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Angiologia e Cirurgia Vascular

versão impressa ISSN 1646-706X

Angiol Cir Vasc vol.8 no.1 Lisboa mar. 2012

 

Acidente vascular cerebral de etiologia rara com indicação cirúrgica urgente – caso clínico*

 

Ana Vieira Baptista*, Manuel Fonseca*, João Sargento Freitas**, Luís Antunes*, Joana Moreira*, Gabriel Anacleto*, João Alegrio*, Óscar Gonçalves*, Albuquerque Matos*

* Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

** Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

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|RESUMO|

Doente de 19 anos com quadro de febre com 8 dias de evolução e posterior instalação súbita de afasia, hemiparésia esquerda e alterações do comportamento. Aumento das proteínas de fase aguda no estudo analítico. TAC e RMN crânio-encefálicas revelaram lesão isquémica temporo-parietal direita. Ecocardiograma excluiu endocardite. Eco-döppler e angio-TAC carotídeo-vertebrais mostraram formação vegetante, móvel com a pulsação cardíaca, na artéria carótida comum direita. Submetido, de urgência, a cirurgia carotídea.

Intraoperatoriamente constatou-se a presença de trombo ligeiramente aderente à artéria carótida comum e na dependência de lesão da íntima subjacente, tendo-se procedido à sua exérese e a arteriorrafia primária. Aponta-se como etiologia mais provável do quadro, uma vasculite secundária a infecção por HSV1 (infecção activa) ou por Rickettsia conorii.

Palavras-chave: AVC, cirurgia carotídea urgente, vasculite, HSV1, Rickettsia conorii

 

Stroke of a rare etiology with need of urgent surgery – case report

|ABSTRACT|

19 years old patient with fever for 8 days associated with sudden aphasia, left hemiparesis and abnormal behavior. Increased acute phase proteins in the analytical study. Head CT scan and MRI revealed a right temporo-parietal ischemic lesion. An echocardiogram excluded endocarditis. Ultrasound and CT angiography scanning of the extracranial cerebral circulation showed a vegetative formation, mobile with the heartbeat, in the right common carotid artery. Submitted, urgently, to carotid surgery.

Intraoperatively, a slightly adherent thrombus to the common carotid artery was found and in the dependence of an underlying injury to the intima. The thrombus was ressected and a primary arteriorrhaphy performed. It is pointed out a vasculitis secondary to HSV1 (active infection) or to Rickettsia conorii infection as the most likely etiology of the clinic.

Key words: Stroke, urgent carotid surgery, vasculitis, HSV1, Rickettsia conorii

 

INTRODUÇÃO

O acidente vascular cerebral (AVC) constitui a segunda causa de morte a nível mundial e é a principal causa de incapacidade entre indivíduos em idade adulta na Europa e nos Estados Unidos.[1]

Aproximadamente 75% dos AVCs ocorrem em indivíduos com idade superior a 65 anos. A sua incidência é maior nos homens até aos 85 anos, sendo que a partir dessa idade passa a ser mais frequente nas mulheres. Nos homens, a média de idades aquando de um primeiro evento é de 68,6 anos e nas mulheres é de 72,9 anos.[2]

A grande maioria é de causa isquémica (quase 90% dos casos), devendo-se a trombose ou a embolia. Os restantes 10% de AVCs são de causa hemorrágica. Dentro dos isquémicos (tanto por trombose, como por embolia), 20 a 30% relacionam-se com aterosclerose. Outras etiologias possíveis de AVCs isquémicos são os processos inflamatórios da parede arterial (arterite induzida por radiações, doenças do tecido conjuntivo, arterite de células gigantes, doença de Takayasu, doença de Moyamoya), infecções (sífilis, doença de Chagas, VIH), displasia fibromuscular, coagulopatias, hiperviscosidade sanguínea (policitémia, trombocitose, hemoglobinopatias), dissecções (traumáticas ou espontâneas), aneurismas, embolias com origem no coração (arritmias, febre reumática, endocardite, pós-enfarte agudo do miocárdio, válvulas cardíacas mecânicas, embolias paradoxais devido a foramen ovale patente, mixoma auricular, miocardiopatias). Este último grupo (embolias com origem no coração) contribui para cerca de 30% da totalidade dos AVCs isquémicos, atingindo os 50% nos doentes com idade inferior a 40 anos. Em cerca de 40% dos casos de AVC não se consegue determinar a sua etiologia.[3,4,5]

Perante a ocorrência de um AVC, é mandatória a realização de estudos complementares com vista à determinação da sua etiologia.

No presente artigo é descrito o caso de um doente jovem a quem foi diagnosticado um AVC isquémico, com necessidade de cirurgia carotídea urgente e, cujo estudo complementar veio a revelar uma provável etiologia rara.

 

CASO CLÍNICO

Doente do sexo masculino, 19 anos, que recorreu ao Serviço de Urgência de um Hospital Distrital por febre com cerca de 8 dias de evolução associada a posterior instalação súbita de afasia, hemiparésia esquerda e alterações do comportamento.

Dos antecedentes pessoais há a destacar apenas asma na infância e história de tabagismo. Sem história de consumo de drogas injectáveis. Funcionário na recolha de resíduos urbanos. Antecedentes familiares irrelevantes.

À entrada no Serviço de Urgência do Hospital Distrital apresentava-se vigil, mas pouco reactivo a estímulos; apirético; normotenso; auscultação cárdio-pulmonar sem alterações; sem evidência de exantema. Do exame neurológico salientou-se hemiparésia esquerda. O estudo analítico revelou discreta leucocitose e a punção lombar não revelou alterações.

Medicado com aciclovir e ceftriaxone em doses meníngeas e transferido para o Serviço de Urgência do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra referenciado para Neurologia e/ou Infecciologia.

À entrada nesse Serviço de Urgência a sintomatologia e o exame objectivo mantinham-se sobreponíveis.

Repetiu o estudo analítico que mostrou leucocitose ligeira (12900 leucócitos/μL) e aumento da proteína C reactiva (15,18 mg/dL). Realizou TAC crânio-encefálica que revelou lesão não contrastante temporo-parietal direita. O electrocardiograma foi normal e o ecocardiograma excluiu a presença de endocardite ou de patência do foramen ovale. O electroencefalograma revelou actividade lenta a nível temporal direito, sugerindo lesão estrutural nesta localização. A RMN crânio-encefálica de difusão/perfusão confirmou a existência de lesão vascular temporo-parietal direita. As serologias para VIH 1 e 2 foram negativas.

O doente foi internado na Unidade de AVCs medicado com ácido acetilsalicílico 300 mg id, enoxaparina 60 mg id, dexametasona, ceftriaxone, ampicilina e aciclovir.

Foi realizado eco-döppler carotídeo-vertebral que mostrou a presença de uma placa hiperecogénica e homogénea na carótida comum direita que se estendia para a carótida interna, com 2 cm de extensão e 2,5 mm de espessura e que, na sua porção mais cefálica, apresentava uma formação vegetante móvel com o fluxo cardíaco | FIGURA 1 |.

 

| FIGURA 1 | Placa hiperecogénica na carótida comum direita, que se estende para a carótida interna e que, na sua porção mais cefálica, apresenta uma formação vegetante móvel com o fluxo cardíaco.

 

Posteriormente realizou-se angio-TAC cervical que confirmou a presença de uma formação ao nível do segmento distal da carótida comum direita com extensão, sob a forma pediculada, até ao segmento proximal da carótida interna, compatível com formação vegetante eventualmente na dependência de lesão da íntima subjacente | FIGURA 2 |.

 

| FIGURA 2 | Formação vegetante a nível do segmento distal da carótida comum direita com extensão, sob a forma pediculada, até ao segmento proximal da carótida interna.

 

Face a estes resultados, o Serviço de Neurologia contactou a equipa de Cirurgia Vascular de urgência que considerou existir elevado risco embolígeno e propôs intervenção cirúrgica urgente. Intraoperatoriamente foi constatada a existência de um trombo ligeiramente aderente à artéria carótida comum direita e na dependência de lesão da íntima subjacente, tendo-se procedido à sua exérese e a arteriorrafia primária. A intervenção foi feita sob anestesia geral e o tempo de clampagem foi de 10 minutos.

O estudo anátomo-patológico confirmou tratar-se de um trombo endoarterial, mas com grande quantidade de neutrófilos na sua espessura | FIGURA 3 |.

 

| FIGURA 3 | Grande quantidade de neutrófilos na espessura do trombo.

 

O pós-operatório decorreu sem intercorrências, tendo o doente estado sempre apirético, sem leucocitose, com PCR a diminuir progressivamente e com recuperação gradual dos défices neurológicos. O eco- döppler carotídeo-vertebral de controlo não mostrou alterações de relevo.

Procedeu-se a um detalhado estudo complementar para esclarecimento da etiologia do quadro:

 

> Hemoculturas: negativas

> Sumária de urinas tipo II: sem alterações

> Hemostase

• avaliação global: sem alterações

• inibidores tipo lúpus: negativo

> Biologia molecular

• risco trombótico: heterozigotia

– factor V de Leiden

· protrombina GA 20210

· fibrinogénio β G/A – 455

· PAI 4G/5G

· glicoproteínas GP3A

· MTHFR C677T

> Imunologia

• imunoglobulinas: aumento da Ig E

• estudo do complemento: sem alterações

• proteinograma electroforético: sem alterações

> Autoimunidade

• factor reumatóide: negativo

• anticorpos anti-nucleares e citoplasmáticos: negativo

• anticorpos anti-ANCA: negativo

• anticorpos anti-cardiolipinas: negativo

• anticorpos anti-β2-GPI: negativo

> Serologias

• toxoplasma: IgG +; Ig M – (imune)

• rubéola: IgG +; Ig M – (imune)

• CMV: IgG +; IgM –

• HSV 1: IgG +; IgM+ (infecção activa)

• HSV 2: IgG –; IgM –

• EBV: IgG +; Ig

Treponema pallidum (RPR): negativo

Brucella: negativo

Salmonella: negativo

Clamydia: IgG –; IgM –

Rickettsia conorii: positivo

Coxiella burnetii: negativo

Borrelia burgdorferi: IgG –; IgM –

Listeria monocytogenes: negativo

Mycoplasma pneumonia: IgG +; IgM –

 

O doente teve alta ao 10º dia de internamento medicado com ácido acetilsalicílico 100 mg id, sinvastatina e alprazolam.

Sem história de ocorrência de novos eventos neurológicos. Actualmente apresenta apenas sinais piramidais sequelares no hemicorpo esquerdo, já sem défice motor objectivável. Mantém anti-agregação plaquetar com ácido acetilsalicílico 100 mg id. Eco-döpplers carotídeo-vertebrais de controlo aos 3 e 12 meses sem alterações de relevo.

 

DISCUSSÃO

Embora o AVC constitua a segunda causa de morte a nível mundial, a sua ocorrência é rara em indivíduos jovens. A realização de um aprofundado estudo etiológico é mandatória, principalmente nas faixas etárias mais jovens.

No caso clínico exposto, apontou-se inicialmente para um quadro infeccioso do Sistema Nervoso Central (alterações neurológicas associadas a febre com oito dias de evolução, leucocitose ligeira e aumento da PCR). Após uma punção lombar normal, realizou-se uma TAC crânio-encefálica que revelou uma lesão não contrastante temporo-parietal direita, posteriormente confirmada por RMN de difusão/perfusão. Estava-se então perante um AVC isquémico num doente de 19 anos e em que as etiologias mais prováveis nesta faixa etária, nomeadamente a embolização de origem cardíaca, já haviam sido excluídas. Também a infecção por VIH havia sido excluída ab initium.

Na Unidade de AVCs foi realizado um eco-döppler carotídeo-vertebral e uma angio-TAC cervical que mostraram a já referida formação vegetante a nível da artéria carótida comum direita. Dado verificar-se um risco embolígeno importante, o doente foi operado de urgência. O trombo, que se confirmou estar ligeiramente aderente a uma lesão da íntima subjacente, foi removido e enviado para estudo anátomo-patológico que revelou grande quantidade de neutrófilos na sua espessura apontando-se, novamente, para uma possível etiologia infecciosa.

De todo o restante estudo complementar realizado, destaca-se a heterozigotia para diversos polimorfismos genéticos que conferem risco trombótico acrescido, assim como a infecção activa por HSV1 e a positividade do título de anticorpos para Rickettsia conorii.

Relativamente à heterozigotia encontrada para os polimorfismos genéticos, é reconhecido que alguns deles favorecem a ocorrência de fenómenos de trombose a nível venoso. A nível arterial reconhece-se a existência de um risco acrescido de trombose na presença de anticorpos anti-fosfolipídicos. A relação com os outros factores é, contudo, controversa.[6]

Na literatura mais recente encontram-se associações entre agentes infecciosos e, em particular, com os quais o doente já contactou nomeadamente CMV, HSV1, EBV e Rickettsia conori e vasculites. No caso da infecção por CMV, esta pode associar-se a vasculites da retina em doentes imunocomprometidos.[7] Os HSV (1 e 2), para além da associação com vasculites da retina, também têm sido associados a vasculites cutâneas e a arterites necrotizantes dos vasos de pequeno e médio calibre.[8,9] O EBV também tem sido sugerido como a causa de algumas doenças dos vasos de pequeno e grande calibre, destacando-se os aneurismas das artérias coronárias.[10,11]

A Rickettsia conorii, agente causal da febre escaro-nodular, é um parasita intracelular com tropismo para as células endoteliais. É responsável por lesões nestas células e aumenta a expressão de moléculas que promovem a adesão de leucócitos. [12] Afecta tendencialmente vasos de menor calibre podendo levar à sua trombose. Na literatura encontram-se descritos casos de envolvimento cutâneo que levam à ocorrência de exantema (manifestação muito frequente da febre escaro-nodular) e, com bastante menor frequência, de envolvimento dos pulmões (pneumonite intersticial), coração (miopericardite), sistema nervoso central (meningoencefalite), fígado, pulmões, esófago, estômago, pâncreas, baço e tiróide.[13][14,15] Na literatura não foram encontrados casos em que se verificasse envolvimento do território carotídeo.

 

CONCLUSÕES

No caso clínico apresentado optou-se por uma abordagem cirúrgica urgente dado o elevado risco embolígeno.

Face à ocorrência de um AVC, é mandatório a realização de estudos complementares com vista à determinação da sua etiologia. Nas faixas etárias mais jovens, em que a ocorrência desses eventos é rara, frequentemente esse estudo etiológico é inconclusivo.

No caso previamente exposto existem vários dados que apontam para uma etiologia infecciosa (febre, leucocitose, aumento da PCR, presença de grande quantidade de neutrófilos na espessura do trombo removido), pelo que se considera como possível etiologia uma infecção por um microorganismo eventualmente causador de vasculites, como sendo o HSV1 ou a Rickettsia conorii.

 

BIBLIOGRAFIA

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Contactos

Contacto: Ana Vieira Baptista

Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular

Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

Praceta Prof. Mota Pinto

3000-075 Coimbra

Telemóvel.: +351963616841

E-mail: anabaptista81@gmail.com

 

*Trabalho apresentado no X Congresso da Sociedade Portuguesa de Angiologia e Cirurgia Vascular – Porto, 2 a 5 de Junho de 2010

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