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Angiologia e Cirurgia Vascular
versão impressa ISSN 1646-706X
Angiol Cir Vasc vol.10 no.4 Lisboa dez. 2014
CASE REPORT
Ainda há lugar para a revascularização ultradistal na era endovascular? A propósito de 2 casos clÃnicos
Can ultradistal revascularization procedures still ï¬nd a place in an endovascular era? Critical limb Regarding two case reports
Pedro Garrido a,*, LuÃs Mendes Pedroa,b, Ruy Fernandes e Fernandesa,b, Gonçalo Sousaa, Marco Patoc, LuÃs Silvestrea,b e José Fernandes e Fernandes a,b
a Serviço de Cirurgia Vascular, Hospital de Santa Maria CHLN, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Centro Académico de Medicina de Lisboa, Lisboa, Portugal
b Instituto Cardiovascular de Lisboa, Lisboa, Portugal
c Serviço de Ortopedia B, Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca, Amadora, Portugal
RESUMO
A cirurgia endovascular tem atualmente um papel preponderante no tratamento de doentes com isquemia crÃtica (IC) por doença do sector tÃbio-peroneal, reduzindo substancialmente o número de procedimentos de revascularização aberta.
No entanto, quando não é possÃvel a abordagem endovascular ou na sua falência e existindo um padrão apropriado, podemos considerar a cirurgia de bypass distal ou ultradistal como uma alternativa válida na salvação do membro em doentes selecionados?
Apresentam-se neste artigo os casos de 2 doentes com isquemia crÃtica em que, pela ineï¬cácia ou falência do tratamento endovascular inicial, foi efetuada uma cirurgia de revascularização ultradistal com salvação do membro.
Palavras-chave: Isquemia crÃtica; Doença tÃbio-peroneal; Revascularização ultradistal; Falência pós-angioplastia; Salvação de membro.
ABSTRACT
Endovascular interventions currently play a major role in the treatment of critical limb ischemia due to atherosclerotic disease of the infrapopliteal arteries. They are responsible for reducing the numbers of open surgical revascularization procedures.
However, the question remains whether a surgical bypass to the pedal arteries should be considered as a valid option to avoid amputation, when an endovascular option is not feasible or has resulted in failure.
We present two cases of critical limb ischemia, in which a first attempt at revascularization by an endovascular procedure was unsuccessful. In both cases ultradistal bypasses to the pedal arteries resulted in limb salvage.
Keywords: Critical limb ischemia; Tibioperoneal disease; Ultra-distal revascularization.
Introdução
A isquemia crÃtica (IC) por doença oclusiva que envolve o sector tÃbio-peroneal, muito comum nos doentes diabéticos, apresenta diï¬culdades acrescidas na obtenção de revascularização convencional ou endovascular eï¬caz.
O padrão da doença oclusiva na diabetes cursa habitualmente com compromisso importante das artérias crurais, mas com permeabilidade mantida nas artérias do pé a artéria pediosa e as artérias plantares.
Na década de 90 foram desenvolvidos procedimentos cirúrgicos convencionais de revascularização destas artérias que ï¬caram conhecidos como cirurgias de bypass ultradistal, com boas taxas de permeabilidade e de salvação de membro1-3 .
A era endovascular revolucionou o tratamento da IC e a cirurgia endovascular é atualmente a primeira opção terapêutica para muitos autores4,5.
No sector crural permite a obtenção de revascularização eï¬caz de forma menos invasiva e obter ï¬uxo direto no angiossoma que apresenta a lesão tróï¬ca6,7.
No entanto, a durabilidade destes procedimentos parece ser ainda inferior à da cirurgia convencional e frequentes reintervenções são necessárias para obter eï¬cácia clÃnica semelhante8.
No tratamento contemporâneo da IC a estratégia de revascularização é individualizada a cada doente segundo o padrão de distribuição da doença oclusiva e a extensão das lesões tróï¬cas. Frequentemente a cirurgia convencional e endovascular apresentam-se como armas terapêuticas complementares, que podem ser utilizadas simultaneamente em procedimentos hÃbridos ou de forma diferida para assegurar permeabilidade secundária.
Os autores apresentam 2 casos de IC em que, pela ineï¬cácia e pela falência do tratamento endovascular, foi efetuada revascularização ultradistal para a salvação do membro.
Casos clÃnicos
Caso clÃnico 1
Um doente do sexo masculino de 79 anos com diabetes não-insulinotratada, hipertensão e tabagismo inativo, foi admitido por IC, por doença oclusiva de predomÃnio crural e necrose seca de D2 e D3 do pé direito.
A angiograï¬a pré-operatória mostrou: ausência de doença signiï¬cativa dos sectores aorto-ilÃaco e fémoro-poplÃteo; artéria poplÃtea distal e tronco tÃbio-peroneal sem lesões; artéria tibial anterior permeável na origem, mas com oclusão extensa sem reabitação da artéria pediosa; artéria peroneal com oclusão extensa e sem reabitação distal; artéria tibial posterior permeável no segmento inicial com oclusão extensa e reabitação distal da artéria plantar externa e a arcada plantar.
O doente foi submetido a procedimento endovascular, sob sedo-analgesia e por acesso femoral ipsilateral percutâneo, tendo sido efetuada a recanalização da artéria tibial posterior com ï¬o-guia seguida de angioplastia com balão (Cook® -2 à 200 + 2,5 à 200+3 à 200), com recuperação da permeabilidade da artéria tibial posterior até à arcada plantar, sem reestenoses residuais relevantes e com recuperação de pulso tibial posterior. No mesmo procedimento foi realizada a desarticulação dos 2.⦠e 3.⦠dedos do pé direito (ï¬g. 1).
O pós-operatório imediato evoluiu com bom efeito de revascularização do pé, conï¬rmando-se ï¬uxo trifásico na artéria tibial posterior no exame eco-Doppler de controlo. Duas semanas após a cirurgia o doente referiu o reaparecimento de dor em repouso, que se associou ao inÃcio de má evolução cicatricial. Realizou-se nova angiograï¬a que mostrou a reoclusão da artéria tibial posterior em toda a sua extensão, persistindo a permeabilidade da artéria plantar externa com boa continuidade para a arcada plantar.
Atendendo à extensão da reobstrução, optou-se por efetuar um bypass venoso poplÃtea distal-plantar externa com veia grande safena (VGS) homolateral invertida e revisão da loca de amputação.
A evolução clÃnica foi favorável, tendo o doente alta no vigésimo dia de pós-operatório sob anticoagulação oral. A ferida evoluiu para uma cicatrização completa ao ï¬m de 2 meses e meio (ï¬g. 2).
Atualmente, um ano e meio após a cirurgia, o doente mantém a cicatrização das lesões, ausência de dor, permeabilidade do enxerto e encontra-se em programa de vigilância clÃnica e com eco-Doppler.
Caso clÃnico 2
Um doente de 70 anos com hipertensão arterial, ï¬brilhação auricular sob anticoagulação oral, tabagismo e etilismo recorreu ao serviço de urgência no contexto de uma gangrena húmida de D4 do pé direito com 3 semanas de evolução. Referia aparecimento de dor no pé há poucos meses, que agravava durante a noite e aliviava com o membro pendente.
Nos exames angio-TC e angiograï¬a observou-se um padrão de doença multisegmentar com doença estenosante importante no sector iliofemoral, oclusão da artéria femoral superï¬cial, reabitação da artéria poplÃtea supragenicular, oclusão das artérias tibial anterior e peroneal no seu terço inicial e permeabilidade da artéria tibial posterior até ao pé. A artéria plantar externa e a arcada plantar estavam permeáveis e aparentemente Ãntegras.
Por apresentar doença predominantemente proximal, o doente foi inicialmente submetido a kissing stenting da bifurcação ilÃaca com stents 9 à 40 mm expansÃveis por balão associado a endarterectomia da bifurcação femoral e desarticulação de D4.
Por má evolução clÃnica, foi necessário proceder, uma semana depois, à desarticulação de D3 e D5 associada a bypass venoso fémoro-poplÃteo infragenicular com VGS invertida ipsilateral e a angioplastia com balão (3 à 80 mm) da artéria tibial posterior, a qual se revelou extremamente calciï¬cada.
Apesar de se ter conï¬rmado por angio-TC a permeabilidade da artéria tibial posterior (ï¬g. 3), a loca de amputação manteve má evolução cicatricial e, por se constatar a permeabilidade da artéria plantar e respetiva arcada, efetuou-se, 3 semanas após o segundo procedimento, jumping graft venoso com VGS contra-lateral à artéria plantar externa, obtendo-se um bom resultado angiográï¬co e clÃnico.
A evolução no pós-operatório foi boa. Iniciou vacuoterapia no 6.⦠dia de pós-operatório, que manteve durante 7 semanas. Atualmente, 2 meses e meio após a ultima intervenção cirúrgica, a ferida encontra-se praticamente cicatrizada, o doente não tem dor e o enxerto mantém-se normalmente permeável (ï¬g. 4).
Discussão
A expansão das técnicas endovasculares permitiu alterar o paradigma de tratamento da doença oclusiva infrapoplÃtea. Enquanto no passado a angioplastia se reservava a doentes com estenoses curtas ou que não tinham indicação para bypass, hoje muitos autores proclamam uma estratégia de «endovascular-ï¬rst»4,5.
As recomendações da European Society for Vascular Surgery (ESVS)9 referem que «o tratamento endovascular das artérias infrageniculares tem o potencial de atingir nÃveis de salvação de membro semelhantes, com menor morbilidade e mortalidade perioperatória. A angioplastia na IC com lesões infrageniculares é uma boa opção na maioria dos casos, desde que o procedimento não impossibilite intervenções futuras» (nÃvel 4, grau C). Estas recomendações são apoiadas por recentes meta-análises sobre a eï¬cácia da angioplastia crural na IC que determinaram que, a médio prazo (36 meses), apesar de o grau de permeabilidade ser inferior com a angioplastia, o resultado clÃnico salvação de membro era de 82%, um valor semelhante ao da revascularização convencional10.
No entanto, o único estudo randomizado que compara uma estratégia inicial de angioplastia versus cirurgia convencional para a doença arterial periférica, o «Bypass versus Angioplasty in Severe Ischaemia of the Leg» (BASIL)11, inclui doentes com doença infrainguinal e não com doença infrapoplÃtea isolada, sendo que no estudo não há referência ao padrão de doença oclusiva tratada e respetivos resultados. Esta realidade impossibilita quaisquer conclusões deï¬nitivas, sobre qual a melhor abordagem inicial em doentes com doença infrapoplÃtea.
Os 2 casos clÃnicos aqui apresentados são exemplo das limitações das técnicas endovasculares. Uma reoclusão precoce da única artéria crural permeável e a insuï¬ciência do ï¬uxo sanguÃneo necessário para a cicatrização criaram a necessidade de uma intervenção alternativa.
Segundo as recomendações da ESVS «o tratamento cirúrgico deve ser a primeira opção para lesões mais complexas dos vasos infrageniculares ou em caso de falência da técnica endovascular e persistência dos sintomas de IC» (nÃvel 4, grau C)9.
Assim sendo, a técnica de bypass ultradistal, há muito reconhecida como uma hipótese viável no tratamento dos doentes com IC com doença crural, apresentou-se nestes 2 casos como uma boa opção terapêutica perante a falência das abordagens endovasculares iniciais.
Na primeira série de doentes tratados com bypass às artérias do pé, por Ascer et al., em 1988, foi demonstrada uma taxa de salvação de membro de 78% aos 5 anos1 e num vasto estudo retrospetivo desenvolvido ao longo de 10 anos por Pomposelli et al., onde foram efetuados 1.032 procedimentos à artéria pediosa, obteve-se uma taxa de salvação de membro aos 5 anos também de 78%2.
Outra questão pertinente e atualmente discutida é o impacto da falência das técnicas endovasculares nos resultados de uma alternativa cirúrgica convencional posterior.
No estudo BASIL os doentes submetidos a bypass após falência da via endovascular apresentaram piores taxas de salvação de membro em comparação com os que foram submetidos a bypass primário12. Nolan et al. reportaram que uma intervenção endovascular prévia é um fator de mau prognóstico nos doentes com IC submetidos a cirurgia de bypass, levando a taxas de trombose do enxerto e de amputação mais elevadas13. Foram propostas algumas explicações para este fenómeno e que são as seguintes:
- a falência da angioplastia inicial pode ser indicativa de fatores de risco especÃï¬cos do doente, como estados de hipercoagulabilidade, com o potencial de comprometer igualmente qualquer intervenção futura13.
- a técnica endovascular pode comprometer o runoff para uma futura intervenção por embolização ou trombose do leito arterial13,14.
- uma má qualidade da veia que ditou a opção por uma via endovascular inicial, ao ser utilizada na intervenção subsequente, inï¬uencia negativamente o resultado do bypass13.
No entanto, mais uma vez, estes estudos incluem doentes com doença infrainguinal e não são relativos a doença predominante do sector tÃbio-peroneal.
O único estudo publicado sobre este aspeto é da auto-ria de Christian et al15 e nele foi avaliado o impacto de uma intervenção endovascular prévia dos vasos crurais em doentes submetidos a bypass ultradistal. Os resultados não comprovaram diferenças signiï¬cativas na taxa de permeabilidade primária, secundária, de salvação de membro e na sobrevivência15.
A técnica de bypass ultradistal apresentou-se nestes 2 doentes como a melhor opção terapêutica. Depois de assegurado um bom inï¬ow e uma artéria plantar externa permeável com continuidade para a arcada plantar, ambos tiveram uma boa evolução clÃnica, com controlo da dor e uma rápida cicatrização com salvação do membro, objetivos primordiais do tratamento da IC.
Conclusão
Os procedimentos de revascularização ultradistais são seguros, duradouros e eï¬cazes em doentes com IC, desde que se observe um padrão apropriado de permeabilidade da artéria recetora com continuidade para a arcada plantar.
Os casos apresentados ilustram a sua importância nos casos de falência ou ineï¬cácia das técnicas endovasculares e sugerem que nestes casos se deve investir na avaliação dos critérios de exequibilidade de cirurgia aberta, a qual parece ter um lugar relevante na salvação do membro.
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais. Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Conï¬dencialidade dos dados. Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escrito. Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conï¬ito de interesses
Os autores declaram não haver conï¬ito de interesses.
Bibliograï¬a
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Correio eletrónico: pedrogarrido85@gmail.com (P. Garrido).
Recebido a 26 de julho de 2014;
Aceite a 23 de setembro de 2014
DisponÃvel na Internet a 17 de janeiro de 2015