 7,5% |
Manifestações e militância | 4 | 6 | 4 | 18 | 8 | 4,3% |
Perspectivas para a modalidade | 4 | 13 | 0 | 0 | 19 | 3,9% |
Trajetória de profissionais | 5 | 11 | 1 | 10 | 7 | 3,7% |
Campanha de outras Seleções | 2 | 7 | 0 | 19 | 5 | 3,6% |
Polêmica | 3 | 2 | 1 | 7 | 9 | 2,3% |
Outros | 1 | 1 | 0 | 17 | 2 | 2,3% |
Fonte: Elaboração própria
De acordo com Silva (2014), “os valores-notícias constituem também referências para operacionalidade de análises de notícias, permitindo identificar similaridades e diferenciações na seleção ou hierarquização de acontecimentos em diversos veículos da imprensa” (p. 59). Buscando possibilitar percepções históricas e culturais, sugerimos dentro do fenômeno do processo produtivo de notícias relativas ao FM a predominância de determinadas categorias temáticas. Abaixo, analisamos cada uma individualmente.
Notícia Padrão - Informações sobre o calendário das partidas; resultados de cada jogo; informações sobre escalação e treinos; contextualização sobre aspectos da Copa (cidades- sede, estádios etc.), sem profundidade. Relacionada ao valor-notícia Entretenimento/Curiosidade (Silva, 2014), esta foi a categoria mais comum no corpus, aparecendo em grande número em todos os portais analisados. Alguns portais, como Globo Esporte, dedicaram-se à cobertura em tempo real de todas as partidas, oferecendo atualizações a cada mudança no placar e destacando os principais lances. Exemplos: “Copa do Mundo feminina: EUA vencem Holanda e conquistam o tetra” (Placar), “Brasil confirma retorno de Formiga contra França; veja escalação” (UOL), “AO VIVO: acompanhe em tempo real Argentina x Japão pela Copa do Mundo Feminina” (Globo Esporte); “Por que Lyon e não Paris vai receber a final da Copa do Mundo feminina?” (ESPN).
Mídia sobre mídia - O fato de que a mídia (especialmente a televisiva) deu atenção inédita ao mundial da França adquiriu valores-notícia de Impacto (número de pessoas envolvidas) e Surpresa, o que Silva (2014, p. 66) também descreve como “Inesperado”. Nesta categoria, entraram notícias com números de audiência; informando canais em que o espectador poderia acompanhar os confrontos; e discutindo a própria cobertura e narração dos jogos. A categoria apareceu em quase todos os portais, exceto ESPN, com destaque especial para o
Torcedores.com. Exemplos: “Semifinal entre Inglaterra e EUA é o evento televisivo mais assistido do ano no Reino Unido” (Globo Esporte); “Globo dobra audiência no Rio com estreia da seleção na Copa do Mundo” (UOL).
Efeito Marta - Classificamos como “Efeito Marta” as notícias que destacam a atleta pelos seus feitos ou conferem a ela um importante protagonismo dentro da Seleção brasileira. Por possuir um volume de notícias tão grande, Marta representa uma categoria associada ao valor-notícia de Proeminência (Silva, 2014). Neste recorte, estão incluídas as conquistas e recordes em campo, além de ações de visibilidade para o futebol de mulheres. Consagrada a jogadora com maior número de gols na história das Copas, e única a marcar em cinco edições do torneio, a atleta foi a campo com uma chuteira preta, sem patrocínio, apenas com o símbolo em azul e rosa da campanha Go Equal, iniciativa pela equidade de gênero nos esportes - num protesto por pagamento igualitário. Além disso, deu declarações sobre o futuro da modalidade, estampou a capa da Revista Vogue, foi escolhida como garota propaganda da Brahma e gerou burburinho por usar um batom escuro da marca Avon. A atuação da jogadora, para além das quatro linhas, foi o terceiro assunto mais noticiável no corpus de análise. Exemplos: “Quebra de recorde de Marta repercute nas redes sociais e gera homenagens de clubes e entidades” (ESPN); “Marta surpreende e entra em campo contra a Itália com batom escuro; entenda” (Torcedores.com); “Marta opta por jogar sem patrocínio esportivo e carregar recado em chuteira” (UOL); “Marta rainha até no marketing” (Placar).
Desempenho do Brasil - Análises, comentários, resenhas e artigos opinativos discutindo a performance da equipe comandada pelo técnico Vadão foram também recorrentes em todos os portais. Nesta categoria, diferentemente da Notícia Padrão, há um exercício analítico mais aprofundado, que parte de um valor-notícia de Proximidade. Críticas ao esquema tático e à eventual desorganização em campo, além de elogios aos talentos individuais, foram recorrentes. Além disso, verificamos também momentos de comparação, em que jornalistas destacavam sua maior disposição de torcer para a Seleção de mulheres do que para os homens. Exemplos: “Opinião: Seleção feminina goleia a masculina” (UOL); “Brasil joga bem e vence Jamaica na estreia da Copa do Mundo feminina, com três gols de Cristiane” (Placar).
A Copa em números - Notícias associadas ao valor-notícia de Impacto e Surpresa. Aqui, incluem-se os recordes quebrados, matérias sobre a quantidade de torcedores nos estádios e movimentação financeira relacionada ao mundial. Exemplos: “O que rolou na Copa do Mundo feminina em números” (UOL); “Copa do Mundo Feminina na França chega a um milhão de ingressos vendidos” (Globo Esporte).
Manifestações e militância - Nesta categoria, incluímos notícias sobre protestos de atletas como Megan Rapinoe (Estados Unidos) e Ada Hegerberg (Noruega), entre outras personalidades, por igualdade de gênero e outras pautas políticas que envolvem Conflito, valor-notícia no qual Silva (2014) inclui “Reivindicação”, “Briga” e “Disputa”, entre outros. Exemplos: “Como seleção feminina virou símbolo de campanha pró-aborto na Argentina” (UOL); “Rapinoe detona calendário com três finais no mesmo dia e pede mais respeito da Fifa: ‘Não sei como permitiram’” (Globo Esporte).
Perspectivas para a modalidade - A partir dos resultados da Copa do Mundo, jornalistas, atletas e técnicos discutem ações que podem fortalecer o futebol de mulheres. Exemplos: “Há vida pós-Marta, Formiga e Cristiane na seleção feminina? Brasil dá passos, mas renovação pode demorar” (ESPN); “Copa mostrou: futebol feminino é viável. E a lei pode ajudar” (UOL).
Trajetória de profissionais - Nesta categoria, foram classificados os conteúdos que abordavam a história de vida ou momentos pessoais de atletas ou técnicas. Embora Marta ainda seja o grande destaque da Seleção, no que diz respeito à visibilidade midiática, outras jogadoras adquiriram “Proeminência”, como Cristiane, autora dos três primeiros gols do Brasil no torneio; Formiga, aos 41 anos, tornou-se a atleta mais velha a disputar um mundial; e Tamires, única jogadora brasileira a ser mãe. Não raro, as histórias das atletas da Seleção brasileira aparecem enquadradas pelas lentes da narrativa de superação, na qual são enfatizados dificuldades, dores e desafios enfrentados. Por esse recorte, atletas de outras seleções também mereceram constar nas manchetes. Destacamos exemplos como: “Formiga precisou até de injeção para superar dores. Agora, espera vaga para uma despedida justa” (Globo Esporte); “Vítima de racismo de brasileiros, jogadora francesa superou ‘fim do mundo’” (UOL); “Abandono, rebeldia e perda da irmã: os passos de Ludmilla até chegar à Copa do Mundo” (Torcedores.com).
Campanha de outras Seleções - Especialmente após a derrota da Seleção brasileira, que chegou até as oitavas de final, os portais passaram a acompanhar a disputa pelo título, destacando seleções como Estados Unidos, Inglaterra, França e Austrália. Também nesta categoria, conteúdos que se inserem no valor-notícia de Curiosidade, discutem a situação do futebol de mulheres em países que não necessariamente estavam presentes na Copa. Exemplo: “Mulheres relatam barreiras ainda maiores no futebol árabe: ‘Homens olhavam com surpresa’” (Globo Esporte); “Jamaica faz história na Copa com torcida de Bolt e ajuda de filha de Marley” (UOL).
Polêmica - Nesta categoria, foram incluídas as notícias que tratavam de fatos enquadrados pelo viés da Polêmica/controvérsia. Por exemplo, as declarações do presidente Trump dirigidas à Megan Rapinoe e a suposta animosidade entre Marta e Emily Lima, ex-técnica da Seleção brasileira, reportadas a partir de uma declaração de Emily em um evento após a eliminação do Brasil. Além disso, foram incluídas aqui controvérsias relacionadas à discriminação de gênero e desigualdades entre seleções de homens e mulheres. Por exemplo, comentários de Noriega e Jota Jr, respectivamente comentarista e narrador da TV Globo, sobre quem seria a “musa” da Copa, causaram controvérsia nas redes sociais digitais. A pronta resposta dos internautas acabou pautando o interesse da própria mídia, que reportou o fato em conteúdos como “Noriega e Jota Jr falam em ‘musa da Copa’ e são criticados por internautas” (UOL). Outros exemplos da categoria: “Atacante dos EUA diz que não provocou inglesas ao comemorar gol tomando chá” (UOL); “Emily Lima prega respeito, mas polemiza: ‘O que Marta, Cristiane e Formiga conquistaram?'” (Torcedores); “A consagração de Rapinoe, artilheira, craque, campeã…e desafeto de Trump” (Placar).
Outros - Neste tópico, classificamos uma minoria das unidades que destoava dos padrões temáticos identificados, mas que são dignas de nota. A exemplo, um conteúdo que destacou as brincadeiras criadas por internautas em decorrência da eliminação da Alemanha, eternamente lembrada como algoz do 7 a 1 que eliminou a Seleção brasileira dos homens na Copa de 2014. Ou seja, a atividade da audiência nas redes sociais digitais também se revelou noticiável.
Pelos exemplos citados, observamos que os portais realizaram uma cobertura que extrapola a performance da Seleção brasileira, dando espaço para uma discussão mais ampla sobre o futebol de mulheres. Segundo Helal, “as narrativas das trajetórias de vida dos ídolos esportivos frequentemente focalizam características que os transformam em heróis” (2003, p. 19). Nesse sentido, o mundial da França foi ambiente propício para o jornalismo dar visibilidade a diversas heroínas, expandindo seu olhar para outras atletas além de Marta. Histórias de superação física ou de enfrentamento de dificuldades sociais foram aliadas desse processo, como já mencionado, mas também surgiram heroínas eleitas pela sua postura afirmativa diante das adversidades impostas à própria modalidade: são exemplos a própria Marta, que optou por usar a chuteira sem patrocínio, e Ada Hegerberg, jogadora norueguesa eleita a melhor do mundo em 2018, que se recusou a participar da Copa em protesto por igualdade de gênero no futebol de seu país. Mas certamente nenhuma atleta na competição teve mais visibilidade midiática do que Megan Rapinoe, atacante dos Estados Unidos e militante da causa LGBTI+, que se tornou uma voz ativa pelo futebol de mulheres. Entre seus feitos mais reportados, está o fato de a atleta não cantar o hino dos Estados Unidos em protesto contra o presidente Donald Trump, além de declarações de que, se consagrada campeã, não faria a tradicional visita à Casa Branca.
Outras imagens impactantes, relacionadas ao valor-notícia da Tragédia/Drama, foram capazes de agendar discussões mais amplas sobre o futebol feminino, em artigos de opinião ou reportagens interpretativas. É exemplo o choro da diretora da Seleção da Tailândia, ao ver o primeiro gol marcado pela sua equipe, depois de 17 sofridos. Também nessa linha, destacamos o enquadramento dado às lágrimas da Seleção camaronesa, após terem um gol anulado e ficarem de fora da competição, e ao desabafo de Marta, logo após a derrota do Brasil para a França, no qual ela pede para que a nova geração “chore no começo para sorrir no fim”. Os momentos de fracasso foram ressignificados como apelos para uma maior valorização do futebol de mulheres no Brasil e no mundo.
Merece atenção o interesse dos portais sobre a própria cobertura midiática da Copa, revelando o papel de agendamento entre diferentes mídias. Este aspecto reforça a hipótese de que o aumento no interesse do público está diretamente relacionado ao aumento da cobertura televisiva e à exposição das partidas pela Rede Globo, embora, como já vimos, este não seja o único aspecto que explica o sucesso do torneio, em termos de audiência, aqui no Brasil.
Reitera-se ainda que aumento de visibilidade, por si só, não soluciona todo o conjunto de problemas enfrentados pelo futebol de mulheres - mas a grande mídia pode ser uma aliada da modalidade. Reportagens como “Na Copa do Mundo das mulheres, homens ainda são maioria como técnicos” (UOL Esporte) e “FIFA gastou 36 vezes mais na Copa da Rússia do que na Copa do Mundo de Futebol Feminino” (Torcedores.com) mostram que houve espaço para discussões mais analíticas e aprofundadas, permitindo o debate em torno do presente e futuro do futebol de mulheres.
Considerações finais
Compreendemos que a mídia é um produtor de realidade social. Como parte da sociedade, também é um catalisador dos anseios sociais. Nesse sentido, a expansão da cobertura esportiva às mulheres na Copa do Mundo 2019 não foi em vão. Percebendo a mobilização acentuada, a atuação de uma audiência potente, reflexo ainda do sucesso de sites segmentados na cobertura esportiva para mulheres, a grande mídia deu uma chance para ouvir do público a resposta para uma afirmação que há muito ecoa entre os aficionados mais conservadores: “futebol feminino não dá público”. Os recordes de audiência e a explosão no número de notícias nos principais sites especializados no país, mais do que uma simples resposta, confirmaram que o mercado para o futebol de mulheres tornou-se uma realidade - percebida tardiamente, é verdade.
A entrada de um player em especial foi preponderante para mudar o panorama e mobilização em torno do futebol de mulheres. A apreensão do significado que a presença da TV Globo ofereceu ao promover, de maneira inédita, a cobertura da competição em sua grade televisiva, trouxe consigo o despertar da curiosidade para a versão feminina daquele que é considerado o torneio de futebol mais importante do mundo. Despertar que veio mediante todo o aparato que a cobertura do principal veículo comunicação do país traz. A Globo tem o poder de agendar o interesse do público, mas também o da própria mídia; e de fato empenhou-se para minimamente incorporar o futebol de mulheres em sua programação, não restringindo-se apenas à transmissão das partidas. Os sites de notícias, como o UOL e o próprio Globoesporte.com, que apenas esboçaram uma cobertura o torneio de mulheres há quatro anos, em 2019 mudaram abruptamente de postura.
Ao comparar estes resultados com as pesquisas de 2015, percebemos que tratamentos sexistas como os de “musas” ou da masculinização dos corpos foram reduzidos, abrindo espaço para análises técnicas e maior diversidade temática. A estadunidense Megan Rapinoe, melhor jogadora da Copa pela Fifa, tornou-se símbolo de militância feminista e LGBTI+. A categoria identificada nesta pesquisa como “Efeito Marta”, até 2015 praticamente uníssono, ganhou companhia de outras personagens e personalidades. Atletas como Formiga e Cristiane ganharam o status, retardado, porém merecido, de lendas. Debinha, Tamires, Andressa Alves, Bárbara, entre outras, ganharam relevância midiática.
É pertinente reforçar essa pluralidade de vozes conquistada pelas atletas. Com efeito, o aumento do debate em torno do fortalecimento do futebol de base, bem como o deslocamento da posição de sujeitos abjetos (Butler, 1986), antes objetificadas e classificadas como musas e/ou masculinizadas, para sujeitos políticos partícipes do espetáculo futebolístico, elevadas ao patamar de “heroínas”, é digno de nota. O técnico Vadão18, como aconteceria até com maior pressão no futebol masculino, passou a ser questionado antes, durante e após o torneio. Depois de um mês de silêncio da CBF após a eliminação para a França, o treinador foi demitido. A sueca Pia Sundhage19 foi anunciada como a nova técnica e, com pouco tempo no comando da Seleção, já gera pauta midiática sobre os bons resultados pós-Copa.
Acreditamos que existe uma transformação das relações sociais em curso. A ampliação, quantitativa e qualitativa, dos temas abordados e da forma com que foram veiculados, demonstram o interesse do conglomerado midiático na ampliação da cobertura. Esse agendamento repercute no aumento da audiência e adesão da sociedade ao FM - embora estejamos longe de considerar que este é um processo que ocorre de forma homogênea ou livre de contradições.
Por fim, destacamos como um achado negativo a insistência em explorar de forma gratuita a polêmica sensacionalista sobre conflitos, rivalidade e animosidade entre profissionais. Todavia, o cenário mapeado sugere o princípio de uma nova compreensão e visibilidade do FM no Brasil e no mundo.
Precisamos destacar e sugerir novas possibilidades de pesquisa em torno da mídia alternativa e de construção coletiva como esperança de uma nova forma de representação e debates pertinentes. O site Torcedores.com foi um dos meios de maior produção quantitativa. Além disso, a intensificação e visibilidade da cobertura nos portais segmentados, como é o caso do blog Dibradoras20, um canal de notícias protagonizado por mulheres com intensa produção e cobertura do FM, contribuiu para a construção de um público qualificado e para a percepção da grande mídia de que o FM é um objeto noticiável. Ainda há muito o que explorar nesse universo da mídia segmentada, visando compreender seu papel e impacto social na efetivação de uma nova cultura futebolística que reconheça as mulheres como sujeitos políticos ativos, seja jogando, pensando, debatendo, gerindo ou torcendo pelo futebol. Ademais, esta pesquisa deve continuar a partir da interpretação do corpus à luz dos estudos de gênero, referencial que não pôde ser explorado em profundidade neste artigo, mas que contribui de forma inestimável para a compreensão do FM como fenômeno social e midiático possível.