Introdução
Os aneurismas micóticos são uma patologia primeiramente descrita por Osler em 1885(1), que relata o desenvolvimento de um aneurisma secundário a uma infeção. O termo utilizado não se restringe a agentes fúngicos mas sim qualquer microrganismo.
A aorta e as artérias periféricas são os alvos preferenciais desta patologia. Os aneurismas micóticos das carótidas na sua topografia extracraniana são particularmente raros.
Historicamente, com a melhoria sistemática das condições de higiene e com o uso de antibióticos, os contextos de endocardite, sífilis e tuberculose foram gradualmente assumindo uma menor importância nesta patologia(2).
As manifestações dos aneurismas infeciosos podem variar de acordo com o território afetado. Podem ser assintomáticos ou apresentarem-se como massas pulsáteis, sintomas compressivos, rotura ou embolização sética. Na sua topografia cervical são mais suscetíveis a manifestarem-se como lesões ocupantes de espaço, com disfunção de pares cranianos associada. Podem ocorrer complicações graves como acidente vascular cerebral ou abcessos cerebrais.
O tratamento é tradicionalmente cirúrgico, sendo o desbridamento ou drenagem do território infetado transversal a todas as técnicas. A laqueação carotídea aparece como uma das primeiras descritas, mas a sua elevada morbilidade levou à adoção de estratégias que permitem a revascularização cerebral.
Uma vez que o conhecimento desta patologia se baseia maioritariamente em casos clínicos, os autores propõem apresentar uma revisão sistemática da literatura com a intenção de delinear uma compreensão mais generalizada deste tema.
Materiais e métodos
Pesquisa da literatura publicada
Foram consultadas as bases de dados PubMed e EmBase utilizando as palavras-chave “infected aneurysm” e “carotid artery”.
Foram incluídos todos os trabalhos em inglês dos últimos 40 anos (1979 a 2019).
Obteve-se um total de 90 artigos, integralmente analisados.
Avaliação da literatura disponível
Os estudos que descrevem casos sobre aneurismas carotídeos intracranianos foram excluídos.
Os pseudoaneurismas traumáticos e as lesões secundárias a complicações de cirurgia vascular não foram admitidos pela possibilidade de considerarem uma fisiopatologia diferente daquela intencionada pelo tema do presente trabalho.
Foram excluídos 35 artigos, 23 dos quais por descreverem aneurismas carotídeos em topografia intracraniana, 8 por estarem escritos em língua não inglesa e 4 por descreverem casos relacionados com complicações de cirurgia vascular prévia.
Extração de dados
Sempre que disponíveis, foram colhidos dados demográficos e antecedentes pessoais relevantes, tal como antecedentes de infeções prévias que permitissem verificar a relação de causalidade. Foram incluídos ainda dados que permitissem caracterizar a localização, a apresentação clínica e a microbiologia.
O tratamento realizado e o conduto utilizado foram incluídos na base de dados, tal como a descrição de eventuais intercorrências durante o follow-up.
Os dados relativos a antibioterapia, esquema posológico utilizado e tempo de seguimento eram escassos, pelo que não foram incluídos.
A metodologia encontra-se resumidamente representada em fluxograma (Fig.1)
Resultados
Demografia e antecedentes
A aplicação dos critérios de inclusão permitiu a análise de 55 artigos, relatando dados sobre 58 doentes.
A mediana de idades foi de 63 anos (mín. 9 meses; máx. 88 anos), sendo 67% dos doentes de sexo masculino.
Os antecedentes pessoais relevantes foram descritos em 51 doentes e estão representados na tabela 1
Cerca de 61% dos doentes apresentava história de infeções locais ou remotas prévias. Patologias neoplásicas estavam presentes em 14% dos casos. A imunossupressão farmacológica estava presente em 6% da amostra.
Localização
O território arterial afetado estava descrito em 53 casos. A localização mais comum foi a carótida interna (ACI) (31 casos) seguida pela carótida comum (ACC) em 20 casos. Em 49 dos casos (92%) a lesão localizava-se próximo da bifurcação carotídea, em 3 casos na carótida comum intratorácica e em 1 caso na ACI ao nível da base do crânio.
A lateralidade encontrada foi de 52% à direita (54 casos).
Diagnóstico e microbiologia
As apresentações clínicas encontradas estão reunidas na tabela 2.
O método de diagnóstico mais utilizado, em 62% da amostra, foi a angiografia por tomografia computorizada (AngioTC). A angiografia de subtração digital (ASD) fez o diagnóstico em 28% dos doentes. O recurso a ressonância magnética para diagnóstico de aneurisma micótico das carótidas apenas ocorreu em 2 casos.
A microbiologia é descrita na tabela 3. Os agentes mais frequentes foram o Staphylococcus aureus (26%) e a Salmonella spp (19%).
Tratamento e complicações
As estratégias terapêuticas encontram-se retratadas na tabela 4. A técnica mais utilizada foi a resseção do falso aneurisma e desbridamento de tecido infetado circundante, com revascularização por interposição de enxerto carotido-carotídeo.
O caso de resseção e angioplastia com patch foi relativo a um aneurisma da carótida comum proximal, sendo necessária a abordagem da lesão por esternotomia.
Outros artigos descrevem o recurso a técnicas endovasculares por diversos fatores. Estes incluem uma localização desfavorável a uma abordagem cirúrgica (intratorácica ou na proximidade da base do crânio) ou a incapacidade em garantir zonas de controlo adequadas (aneurismas volumosos).
Estão descritos 8 casos de exclusão do aneurisma micótico por embolização com coils das carótidas interna e comum. Destes, 1 caso já apresentava oclusão prévia da carótida interna pelo que se embolizou apenas a carótida comum.
Os materiais utilizados para reconstrução arterial foram descritos em 30 doentes. Foram utilizados enxertos de veia grande safena (n=22), politetrafluoroetileno (PTFE) (n=4), veia jugular externa (n=1), Dacron impregnado em antibiótico (n=1), pericárdio autólogo (n=1) e aloenxerto de cadáver (n=1).
Em 11 doentes foram utilizados mecanismos de proteção cerebral. Destes, o uso de shunt foi preferencial (9 casos). Em 1 caso foi utilizado concomitantemente o shunt e o Döppler transcraniano intraoperatório.
Num artigo foi descrito ainda o recurso a paragem cardíaca hipotérmica devido à particularidade de a circulação cerebral posterior ser dependente de uma artéria hipoglossal primitiva atingida pelo aneurisma.
Dos 50 doentes com informação do seguimento, foram relatados 4 casos de lesão de pares cranianos, 1 AVC maciço da circulação posterior e 7 mortes.
Discussão
Os aneurismas micóticos podem afetar qualquer artéria do corpo humano, mas atingem mais frequentemente artérias de grande calibre, em zonas de bifurcação. A localização de aneurismas infeciosos nas carótidas extracranianas é rara. A sua incidência corresponde a 5-12% de todas as localizações(3,4).
A embolização de material séptico com oclusão luminal ou de vasa vasorum e a posterior invasão bacteriana da parede, foi o mecanismo inicialmente descrito em doentes com endocardite. Mais tarde verificou-se que as artérias previamente saudáveis poderiam sofrer um processo de degradação por infeções contíguas.
Atualmente estão descritos 4 mecanismos fisiopatológicos para o desenvolvimento de aneurismas infeciosos: arterite microbiana (inoculação bacteriana através de infeções locais invasivas(5) ou disseminação hematogénea de infeção remota(6)), pseudoaneurismas traumáticos sobreinfetados, infeção de aneurismas degenerativos previamente existentes e aneurismas secundários a endocardite(7).
Alguns autores alegam que a disrupção intimal causada pelo processo de aterosclerose é o principal fator predisponente para o alojamento de microrganismos(8).
A bifurcação carotídea é um local frequentemente habitado por placas de ateroma e próxima de gânglios linfáticos, explicando a predominância de aneurismas infeciosos encontrados nesta localização.
A apresentação clínica pode variar entre sintomas inespecíficos como mal-estar ou febre, até rotura com compromisso da via aérea. Uma massa cervical com febre associada é uma apresentação particularmente comum.
O tempo entre o evento agressor e a manifestação do aneurisma pode variar largamente, tornando mais difícil correlacionar sintomas com a suspeita de aneurismas infeciosos.(4)
O exame de imagem mais utilizado para documentar a presença de um aneurisma micótico é a AngioTC(9,10). A observação de aneurismas com configurações saculares, gás peri-lesional ou infiltrado inflamatório dos tecidos envolventes são sugestivos da possibilidade do diagnóstico.
Apesar de descrito no presente trabalho o método de imagem que fez o diagnóstico, verificou-se que múltiplos artigos descreviam a necessidade de vários exames. O recurso a ressonância magnética permitiu não só a caracterização morfológica das lesões, mas também estudar a presença de microenfartes ou abcessos cerebrais(11).
A ASD tem a vantagem de oferecer uma via de acesso para tratamento endovascular, mas perde em resolução espacial e estudo de estruturas circundantes face aos métodos anteriores. No território cervical das carótidas, a ASD poderá ser útil em criar imagens seletivas da ACC, ACI ou carótida externa e esclarecer qual a origem da lesão.
A microbiologia encontrada na literatura é diversificada, mas está presente uma dominância do Staphylococcus aureus e Salmonella spp. O agente responsável relaciona-se com o mecanismo de lesão arterial, o local da infeção de origem e o estado imunitário do doente(12).
Condições como cirrose, extremos de idade, cirurgia major recente, hemodiálise, infeção por vírus da imunodeficiência humana (VIH), imunossupressão farmacológica, neoplasias ou quimioterapia, estão associadas a aumento do risco de arterite microbiana(7,8,13,14).
No entanto, a imunodeficiência local também é um processo a ter em conta. Cicatrizes, hematomas, fraturas ou placas de ateroma são locais disponíveis para albergar bactérias como Salmonella spp (7,13).
O conhecimento dos agentes mais prováveis é um passo importante na gestão da antibioterapia.
Deve ser iniciado um fármaco bactericida e de largo espectro imediatamente após o diagnóstico e posteriormente dirigido aos resultados das culturas.
As hemoculturas de sangue periférico podem não ser suficientes para conseguir isolar o microrganismo responsável, sendo importante a colheita de material infetado (p.e. pús de abcesso ou biópsia excisional de aneurisma)(12).
Não existe consenso quanto à duração da antibioterapia, mas uma duração mínima de 6 semanas é frequentemente defendida(3).
O tratamento cirúrgico é a pedra basilar na gestão de aneurismas infeciosos. São múltiplas as técnicas utilizadas mas na sua maioria é transversal a necessidade de drenagem e desbridamento do local infetado.
Com interesse maioritariamente histórico, surge a laqueação carotídea. Esta técnica surge como primeiro tratamento definitivo. Nos primeiros trabalhos que defendem essa cirurgia, argumentam que o prognóstico é melhor do que os doentes submetidos a tratamento médico/conservador(15).
Segundo Ehrnefeld(16), a laqueação carotídea é segura desde que verificada uma stump pressure >70mmHg.
É descrita a possibilidade de testes de oclusão com catéter-balão para verificar a colateralidade cerebral e permitir calcular riscos de oclusão carotídea. Esta manobra reduz a taxa de complicações neurológicas, mas a morbilidade continua a não ser negligenciável(17).
No entanto, são reportadas taxas de mortalidade e AVC major entre 20-60% após laqueação carotídea(18), cuja manifestação se poderá estender até às 6 semanas(19). Assim, é entendido que a laqueação carotídea se deverá limitar a casos em que a revascularização não é possível.
Atualmente a reconstrução carotídea através de bypass ACC-ACI com recurso a condutos autólogos é a técnica preferida. Habitualmente é utilizada a veia grande safena, mas também é referido o uso de veia jugular externa, artéria hipogástrica e artéria femoral superficial(19).
A reconstrução com anastomose topo-a-topo poderá ser usada em casos de lesões pequenas, com carótidas internas redundantes.
Apesar da ocorrência de complicações como deiscência anastomótica, lesões de pares cranianos e AVC, a taxa de mortalidade é cerca de 4-7%(20,21). Assim, torna-se óbvia a vantagem das técnicas de revascularização face à laqueação carotídea.
São descritos alguns casos em que a localização do aneurisma causa preocupações relativamente ao controlo com uma abordagem cirúrgica. São exemplos as situações em que a carótida comum intratorácica é afetada (implicando uma esternotomia para exposição) ou lesões situadas na proximidade da base do crânio com as inerentes dificuldades no controlo distal.
Deste modo, tal como em casos cuja condição física torna proibitiva a abordagem cirúrgica, surge a necessidade de recurso a técnicas endovasculares.
As desvantagens associadas são a não remoção do tecido infetado e consequente incapacidade em se delimitar a antibioterapia, a possibilidade de infeção do material protésico colocado e a embolização sética por manipulação do território atingido.
A oclusão com coils ou exclusão carotídea com balões é descrita como exequível, mas com taxas de AVC de 17-30%(17).
A exclusão do aneurisma com stents revestidos permite a redução do risco de rotura e hemorragia, a revascularização carotídea e o acesso a topografias intracavitárias, de forma minimamente invasiva.
Estas vantagens são contrabalançadas pelo risco vitalício de infeção do dispositivo, podendo haver a necessidade de antibioterapia prolongada(19). A manifestação desta complicação poderá precipitar a necessidade de cirurgia aberta para remoção do material protésico.
Assim, pode ser considerado como tratamento temporário até à estabilização clínica ou como tratamento definitivo em casos selecionados. Apesar de uma alternativa atrativa, não há dados relativos ao benefício a longo prazo.(19,20,22)
Conclusão
Aneurismas micóticos das carótidas extracranianas são entidades raras mas desafiantes.
A identificação e tratamento atempados não são fáceis mas têm importantes implicações no prognóstico.
A antibioterapia é imperativa e de forma prolongada, sendo um mínimo de 6 semanas frequentemente utilizado.
A cirurgia convencional com revascularização carotídea usando condutos autólogos é o método preferencial. No entanto, a mortalidade aproxima-se dos 5%.
As abordagens endovasculares são atrativas, especialmente de forma temporária até estabilização clínica, mas não existem dados sólidos quanto ao benefício a longo prazo.
A melhor atitude terapêutica continua a ser adaptada a cada caso.