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Angiologia e Cirurgia Vascular

versão impressa ISSN 1646-706X

Angiol Cir Vasc vol.10 no.1 Lisboa mar. 2014

 

CASO CLÍNICO

Fístula aorto-cava — Caso clínico*

Aortocaval Fistula — Case report

José Almeida Lopes*, Armando Mansilha e José Fernando Teixeira

 

*Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular, Centro Hospital de S. João, Porto, Portugal

 

*Autor para correspondência

 

Resumo

As Fístulas Aorto-Cava (FAC) são complicações raras dos aneurismas da aorta abdominal (AAA) e estão frequentemente associadas a significativa mobi-mortalidade.

Os autores apresentam o caso clínico de um doente que recorre ao nosso hospital e lhe é diagnosticado um AAA de 6,9 cm e uma FAC.

Foi realizada a sua correção cirurgica urgente por via clássica, tendo-se utilizado uma prótese tubular de Dacron® de 20 mm para a reconstrução aórtica.

O internamento prolongou-se por 30 dias, desenvolveu gangrena do membro inferior direito com necessidade de realização de amputação major desse membro.

O doente protetizou e 3 anos após esta cirurgia morre de neoplasia esofágica metastizada.

É realizada uma revisão da literatura e é feita referência às várias hipóteses de tratamento.

Palavras-chave: Fístula aorto-cava; Aneurisma da aorta abdominal

 

Abstract

Aortocaval fistulas are rare complications of abdominal aortic aneurysms (AAA) and are often associated with significant mobi-mortality. The authors present a case report of a patient who comes to our hospital and an AAA of 6.9 cm and an associated aortocaval fistula were diagnosed. We performed its urgent surgical correction by open repair, were a 20 mm tubular Dacron® graft was used for the aortic reconstruction.

The hospitalization lasted for 30 days, during which developed gangrene of the right lower limb, requiring major amputation of this limb. The patient adapted well to a lower limb prosthesis and 3 years after this surgery dies of a metastic esophageal cancer.

It is performed a literature review of the pathology in question and made reference to the various treatment options.

Key-words: Aortocaval fistula; Abdominal aortic aneurysm

 

Introdução

As Fístulas Aorto-Cava (FAC) primárias são extremamente raras e estão associadas a elevada mobi-mortalidade.

Esta patologia foi descrita pela primeira vez por Syme em 18311 e a primeira cirurgia bem sucedida foi realizada por Cooley et al. em 19542.

Tradicionalmente as FAC primárias contrariamente às secundárias são definidas pela ausência de manipulação aórtica prévia, ocorrendo em território aórtico abdominal nativo doente.

As FAC são complicações raras que envolvem menos de 1% de todos os AAA. Mais de 80% das FAC relatadas estão relacionadas com a rotura de AAA, outras possíveis causas são relativas a situações de trauma penetrante, aneurismas micóticos, doença de Takayasu e doenças do tecido conjuntivo3.

Cerca de 98% dos doentes que se apresentam com uma FAC, tal como não poderia deixar de ser, são homens (dada a maior prevalência de AAA no sexo masculino), que se encontram na 6ª ou 7ª década de vida, com factores de risco ateroscleróticos como tabagismo e hipertensão4.

 

Caso clínico

Doente do sexo masculino de 68 anos de idade, com antecedentes de pesados hábitos tabágicos (75 unidadesmaço-ano), etílicos, hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2 com atingimento de orgãos alvo, dislipidemia, insuficiência renal crónica, cardiopatia isquémia com enfarte agudo do miocárdio em 2006 e submetido a cirurgia de revascularização do miocárdio no mesmo ano, doença arterial peroférica categoria 2 (classificação Rutherford), AAA de 5cm (angio-TC realizada 5 meses antes deste episódio) (fig. 1). Após introdução do catéter nos ramos de suprimento da artéria hipogástrica, foi feita a embolização com 2 HydroCoils (AZUR Peripheral HydroCoil da Ter) recorreu ao serviço de urgência (SU) do Centro Hospitalar de S. João com queixas de dores lombares intensas, febre e tosse produtiva, tendo tido alta medicado com Amoxicilina/Ac. Clavulânico 875/125 mg.

 

 

Volta ao SU dois dias depois por agravamento da dor lombar e astenia. Entra na sala de emergência com estabilidade hemodinâmica, com sinais de edema, palidez e arrefecimento, não se tendo conseguido palpar os pulsos dos membros inferiores, dado o edema apresentado. Analiticamente com hiperlactacidémia, hemoglobina 9,3 g/dL, leucocitose de 20.02 × 10^9/L, neutrofilia 77,5%, PCR - 188 mg/L, IRC agudizada, ureia - 0,77 g/dL e creatinina

- 17 mg/L, o exame sumário de urina (tipo II) demonstrou leucócitos - 50/mL, eritrócitos - 2627/mL, cilíndros totais

- 19,2/mL, sem imagens sugestivas de condensação pneumónica ao Rx toráx. Efetuou de seguida uma angio-TC toraco-abdominal (fig. 2) que demonstrou pequeno derrame pulmonar bilateral e um AAA de 6,9 cm com arterialização do lúmen do lúmen da veia cava inferior (VCI) na fase arterial documentando uma FAC, sem sinais de hemorragia retro-peritoneal associada.

 

 

Foi realizada a sua correção cirurgica urgente por via clássica, com laparotomia xifo-pubica e clampagem infra-renal da aorta abdominal e das artérias ilíacas comuns, na sequência de abertura do saco aneurismático, uma quantidade exuberante de sangue venoso refluia para dentro do saco aneurismático pela fístula existente. Esta hemorragia foi temporariamente controlada por compressão digital, identificando-se assim uma fístula de aproximadamente 20 mm, tendo-se sem sucesso tentado primeiro encerrar a fístula por sutura pela face interna do saco aneurismático e depois por sutura direta na parede da VCI. A hemorragia foi prudentemente controlada com recurso a colocação local de diversos produtos hemostáticos como surgicel® (celulose oxidada regenerada) e spongostanTM (esponja de gelatina hemostática absorvível). Uma vez controlado o foco hemorrágico, foi então possível proceder à construção de um enxerto de interposição aorto-aórtico colocando-se uma prótese de Dacron® de 20 mm. Durante toda a cirurgia o doente foi politransfundido necessitando de um total de 7 unidade de glóbulos vermelhos, 6 unidades de plasma fresco congelado e 8 unidades de plaquetas.

No dia seguinte por agravamento do quadro isquémico dos membros inferiores foi realizado por via femoral trombectomia mecânica ilio-femoral bilateral, ficando com pulsos femorais presentes bilateralmente e com bom retorno sanguínio por ambas as artérias femorais profundas.

Após a cirurgia o doente desenvolve quadro de disfunção multi-orgânica com disfunção hepática e coagulopatia associada (mais marcada entre o 3º e 7º dias de internamento) e IRC agudizada, tendo necessitado temporariamente de hemodiafiltração veno-venosa contínua. Por agravamento do quadro isquémico do membro inferior direito (MID), o doente apresentou quadro de acidémia e rabdomiólise marcada, tendo sido instituída terapêutica com HCO3- e posteriormente realizada por inviabilidade do membro, amputação acima do joelho ao 15º dia de internamento.

A angio-TC pós-operatória (fig. 3) revelou resolução da FAC e bolhas gasosas peri-enxerto protésico, na região dos produtos hemostáticos colocados para realizar a hemostase pelo orifício da VCI.

 

 

Ao longo de 25 dias de internamento em Unidade de Cuidados Intensivos, o doente apresentou melhorias progressivas, nomeadamente da função hepato-renal e dos parâmetros hemodinâmicos. Uma vez efetuado o desmame do suporte aminérgico, da sedo-analgesia e apresentando transito gastro-intestinal o doente foi transferido para a enfermaria do serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular.

Ao 27º dia pos-operatório, já na enfermaria, desenvolve infeção do trato urinário tendo sido instituída antibioterapia empírica endovenosa (Ceftriaxone), que efetuou durante 2 dias até ser conhecido o resultado microbiológico das uroculturas, com isolamento Klebsiella Pneumoniae. Dado o doente apresentar bom estado geral, foi alterada a antibioterapia para cefixima oral de modo a completar o tratamento da infeção urinária durante mais 6 dias em regime de ambulatório.

Ficou seguido em consulta de Medicina Física e Reabiliação, tendo-se adaptado bem à protese colocada no MID (prótese endoesquelética com suspensão por sucção, esqueleto tubular em duralumínio e joelho com trancador manual), conseguindo percorrer distâncias de cerca de 1 Km com auxílio de canadianas, autonomizando-se assim para as atividades da vida diária.

Em Janeiro de 2010 é internado no serviço de Medicina Interna, por quadro de Gastroenterite e em Novembro do mesmo ano é novamente internado por acidente vascular cerebral (AVC) isquémico do território vertebrobasilar (artéria cerebral posterior, ramo occipital).

Visto pela última vez em consulta de Angiologia e Cirurgia Vascular em Novembro de 2011, morre em Fevereiro de 2012, aproximadamente 3 anos depois da correção cirurgia da FAC, com 71 anos de idade vítima de carcinoma esofágico metastizado.

 

Discussão

A teoria por detrás do desenvolvimento destas fístulas é que a pressão e a tensão induzida por grandes aneurismas, conduzem a necrose da parede da aorta. Isso resulta em uma importante resposta inflamatória da adventícia e a aderência a veias adjacentes, que em última instância levam à criação de uma fístula5.

Albalate et al. descreve a fisiopatologia por detrás da criação de uma fistula artério-venosa de alto débito, o que causa uma queda da resistência vascular periférica, da pressão arterial média (diminuição da perfusão arterial distal), um aumento da pressão venosa central (causando edema escrotal e dos membros inferiores) fazendo com que o fluxo sanguínio sistémico diminua, tudo isto provoca uma situação de insuficiência cardíaca descompensada. Um número de diversos mecanismos compensatórios tenta manter a pressão de perfusão coronária e cerebral aumentando a pressão média central, isto é conseguido por aumento do retorno venoso, da frequência, da contratilidade cardíaca, que conjuntamente atuam para aumentar o débito cardíaco6.

A apresentação clínica pode ser variável o que pode dificultar o diagnóstico. Pode-se assim apresentar com sinais e sintomas de uma emergência abdominal, choque cardiogénico, hipertensão venosa ou hipoperfusão sistémica.

A apresentação clínica típica inclui: Início súbito de dor abdominal, dispneia, e uma massa abdominal pulsátil, com «frémito semelhante a uma máquina»7. No entanto, os sintomas parecem estar relacionados com a própria hemodinâmica da fístula. Nas FAC de alto-débito, sintomas de insuficiência cardíaca e de hipertensão venosa central súbita sem causa aparente podem ser as únicas alterações que possam sugerir o diagnóstico8.

A rotura intra-cava de um AAA provoca uma queda súbita da resistência vascular periférica, com aumento concomitante da pressão venosa central. Isto leva a um aumento do ritmo cardíaco e volume sistólico, o que resulta em hipertrofia do miocárdio e em última instância a insuficiência cardíaca. A morte sem qualquer intervenção ocorre em menos de 2 meses9.

O método tradicional para a sua correção de FAC é a cirurgia aberta, porém esta está associada a taxas de mortalidade que variam de 16-66%10. A principal vantagem desta técnica passa por ser mais definitiva e portanto menos sujeita à necessidade de reintervenção.

Devido à crescente experiência na utilização das novas técnicas endovasculares existem já alguns casos descritos da sua correção através da colocação de um endoprótese aórtica, embora dada a raridade e modernidade desta técnica, permanece sem resultados demonstráveis a longo prazo.

As vantagens do procedimento endovascular incluem menor taxa de complicações intra e peri-operatórias, menores perdas hemáticas, e parecem ser o futuro modo preferencial do tratamento de doentes sem AAA (rotos) associados e naqueles em que se crê estar demasiado instáveis para uma cirurgia aberta.

Em 2009, uma nova abordagem para o tratamento de um doente que apresentava instabilidade no contexto de uma FAC aguda, complicando um AAA de grandes dimensões que se encontrava instável para o tratamento endovascular foi relatado11.

Percebendo que as repercussões hemodinâmicas da fístula estavam a pôr em risco a vida do doente, Siepe et al. optaram por tratar a fístula através da colocação de um stent aórtico coberto na VCI. Estes foram bem sucedidos na redução de pressões venosas centrais de 33 mmHg para 19 mmHg, estabilizando também a pressão arterial e permitindo o desmame inotrópico rápido. Assim, o doente pôde suportar a cirurgia aberta de correção de AAA, sem o risco de perda massiva de sangue. Este teve então alta hospitalar com uma endoprótese na VCI patente e uma prótese na aorta11.

Vários autores enfatizam a necessidade de operar imediatamente os doente com FAC.

A abordagem quanto à disseção e manipulação do aneurisma com uma FAC, deve ser tão delicada quanto possível, a fim de evitar a embolia pulmonar paradoxal decorrente da libertação de trombo do interior do saco aneurismático para a VCI. Uma vez que o risco de embolia pulmonar paradoxal não é desprezível poder-se-á considerar a colação de um filtro na veia cava inferior previamente à cirurgia. Nestes casos a estabilidade clínica e hemodinâmica do doente ditam muito desta possível abordagem. Embora a grande maioria dos casos publicados não tenha efetuado este passo, ele pode porventura desempenhar uma papel importante e capaz evitando uma complicação de significativa mortalidade.

O controle aórtico deve ser primeiramente realizado e para controlar a hemorragia venosa proveniente da fístula no interior do saco aneurismático frequentemente utiliza-se o dedo ou uma compressa. O encerramento da fístula deve ser tentado inicialmente a partir do interior do saco do aneurisma, com utilização de monofilamento. Nos casos em que tal não seja possível, a laqueação da VCI infra-renal e veias ilíacas pode ser aplicada a fim de obter a tão desejada hemostase12.

As complicações esperadas após a laqueação da VCI incluem edema dos membros inferiores (30%), trombose venosa profunda recorrente (16%), síndrome da compressão venosa pélvica e claudicação venosa, embora esta seja bem tolerada na maioria dos casos13.

A taxa de sucesso relatada na reparação endovascular de fístulas arteriovenosas abdominal é de cerca de 96%, sem mortalidade a curto prazo14. A mais frequente complicação relacionada com esta forma de tratamento é o endoleak tipo II, que é observado em cerca de 22% dos doentes14. Como o endoleak tipo II se origina de uma sistema venoso de baixa pressão15 (2-8 mmHg), há autores que afirmam que como é pouco provável o crescimento do saco aneurismático, pode ser efetuada uma abordagem conservadora do tratamento deste endoleak quando a estabilidade clínica do doente assim o permita, atingindo um favorável “remodeling” do saco aneurismático16.

Devido à persistência do endoleak tipo II e a falta de follow-up a longo prazo do tratamento endovascular de FAC, outros autores afirmam que a cirurgia aberta permanece como pedra angular no tratamento desta patologia17.

A abordagem endovascular oferece uma alternativa terapêutica atraente para o tratamento de FAC, pois não se efetua uma laparotomia, há menos perdas de hemáticas e é realizada com anestesia local, reduzindo assim complicações pós-operatórias e proporcionando um menor tempo de internamento, os bons resultado a curto e médio prazo desta forma de tratamento parecem encorajadores, podendo mesmo esta abordagem, vir futuramente a desempenhar um papel importante no tratamento desta rara patologia18,19.

Dado não existirem dados a longo prazo e devido à raridade desta patologia, é pouco provável que um estudo randomizado venha a existir. Portanto, uma série de maiores dimensões é necessária para tirar conclusões mais sólidas sobre esta problemática.

 

Conclusões

Os autores descrevem um caso clínico raro de um AAA que demonstrou um crescimento de 1,9 cm em apenas 5 meses e que dada a sua agressividade culminou na criação de uma FAC.

Pelo seu potencial de devastação e de fatalidade tal como outros sindromes aórticos agudos, as FAC devem ser abordadas com alto nível de suspeição, tendo sempre em consideração que a sobrevida destes doentes depende grandemente do seu estado clínico na admissão, diagnóstico assertivo e pronta resposta cirúrgica.

 

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*Autor para correspondência:

Correio eletrónico: joselopes1983@sapo.pt

 

Notas

*Trabalho apresentado no XIII Congresso Nacional da Sociedade Portuguesa de Angiologia e Cirurgia Vascular, Coimbra 13-15 de Junho de 2013

 

Recebido a 13 de dezembro de 2013;

Aceite a 11 de fevereiro de 2014

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