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Angiologia e Cirurgia Vascular
versão impressa ISSN 1646-706X
Angiol Cir Vasc vol.10 no.4 Lisboa dez. 2014
CASO CLÃNICO
Degenerescência aneurismática na doença de Von Recklinghausen
Von Recklinghausenâs disease and multi-aneurysmal degeneration
Pedro Martinsa,*, Viviana Manuela, Tiago Ferreiraa, José Tiagoa, Augusto Ministroa, Carlos Martins a, José Silva Nunesa e José Fernandes e Fernandesa,b
a ClÃnica Universitária de Cirurgia Vascular, Hospital Santa Maria Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), Lisboa, Portugal
b Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal
RESUMO
A doença de Von Recklinghausen é uma facomatose de transmissão autossómica dominante. Apesar da heterogeneidade da expressão clÃnica, os estigmas cutâneos clássicos como manchas café au lait são frequentes. A arteriopatia é incomum, sendo a degenerescência aneurismática extremamente rara.
Os autores apresentam o caso clÃnico de um homem de 63 anos com doença de Von Recklinghausen e degenerescência multianeurismática aorto-ilÃaca, femoral e poplÃtea, submetido com sucesso a tratamento cirúrgico convencional.
A degenerescência aneurismática na doença de Von Recklinghausen encontra-se associada a displasia muscular lisa e a invasão neuroï¬bromatosa da parede vascular. Esta fragilidade arterial implica dissecção laboriosa e técnica cirúrgica meticulosa para limitar a hemorragia e a deiscência anastomótica.
Palavras-chave : Von Rcklinghausen; Aneurisma; Aorta
ABSTRACT
The Von Recklinghausenâs disease is a facomatosis with autosomal dominant transmission. Despite the heterogeneity of clinical expression, the classic cutaneous stigmata such as café au lait spots are common. The arteriopathy is unusual, with rare aneurysmal degeneration.
The authors disclose the clinical case of a 63 years old man with Von Recklinghausenâs disease and multi-aneurysmal degeneration of the aorto-iliac, femoral and popliteal sectors, who successfully underwent open surgery.
The aneurysmal degeneration in Von Recklinghausenâs disease is associated with smooth muscle dysplasia and neuroï¬bromatosis invasion of the vascular wall. This arterial fragility implies laborious and meticulous surgical dissection to limit the bleeding and anastomotic dehiscence. © 2014 Sociedade Portuguesa de Angiologia e Cirurgia Vascular.
Keywords: Von Recklinghausen; Aneurysm; Aorta
Introdução
A doença de Von Recklinghausen ou neuroï¬bromatose tipo I é uma facomatose de transmissão autossómica dominante com expressão variável e incidência de um em cada 3.000 indivÃduos1. Associa-se à mutação do gene onco-supressor da neuroï¬bromina 1 (NF1) no cromossoma 17 (17q11.2)2.
Apresenta expressão clÃnica heterogénea nos tecidos de origem mesodérmica e da crista neural, sendo os estigmas cutâneos clássicos como manchas café au lait e neuroï¬bromas frequentes1.
A arteriopatia é incomum, tendo sido descritas lesões estenosantes e aneurismáticas nos diversos territórios3. O termo «Vasculopatia NF1» tem sido empregue para descrever as múltiplas anomalias vasculares, arteriais e/ou venosas, que podem ser observadas na doença de Von Recklinghausen4.
Os autores divulgam o caso clÃnico pela sua raridade, após revisão do processo e pesquisa das palavras-chave Von Recklinghausen, neuroï¬bromatosis e aneurysms na base de dados PubMed.
Caso clÃnico
Homem de 63 anos de idade, fumador, hipertenso e com diagnóstico clÃnico prévio de doença de Von Recklinghausen, foi observado em consulta vascular por claudicação gemelar esquerda para 500 metros de marcha, não incapacitante e de instalação progressiva desde há um ano.
Objetivamente apresentava massas pulsáteis, expansÃveis e indolores à palpação nos trajetos aórtico infrarrenal (5 cm de diâmetro), femoral bilateral e poplÃteo direito. O exame vascular mostrou ausência de pulso poplÃteo e distais no membro inferior esquerdo e apenas pulso tibial posterior no pé direito.
O estudo por ecoDoppler evidenciou doença multianeurismática dos sectores aorto-ilÃaco, femoral (tipo I de 3cm de diâmetro) e poplÃteo bilateralmente. O aneurisma poplÃteo esquerdo (2 cm de diâmetro) encontrava-se ocluÃdo e o direito permeável, com trombo mural (2,9 cm de diâmetro) e doença tÃbio-peroneal associada.
O estudo complementar pré-operatório por angioTC revelou aneurisma da aorta infrarrenal (5,7 cm de diâmetro) com envolvimento ilÃaco primitivo bilateral, de invulgar anatomia, destacando-se a presença de múltiplas artérias renais acessórias (ï¬g. 1).
A avaliação por ecocardiograma e provas de função respiratória mostraram boa função sistólica global, sem áreas de hipocinesia ou valvulopatia relevante e obstrução brônquica-bronquiolar ligeira.
O estudo global e especÃï¬co permitiu determinar um risco operatório baixo a médio, pelo que o doente foi proposto para tratamento cirúrgico convencional da doença aneurismática proximal e posteriormente distal.
Por laparotomia mediana procedeu-se a ressecção parcial de aneurisma aorto-ilÃaco e femoral esquerdo por interposição de prótese bifurcada (Dacron® 18 mm) em posição aorto-ilÃaca primitiva distal direita-femoral comum distal esquerda. O eixo ilÃaco esquerdo foi excluÃdo (anastomose femoral esquerda termino-terminal) e manteve-se a permeabilidade da artéria hipogástrica direita. Foram reimplantadas no corpo da prótese 2 artérias renais acessórias e a artéria mesentérica inferior (ï¬g. 2). O aneurisma femoral direito foi ressecado e uma prótese foi interposta (Dacron® 9 mm) em posição femoral comum (ausência de envolvimento aneurismático da artéria femoral profunda).
O pós-operatório complicou-se subitamente à s 48 horas por choque hipovolémico em contexto de deiscência da anastomose de uma das artérias renais acessórias reimplantadas (ï¬g. 3). O doente foi reoperado e a hemóstase assegurada por suturas reforçadas com «pledgets».
O estudo histopatológico da parede aneurismática mostrou alterações degenerativas compatÃveis com aterosclerose avançada, não se veriï¬cando os aspetos tÃpicos de neuroï¬bromatose.
Cerca de 6 meses após a reconstrução proximal foi submetido a tratamento do aneurisma poplÃteo direito através da laqueação/exclusão e bypass femoral superï¬cial-poplÃtea infragenicular com veia safena interna ipsilateral invertida.
Aos 9 meses de «follow-up» o doente mantém-se assintomático, encontrando-se os procedimentos de revascularização permeáveis e em boa condição (ï¬g. 4). Será objeto de estudo por angioTC toraco-abdominal aos 12 meses e posteriormente de 5 em 5 anos, além de exame clÃnico e ecoDoppler arterial dos membros inferiores anual.
Discussão
A doença de Von Recklinghausen ou neuroï¬bromatose tipo I foi inicialmente descrita em 18825. Apresenta transmissão autossómica dominante com expressão variável e incidência de um em cada 3.000 indivÃduos1. Associa-se à mutação do gene onco-supressor da NF1 no braço longo do cromossoma 17 (17q11.2)2. A perda da sÃntese da NF1 conduz ao aumento da sinalização mitogénica e subsequente proliferação celular4.
A doença insere-se no espectro das facomatoses, doenças responsáveis por alterações neurocutâneas, com envolvimento preferencial da pele, olhos e encéfalo, sendo caracterÃsticas as manchas café au lait, os neuroï¬bromas benignos e os hamartomas da Ãris6. O prognóstico da doença é determinado pela presença de tumores cerebrais, nomeadamente astrocitoma e schwannoma maligno, sendo a causa de morte em 72% dos indivÃduos1.
O envolvimento vascular foi divulgado por Reubi em 1945, com a descrição de diferentes tipos de lesão vascular, dependentes do diâmetro do vaso afectado7.
O termo «Vasculopatia NF1» tem sido empregue para descrever as múltiplas anomalias vasculares arteriais, venosas ou arteriovenosas, que podem estar presentes na doença2,4. A prevalência da vasculopatia em algumas séries clÃnicas foi de 0,4-6,4%, no entanto, pode estar subestimada, pois a maioria das lesões são assintomáticas e de difÃcil diagnóstico clÃnico2,4.
Greene descreveu a displasia do músculo liso (mesodérmica) e a invasão neuroï¬bromatosa como os principais mecanismos de lesão vascular na ï¬bromatose8. As lesões podem ser estenosantes ou aneurismáticas, nos mais diversos territórios.
Oderich concluiu que o tipo, localização e histopatologia diferia com a idade dos doentes. Na sua série, a lesão vascular predominante foi renal (44%). As lesões estenosantes na «Vasculopatia NF1» não parecem envolver a origem das artérias, nomeadamente renais e mesentérica, particularidade distinta da aterosclerose. Os aneurismas da aorta ascendente e toraco-abdominal foram mais frequentes que os da aorta infrarrenal. Nos doentes com menos de 50 anos predominaram as estenoses ou aneurismas das artérias aorta, renais, mesentérica e carótidas com tendência para a presença de displasia mesodérmica no estudo patológico, enquanto os mais velhos apresentaram sobretudo aneurismas aórticos com aspetos caracterÃsticos de aterosclerose9.
O doente cujo caso clÃnico descrevemos apresentava os estigmas de doença cutânea caracterÃsticos da doença de Von Recklinghausen, nomeadamente neuroï¬bromas e manchas café au lait. O estudo histopatológico foi compatÃvel com processo degenerativo aterosclerótico, não mostrando os aspetos clássicos de neuroï¬bromatose, facto previamente constatado por Oderich no grupo de doentes mais idosos.
A arteriopata predominante foi a aneurismática, envolvendo os sectores aorto-ilÃaco, femoral e poplÃteo bilateralmente veriï¬cando-se arteriomegalia nos segmentos não-aneurismáticos. O padrão descritoéode doença multianeurismática tipo III da classiï¬cação de Hollier10.
A doença arterial exprimiu-se através de claudicação gemelar do membro inferior esquerdo por trombose de aneurisma poplÃteo e foi a investigação complementar que permitiu o diagnóstico da doença aneurismática aórtica assintomática, com impacto relevante no prognóstico do doente.
A sobrevida dos doentes com neuroï¬bromatose tipo é inferior ao da população em geral, sendo a doença vascular a segunda causa de morte após as neoplasias malignas11. Alguns autores sugeriram o rastreio imagiológico da doença vascular oculta, pelo seu potencial impacto negativo na sobrevida, estando descritos casos de rutura de aneurismas aórticos e viscerais previamente desconhecidos12,13.
Oderich defende que as indicações para o tratamento dos aneurismas não devem ser distintas daquelas adotadas para a população em geral, nomeadamente diâmetro máximo de 5,5 e 6 cm, respetivamente, para aneurismas da aorta abdominal e toraco-abdominal9. No entanto, a conhecida fragilidade da parede arterial poderia, eventualmente, justiï¬car a indicação para intervenção mais precoce, à semelhança do que se veriï¬ca na sÃndrome de Marfan.
A raridade da «Vasculopatia NF1» e suas particularidades podem tornar difÃcil a deï¬nição das estratégias cirúrgicas a adotar.
A difÃcil dissecção cirúrgica associada a hemorragia profusa dos tecidos perivasculares bem como a fragilidade da parede arterial que complica a realização das anastomoses têm sido descritas14,15. Estes aspetos aumentam a complexidade da intervenção cirúrgica e a sua morbimortalidade associada.
A intervenção endovascular torna-se atrativa, sobretudo em contexto de rutura de aneurismas aórticos e viscerais, tendo sido descritos casos de implantação de «stents» cobertos e endopróteses aórticas13,16.
O «stress» parietal exercido pelos «stents» e os mecanismos fÃsicos de ï¬xação e «sealing» das endopróteses aórticas em artérias de frágil parede podem conceptual-mente associar-se a complicações relevantes. Falcone e Park descreveram pseudoaneurismas aórticos provocados por lesões parietais associadas à s extremidades das endopróteses implantadas para tratamento de aneurismas aórticos na doença de Von Recklinghausen16,17.
Optámos por intervenção cirúrgica convencional no caso que apresentamos pela idade relativamente jovem, ausência de comorbilidades relevantes e presença de particularidades anatómicas que diï¬cultariam o tratamento endovascular (múltiplas artérias renais acessórias e aneurismas femorais bilaterais).
Constatámos intraoperatoriamente hemorragia difusa perivascular associada à dissecção e fragilidade da parede arterial. Além das recomendações de Oderich et al.9 para adoção de técnica de dissecção não traumática e «clamps» vasculares «protegidos», sugerimos o reforço hemostático das anastomoses («pledgets/strips» de Teï¬on® ou cola biológica).
Conclusão
A «Vasculopatia NF1» é uma entidade clÃnica rara, constituindo um desaï¬o diagnóstico e terapêutico.
A doença vascular, frequentemente assintomática, é uma causa de morte relevante na doença de Von Recklinghausen, pelo que se deve ponderar a implementação de um programa de rastreio vascular neste grupo de doentes.
O envolvimento vascular foi descrito nos mais distintos territórios, estando múltiplas opções terapêuticas disponÃveis. A reconhecida fragilidade da parede arterial associada à hemorragia perivascular profusa durante a dissecção aumentam a complexidade da intervenção cirúrgica convencional, tornando-se a abordagem endovascular atrativa.
O caso clÃnico descrito apresenta a cirurgia convencional como uma opção segura e eï¬caz em contexto de degenerescência multianeurismática na doença de Von Recklinghausen, num doente sem risco operatório elevado, com bom resultado a curto e médio prazo.
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais. Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Conï¬dencialidade dos dados. Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escrito. Os auto-res declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conï¬ito de interesses
Os autores declaram não haver conï¬ito de interesses.
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Correio eletrónico: pmalvesmartins@hotmail.com (P. Martins).
Recebido a 19 de agosto de 2014;
Aceite a 14 de outubro de 2014
DisponÃvel na Internet a 7 de novembro de 2014