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Angiologia e Cirurgia Vascular
versão impressa ISSN 1646-706X
Angiol Cir Vasc vol.13 no.3 Lisboa dez. 2017
CASO CLÍNICO
Fibrose retroperitoneal secundária à colocação de stents aorto-ilíacos: a propósito de 2 casos clínicos
Retroperitoneal fibrosis secondary to the placement of aorto-iliac stents: 2 clinical cases
Daniel Mendes1, Rui Machado1,2, Duarte Rego1, Vitor Ferreira1, João Gonçalves1,Gabriela Teixeira1, Inês Antunes1, Carlos Veiga1, Rui Almeida1
1Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular — Centro Hospitalar do Porto - Hospital de Santo António
2Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar — Universidade do Porto
Autor para correspondência
RESUMO
A fibrose retroperitoneal (FR) é uma doença rara, caracterizada por inflamação e fibrose na periferia da aorta abdominal com disseminação ao longo do espaço retroperitoneal, invadindo estruturas contíguas. Em cerca de dois terços dos casos esta condição é idiopática havendo uma etiologia definida nos restantes. Mais frequentemente as formas secundárias estão associadas a fármacos e neoplasias, no entanto outras situações podem levar ao desenvolvimento da doença. Na última década tem surgido alguma evidência de que a FR está associada à angioplastia, stenting ou implantação de endoprótese nos eixos aortoilíacos, no entanto a literatura publicada é muito escassa. Apresentamos a nossa experiência com dois doentes com isquemia grau IIb, um com estenose pré-oclusiva da artéria ilíaca comum esquerda tendo sido submetido angioplastia e stenting da lesão, outro com estenose morfologicamente significativa da aorta abdominal infrarrenal tendo sido submetido a angioplastia e colocação de dois stents cobertas aortoilíacos sob a forma de kissing stent. Ambos os doentes desenvolveram dor lombar marcada tendo sido visualizado em angio-TC um processo inflamatório periaórtico sugestivo de fibrose retroperitoneal que posteriormente evoluiu para aneurisma inflamatório da aorta abdominal. O mecanismo fisiopatológico desta alteração não se encontra descrito, no entanto, poderemos supor que a angioplastia e stenting poderá levar a rotura da integridade da placa aterosclerótica com exposição de antigénios contidos no seu interior desencadeando uma resposta inflamatória local. Por outro lado, poderá existir uma reação imunológica diretamente contra o stent. É importante pensar nesta possível complicação, uma vez que existe uma notável resposta à corticoterapia e pela possibilidade de desenvolvimento de aneurisma da aorta inflamatório.
Palavras-chave: Fibrose retroperitoneal; Stent; Endoprótese; Aneurisma da aorta abdominal
ABSTRACT
Retroperitoneal fibrosis (RF) is a rare disease, characterized by inflammation and fibrosis in the periphery of the abdominal aorta which spreads within the retroperitoneal space, invading adjacent structures. In about two thirds of the cases this condition is idiopathic presenting a identified cause in the rest. In the majority of cases, secondary forms are associated with drugs and neoplasia, but there are more situations that can lead to the development of the disease. Recently, evidence has emerged that RF is related with angioplasty, stenting or implantation of endoprosthesis in aortoiliac axes, however, literature is very scarce. We present our experience with two patients with grade IIb arteriopathy, one with preocclusive stenosis of the left common iliac artery treated with angioplasty and stenting of the lesion, other with morphologically significant stenosis of the infrarenal abdominal aorta where angioplasty and placement of two aortoiliac stentgrafts in the form of kissing the stent was performed. Both patients have manifested marked lumbar pain with a periaortic inflammatory process suggestive of retroperitoneal fibrosis visualized in CT angiography that evolved to abdominal inflammatory aortic aneurysm. The pathophysiology of this findings is not known; however, we may assume that angioplasty and stenting can disturb plaque integrity with antigen exposure triggering a local inflammatory response. On the other hand, an immune reaction directly against the stent may arise. It is important to think about this occurrence, since there is a good response to steroid therapy in this patients and because of the possible progression to inflammatory aortic aneurysm.
Keywords: Retroperitoneal fibrosis; Stent; Endoprosthesis; Abdominal aortic aneurysm
INTRODUÇÃO
A crescente utilização da terapêutica endovascular está associada a um novo conjunto de complicações como a rotura arterial, embolização, disseção, trombose, falência na expansão, incorreto posicionamento e migração do material implantado(1,2,3). A infeção do stent embora seja uma complicação rara, é grave, pois exige a sua remoção(4).
A literatura publicada é muito escassa sobre a possibilidade da angioplastia, stenting ou implantação de endoprótese poder induzir fibrose retroperitoneal (FR) ou alterações inflamatórias periaórticas.
A FR ou doença de Ormond é uma doença rara, caracterizada pelo desenvolvimento de tecido fibro-inflamatório envolvendo a aorta abdominal e as artérias ilíacas com progressão ao longo do espaço retroperitoneal, invadindo estruturas contíguas nomeadamente os ureteres(5). Em cerca de dois terços dos casos a FR é idiopática sendo nos restantes secundária a neoplasias, fármacos, radioterapia, trauma ou infeções(6). A idade média do seu diagnóstico situa-se na 6ª e 7ª décadas de vida(7) sendo a incidência no sexo masculino trêsvezes superior à do sexo feminino(8).
A FR idiopática está englobada no espectro das manifestações da periaortite crónica, entidade esta caracterizada por inflamação adventicial e periadventicial, estreitamento da média e aterosclerose avançada. As restantes formas da doença englobam o aneurisma inflamatório da aorta abdominal e a fibrose retroperitoneal perianeurismátia(9).
A patogénese da FR permanece desconhecida. A teoria mais aceite propõe que a doença se deve a uma resposta inflamatória local a antigénios presentes na placa aterosclerótica da aorta(10). Esta evidência é favorecida pelo facto da periaortite crónica estar fortemente associada à presença do alelo HLA-DRB*03 sendo este também encontrado em várias doenças autoimunes.(11).
Descrevemos 2 casos clínicos em que após a realização de stenting aortoilíaco se observou o desenvolvimento de fibrose retroperitoneal e aneurisma aórtico inflamatório.
CASO CLINICO 1
Doente de 58 anos fumador, com antecedentes de doença cardíaca isquémica, DPOC e diabetes mellitus tipo 2, referenciado à consulta de cirurgia vascular por isquemia grau IIb do membro inferior esquerdo. O doente realizou angio-TC que demonstrou estenose morfologicamente significativa da artéria ilíaca comum esquerda (AICE) e um diâmetro aórtico máximo de 23.4mm, sem evidência de outras alterações nomeadamente inflamação aórtica, periaórtica ou retroperitoneal (Fig. 1). Após caracterização angiográfica da doença, foi confirmada uma estenose pré-oclusiva da AICE (Fig. 2) e realizada a angioplastia e stenting (nitinol 10X100mm) da lesão (Fig. 3), com resolução imagiológica e clínica.
O doente manteve-se em vigilância regular durante três anos não havendo qualquer alteração clínica ou hemodinâmica.
Nesta altura, inicia queixas de dor lombar incapacitante com irradiação para a região anterior do abdómen tendo em consequência realizado nova angio-TC abdomino-pélvico onde se observou densificação da gordura periaórtica infra-renal a sugerir um padrão inflamatório estendendo-se para as artérias ilíacas comuns de forma circunferencial, e apresentando uma espessura máxima de cerca de 1,5cm. Esta observação fez o diagnóstico de fibrose retroperitoneal (Fig. 4), já que a infeção havia sido excluída pela realização de uma imunocintigrafia anti-granulócitos. Não foi possível recuperar os valores de velocidade de sedimentação e da proteína-c reativa (PCR).
O doente iniciou terapêutica com metilprednisolona numa dose diária de 16mg com melhoria marcada das queixas após 2 meses, procedendo-se à redução gradual da dose. Foi possível suspender o fármaco após 8 meses, não ocorrendo recorrência sintomatológica até ao momento.
Contudo, em angio-TC realizado 5 anos após o stenting observa-se diminuição da espessura da densificação da gordura periaórtica, associada a aneurisma inflamatório da aorta abdominal infra-renal com 31mm de diâmetro, (Fig. 5) o qual se mantém em vigilância.
CASO CLINICO 2
Homem de 67 anos, fumador, com doença cardíaca isquémica, hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2 e dislipidemia, referenciado à consulta de cirurgia vascular por isquemia grau IIb dos membros inferiores. O doente foi submetido a estudo vascular com angio-TC e angiografia clássica que demonstrou estenose morfologicamente significativa da aorta abdominal infrarrenal (Fig. 6) tendo sido submetido a angioplastia e colocação de duas endopróteses cobertas (nitinol e PTFE 8X100mm) aorto-iliacas sob a forma de kissing stent (Fig. 7), com resolução imagiológica e sintomatológica. A angio-TC prévia ao tratamento demonstrava um diâmetro aórtico máximo de 20.6mm (Fig. 8).
Aos quatro meses, o doente inicia dor lombar incapacitante com irradiação para o membro inferior direito tendo realizado nova angio-TC abdomino-pélvico onde se observou espessamento circunferencial a envolver a parede da aorta terminal sugerindo fibrose retroperitoneal (Fig. 9), já que a infeção havia sido excluída pela realização de uma imunocintigrafia anti-granulócitos. Apresentava elevação dos parâmetros inflamatórios com PCR de 161,76 mg/L.
O doente iniciou terapêutica com prednisolona numa dose diária de 20mg com resolução sintomatológica e redução da PCR para 23,38 mg/L após 2 meses de tratamento. Foi possível suspender o fármaco após um ano, não ocorrendo recorrência dos sintomas até ao momento.
No entanto, em angio-TC realizado dois anos após o stenting observou-se espessamento da gordura periaórtica associado a aneurisma da aorta abdominal infrarrenal com cerca de 31mm de diâmetro (Fig. 10) que se encontra atualmente em vigilância.
DISCUSSÃO
A FR é uma entidade clínica que tem merecido grande atenção médica nos últimos anos. Embora a sua forma idiopática seja a mais comum, a doença pode ser secundária a um vasto leque de condições clínicas. Sabe-se muito pouco acerca da possibilidade desta condição poder estar associada à implantação de dispositivos endovasculares. Na literatura existe apenas um relato de um caso clínico em que a FR foi secundária à implantação de um kisssing stent ilíaco(12). Foi também já demonstrada a possibilidade de existir periaortite e alterações fibro-inflamatórias periaórticas secundárias à implantação de endopróteses na correção do aneurisma da aorta abdominal, existindo 5 casos descritos na literatura(13,14,15,16,17). Nalguns destes casos, os doentes apresentaram complicações da FR nomeadamente obstrução uretral com hidronefrose. Possivelmente, o facto dos sintomas da doença serem inespecíficos condiciona o seu subdiagnóstico.
Embora a fisiopatologia da FR não esteja totalmente definida, a teoria mais aceite defende que a FR idiopática se deve a uma resposta inflamatória local a antigénios da placa aterosclerótica, nomeadamente lipoproteínas de baixa densidade oxidadas e depósitos ceróides(10). No caso particular de FR e periaortite associada aos stents endovasculares o mecanismo fisiopatológico não se encontra descrito na literatura. Poderemos supor que a angioplastia e stenting poderá levar a rotura da integridade intima-média com exposição de antigénios contidos no interior da placa aterosclerótica desencadeando uma resposta inflamatória local. Por outro lado poderá existir uma reação alérgica ou de corpo estranho diretamente contra determinados componentes do stent. Aliás, Shurmman et al demonstraram a possibilidade de existir uma resposta de corpo estranho a stents revestidos com dacron em modelo animal(18).
Na nossa experiência, os doentes apresentaram manifestações clínicas clássicas de FR, com dor lombar marcada como principal sintoma, com resolução clinica com a corticoterapia. Contudo, é importante realçar que em ambos os casos apresentados, os doentes apesar de assintomáticos, desenvolveram aneurismas inflamatórios da aorta abdominal sugerindo a manutenção de um processo inflamatório/imunológico local na parede aórtica. Apesar da taxa de crescimento do AAA ser de aproximadamente 2–3mm/ano e se correlacionar com o seu diâmetro, a taxa de crescimento em aortas não aneurismáticas não está definida, mas será expectável que seja bastante inferior.
CONCLUSÃO
A nossa experiência vem demonstrar a possibilidade da implantação de stents aortoilíacos poder estar associada ao desenvolvimento de periaortite crónica e fibrose retroperitoneal. A literatura publicada é escassa no que se refere a esta associação. A relevância desta complicação prende-se com o facto de que à semelhança de todas as formas de periaortite crónica existir uma boa resposta à corticoterapia e uma associação com aneurismas aórticos inflamatórios.
BIBLIOGRAFIA
Schachtrupp A, Chalabi K, Fischer U, Herse B. Septic endarteritis and fatal iliac wall rupture after endovascular stenting of the common iliac artery. Cardiovasc Surg Lond Engl. 1999 Mar;7(2):183–6. [ Links ]
Groot Jebbink E, Holewijn S, Slump CH, Lardenoije J-W, Reijnen MMPJ. Systematic Review of Results of Kissing Stents in the Treatment of Aortoiliac Occlusive Disease. Ann Vasc Surg [Internet]. 2017 Apr [cited 2017 Jun 2]; Available from: http://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0890509616307944 [ Links ]
Correio eletrónico: Daniel5.mds@gmail.com (D. Mendes).
Recebido a 2017-06-14;
Aceite a 25-10-2017;