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Angiologia e Cirurgia Vascular
versão impressa ISSN 1646-706X
Angiol Cir Vasc v.7 n.2 Lisboa jun. 2011
EVAR 20 anos de história
EVAR 20 years of history
Prof. J. Fernandes e Fernandes*
* Chefe de Serviço de Cirurgia Vascular, Professor Catedrático e Director da Faculdade de Medicina, Centro Académico de Medicina de Lisboa, Director do Instituto Cardiovascular de Lisboa.
A publicação por Juan Parodi em 1991 sobre o tratamento endoluminal do aneurisma da aorta marcou a evolução da Cirurgia Vascular e revolucionou o seu tratamento.
A aplicação à doença aneurismática dos mesmos princípios da intervenção endovascular na doença oclusiva, representou um salto qualitativo (quantic leap) que surpreendeu a comunidade vascular ainda em processo de digestão difícil da mudança do paradigma de actuação que outros grupos profissionais (radiologistas de intervenção e cardiologistas) pareciam impor na clínica vascular.
Nesse princípio da década de 90 o tratamento cirúrgico do Aneurisma da Aorta Abdominal representava a reserva de actuação, aparentemente inexpugnável, do Cirurgião Vascular.
Reflectir sobre estas duas décadas de EVAR e sobre o seu impacto no progresso do nosso conhecimento científico sobre os mecanismos patogénicos, a história natural, o diagnóstico e a evolução do aneurisma da aorta constitui um exercício útil e que se impõe.
O que mudou então nestes 20 anos?
I RASTREIO DO ANEURISMA DA AORTA E RISCO CLÍNICO
No início dos anos 90 prevalecia a regra que aneurisma diagnosticado seria aneurisma operado independentemente da sua dimensão, tipo ou morfologia. Correspondia à necessidade de tratar o doente nas melhores condições clínicas possíveis, prevenir a rotura do aneurisma e prolongar a sua sobrevivência.
O estudo epidemiológico UK SAT realizado no Reino-Unido nos anos 80 e publicado nos anos 90 no qual se comparava vigilância ecográfica com cirurgia precoce permitiu esclarecer aspectos fundamentais:
O risco de rotura só era clinicamente relevante nos aneurismas com diâmetro superior a 5.5 cm, pelo que cirurgia precoce em aneurismas com menor dimensão não parecia representar benefício efectivo.
Eficácia duma estratégia de vigilância ecográfica dos aneurismas de menores dimensões (diâmetro < 5.5 cm).
A generalização dos programas de rastreio ecográfico do aneurisma da aorta correspondeu a uma necessidade de Saúde Pública, em especial nos países onde a sua prevalência era elevada e a doença configurava uma nova epidemia. As maiores vítimas eram homens com mais de 65 anos de idade e o aneurisma da aorta abdominal aparecia como responsável por cerca de 6,000 mortes prematuras em Inglaterra e no País de Gales. A análise de vários destes programas de rastreio implementados na década de 90 permitiu comprovar redução significativa do risco de rotura e de 45% na mortalidade relacionada com o aneurisma, bem como uma tendência de diminuição da mortalidade global destes doentes.
Estas observações fundamentaram a generalização de programas nacionais de rastreio do aneurisma da aorta sob a égide das organizações científicas e/ou de Saúde Pública.
No entanto, vinte anos depois, começa a notar-se uma redução da incidência do aneurisma da aorta abdominal como foi recentemente referenciado em dois estudos provenientes do Reino-Unido e da Nova Zelândia, provavelmente consequência do melhor tratamento da aterosclerose e dos seus factores de risco, nomeadamente tabagismo, hipertensão arterial e dislipidémia e maior frequência de diabetes mellitus, aparentemente associada a menor risco de doença aneurismatica, observações que suscitaram dúvida sobre a efectiva necessidade destes programas. O estudo inglês Gloucester Aneurysm Screening Program iniciado precisamente há vinte anos, permitiu comprovar uma redução de quase 20% do diâmetro da aorta abdominal nos homens com 65 anos, facto que poderá sugerir processo degenerativo mais lento na aorta abdominal e aparecimento mais tardio do aneurisma.
Serão estes dados indicativos que graças ao melhor management global da aterosclerose, à adopção de estilos de vida mais saudáveis, a prevalência do aneurisma está a decrescer? Qual o seu impacto real no sexo feminino, que até hoje tem sido excluído dos programas de rastreio dada a menor frequência da doença nas mulheres? Será que deverão ser adoptados novos limites de diâmetro da aorta abdominal, particularmente no sexo feminino e perante a possível redução do diâmetro da aorta nos homens? Deverá o limiar de 65 anos para o rastreio ser alterado?
Estas questões dominarão certamente a investigação clínica na próxima década e ajudarão a definir com maior rigor os limites e indicações da intervenção terapêutica.
Mas um facto parece comprovado: a redução significativa 33% - da mortalidade operatória aos 30 dias nos doentes nos quais o aneurisma da aorta assintomático foi detectado no âmbito dum programa de rastreio versus o diagnóstico em consulta ocasional. As razões para esta observação poderão ser: idade mais jovem dos doentes incluídos em programas de rastreio, aneurisma com menor dimensão e anatomia menos complexa favorecendo tratamento endovascular, menos co-morbilidades que podem agravar o risco operatório em idade mais avançada.
São razões que merecem consideração e que, na minha opinião, continuam a justificar a necessidade e a vantagem de programas nacionais de rastreio.
II PATOGÉNESE E EXPANSÃO DO ANEURISMA DA AORTA
Nestas duas décadas houve um reforço notável da investigação biomédica, genética e molecular, com o objectivo de clarificar os mecanismos patogénicos responsáveis pela dilatação da aorta. E parece-me evidente que toda esta investigação foi suscitada pela nova tecnologia imagiológica e consequente acumulação de dados objectivos da evolução das dimensões da aorta após EVAR. Foi de facto um benefício colateral, para o qual contribuiu também a enorme quantidade de informação proporcionado pelos programas de rastreio ecográfico e o impacto potencial da intervenção farmacológica.
Uma avaliação exaustiva da informação acumulada nesses estudos e publicada recentemente por Janet Powell veio evidenciar variabilidade na taxa de crescimento dum aneurisma da aorta e a sua dependência do diâmetro: um aneurisma com 3.5 cm de diâmetro máximo poderá levar 6.2 anos a chegar aos 5.5 cm, enquanto que outro com 4.5 cm levará cerca de 2.3 anos a atingir os 5.5 cm.
A tentativa de quantificar o ritmo de crescimento dum aneurisma da aorta abdominal é fundamental para poder apreciar com objectividade benefício eventual de intervenção farmacológica, nomeadamente a que parece dirigida ao controle dos enzimas responsáveis pela degenerescência da parede da aorta.
Com efeito, destruição das fibras elásticas, produção anormal de colagéneo com menor resistência à distensibilidade da aorta, consequência de incremento da acção das metalo-proteinases parece constituir o mecanismo patogénico fundamental. Intervenção terapêutica sobre a expressão genética destes enzimas tem conduzido a vários estudos sobre intervenção farmacológica, como o propanolol, uso de antibióticos como a doxiciclina ou estatinas os quais não têm sido conclusivos.
Mas esta é uma área de investigação promissora, nomeadamente com o desenvolvimento de modelos animais de doença aneurismática, e que certamente dominará a atenção da comunidade vascular na próxima década.
III EVAR: EFICÁCIA E DURABILIDADE
A incorporação da inovação diagnóstica ou terapêutica na prática clínica é um desafio. Obedece a regras de evidência científica, as quais devem ser compatibilizadas com a criatividade e procura de novas soluções.
A actuação da comunidade vascular mundial perante a contribuição de Juan Parodi pautou-se por princípios de rigor científico e consubstanciou várias etapas:
1º Definição de metodologia de avaliação e critérios de selecção
2º Introdução de uma nova semiologia diagnóstica e estandartização de uma nova semântica com conceitos como endoleak, fixação, estancidade (sealing), endotensão, remodeling do aneurisma
3º Desenvolvimento da Imagiologia vascular, nomeadamente TAC RMN com reconstruções tridimensionais, centralluminal configuration e estudos dinâmicos e funcionais, uma verdadeira revolução na prática clínica.
4º Organização de registos nacionais e internacionais como o EUROSTAR promovendo saudável cooperação multicêntrica
5º Realização de estudos randomizados comparando a terapêutica endovascular com a terapêutica cirúrgica convencional após estabilização do desenvolvimento tecnológico das endopróteses.
Não foi uma tarefa fácil. Havia que incorporar as consequências do constante desenvolvimento tecnológico e a comparabilidade entre diferentes devices, nomeadamente em relação aos seus fundamentos biomecânicos, resistência e consequências clínicas adversas entretanto reportadas. Foram várias as endopróteses utilizadas que vieram a ser rejeitadas posteriormente, em detrimento de novos enxertos com maior flexibilidade, melhor fixação mecânica, navegabilidade intra-arterial mais facilitada e maior resistência ao stress hemodinâmico.
É uma história fascinante que evoca o período de expansão da cirurgia arterial nas décadas de 40 e 50, desde o wrapping do aneurisma com celofane, efectuado em Albert Einstein no princípio dos anos 50 e que conteve o aneurisma durante cerca de 4 anos até á sua rotura fatal, às tentativas de trombose induzida e exclusão do aneurisma com fios metálicos, à introdução dos homo-enxertos que permitiram a ressecção do aneurisma e a manutenção da continuidade arterial, ao uso de material sintético e à técnica de inclusão endo-aneurismática.
A eficácia de EVAR, em comparação com a cirurgia convencional, veio a ser comprovada pelos estudos randomizados e controlados realizados na Europa, o estudo holandês DREAM e os dois estudos EVAR 1 e 2 efectuados no Reino-Unido que ajudaram a clarificar os benefícios e as limitações da tecnologia endovascular, nomeadamente
Redução significativa da mortalidade precoce aos 30 dias
Diminuição da mortalidade determinada pelo aneurisma (aneurysmrelated death) cujo benefício era evidente até aos 4 anos, não obstante a maior necessidade de reintervenção endovascular para tratamento de complicações associadas ao EVAR.
Estes resultados suscitaram um enorme entusiasmo e expansão da tecnologia endovascular. Conceitos como anatomia favorável do aneurisma e escolha do doente ( patient´s choice) na decisão terapêutica passaram a integrar a prática vascular.
No entanto, os resultados aos 8 anos e publicados em 2010 demonstraram
Desaparecimento da vantagem inicial de EVAR na sobrevivência dos doentes
Mortalidade associada a rotura de aneurisma da aorta pós EVAR
Maior necessidade de intervenção endovascular com risco acrescido de complicações fatais e readmissão hospitalar
Estas observações foram confirmadas em estudo subsequente de Schermerhorn num vasto grupo de doentes da base de dados do sistema Medicare nos EUA, com maior frequência de reintervenções tardias e readmissão hospitalar em doentes submetidos a EVAR quando comparados com a cirurgia aberta - 9.6 % versus 7.6 %, p<.001- as quais tinham um efeito negativo sobre a sobrevivência aos 6 anos dos doentes submetidos a EVAR.
Estes dados e a apresentação dos resultados preliminares do Estudo ACE realizado em França e dirigido por J. P. Becquemin, no qual não foi sequer demonstrado benefício inicial na redução da mortalidade cirúrgica precoce com EVAR, obrigam a reflexão e re-avaliação objectiva da metodologia EVAR.
Importa analisar as seguintes questões: quais as razões para a ocorrência de rotura pós EVAR? Será a rotura uma inevitabilidade, por falência mecânica da endoprótese ou expressão de concepção definitivamente errada da técnica? Existirão outras razões como management inadequado no seguimento pós terapêutico? Houve selecção terapêutica pouco rigorosa? Deverá EVAR ser reservado para doentes com maior risco cirúrgico e menor esperança de vida?
Wyss analisou em detalhe as roturas de aneurisma pós EVAR no âmbito dos estudos ingleses. A sua incidência é menor que 1% / ano e um número não negligenciável parece ter ocorrido quer precocemente o que sugere indicação inadequada, ou erro técnico quer em doentes nos quais tinham sido identificadas complicações tardias, mas que não foram objecto de intervenção terapêutica.
Na nossa experiência de 11 anos, identificámos duas situações de rotura pós-EVAR, uma aos 3 anos de seguimento e associada a desconexão de ramo de endoprótese Vanguard (cuja utilização foi abandonada pouco depois) e que foi tratada cirurgicamente com sucesso e outra 6 anos após tratamento com endoprótese Excluder, que falhou o seguimento nos últimos 18 meses e precedida por sindroma febril inadequadamente tratado, com morte do doente duas semanas depois da cirurgia aberta. Três outros doentes tiveram necessidade de intervenção: endovascular num doente, para correcção de endoleak tipo 1 aos 12 meses, e nos outros dois, por cirurgia convencional. Um dos doentes tinha aumento do aneurisma por três pontos de endoleak tipo 2, que foram suturados, comprovando-se na operação ausência de outras complicações e boa fixação da endoprótese Zenith aplicada 4 anos antes e outro doente que desenvolveu progressão da doença aneurismática proximal 7 anos após tratamento com enxerto Endologix e que obrigou a reconstrução aberta toraco-abdominal com sucesso.
Parece claro que a tecnologia EVAR está claramente associada a menor mortalidade precoce e a benefício terapêutico a médio prazo, mas o seu sucesso exige protocolo rigoroso de seguimento anual dos doentes para monitorização das dimensões do aneurisma e detecção de complicações eventuais que possam impor intervenção correctora, endovascular ou convencional, nomeadamente se houver aumento do diâmetro do aneurisma.
A generalização da metodologia EVAR em casos limite, nomeadamente com colo proximal muito tortuoso ou com comprimento reduzido < 1.0 cm, sem recurso endopróteses fenestradas ou ramificadas, poderá vir a acarretar um maior risco de complicações tardias e reduzir o benefício expectável da terapêutica menos invasiva.
De facto, nestes casos devem aplicar-se as lições aprendidas na cirurgia convencional para o tratamento dos aneurismas justa e/ou para-renais: a cirurgia deve incorporar a reconstrução das artérias renais e viscerais para permitir a realização da anastomose proximal em aorta não aneurismática.
Se a opção for endovascular nestes casos dever-se-á contemplar a utilização de próteses fenestradas ou ramificadas, para assegurar a sua fixação adequada em aorta normal e incrementar a sua durabilidade.
A nossa experiência, ainda limitada, leva-nos a adoptar os princípios definidos para a utilização destas novas endopróteses, e que tornam possível o tratamento de aneurismas com morfologias complexas e extensão proximal justa ou para-renal e da aorta toraco-abdominal.
IV QUE FUTURO?
A tecnologia endovascular trouxe um benefício inequívoco no tratamento da doença aneurismatica da aorta e das artérias periféricas. O seu carácter menos invasivo, realização sob anestesia local e/ou raquidiana, redução do internamento hospitalar, das necessidades transfusionais e, indiscutivelmente, maior conforto para os doentes, representa um avanço qualitativo muito relevante.
A sua utilização no tratamento do aneurisma da aorta torácica está indiscutivelmente associada à redução da mortalidade e do risco de paraplegia, facto que tem sido referido em publicações recentes.
A possibilidade de tratamento de aneurismas da crossa da aorta associados a procedimentos de debranching dos troncos supra-aórticos como temos vindo a realizar, a utilização de próteses ramificadas custommade em doentes com aneurisma toraco-abdominal e os resultados provenientes de centros de excelência e publicados por Roy Greenberg, Eric Verhoven e S. Haulon confirmam o enorme potencial terapêutico da tecnologia EVAR que, de facto, representou uma mudança fundamental na prática de cirurgia vascular.
As lições destas duas décadas parecem-me óbvias:
1º Desenvolvimento da Imagiologia sofisticada da aorta, e cuja aplicação é indispensável para a definição da estratégia terapêutica.
2º Rigor na selecção dos doentes. Compromisso com morfologias menos favoráveis parece claramente associada a maior taxa de complicações a médio e longo prazo, maior necessidade de reintervenções, menores benefícios e custos mais elevados.
3º Generalização de EVAR em doentes com rotura de aneurisma da aorta abdominal e torácica, como tem sido defendido por Frank Veith, e no tratamento das roturas traumáticas da aorta, como tivemos a oportunidade de apresentar no Congresso da SPACV em 2010.
No entanto três realidades se impõem.
Primeiro, o tratamento endovascular requer programas rigorosos de vigilância e monitorização pós-operatória; qualquer compromisso no rigor da sua aplicação acarretará insucessos que poderiam ter sido evitados e corrigidos por via endovascular.
Em segundo lugar, a cirurgia aberta, convencional, continua a ser uma alternativa terapêutica indispensável, porventura mais dirigida para casos mais complexos e difíceis, inadequados para o tratamento endovascular, o que necessariamente coloca problemas para assegurar treino, formação e manutenção da competência aos cirurgiões vasculares.
Em terceiro lugar, a necessidade de centralizar, em unidades de referência com experiência em cirurgia endovascular e aberta, o tratamento do aneurisma da aorta, de modo a proporcionar a melhor opção terapêutica para cada doente e optimizar os resultados a curto e longo prazo.
Estas questões configuram a necessidade de um debate indispensável e urgente entre nós e essa será missão indeclinável das instituições académicas e das sociedades científicas.