Introdução
A doença arterial periférica (DAP) traduz uma patologia obstrutiva do lúmen arterial, dentro da qual, a isquemia ameaçadora de membro expressa um estadio avançado desta doença.
Uma vez submetidos a revascularização por cirurgia direta, os doentes apresentam resultados muito variáveis, dependendo de determinadas especificidades anatómicas e características morfológicas da DAP, da extensão da lesão eventualmente existente, da presença ou não de infecção, mas também de fatores de risco cardio-vasculares que o doente eventualmente apresente, das suas comorbilidades concomitantes e do seu perfil analítico pré-operatoriamente .
A aterosclerose é conhecida como sendo uma doença inflamatória sistémica, encontrando-se descrito que, na DAP a inflamação sistémica é superior relativamente à doença coronária com maiores taxas de citoquinas inflamatórias e stress oxidativo(1-3).
Relativamente a fatores de risco, muitos doentes apresentam história pessoal de tabagismo, diabetes melitos, hipertensão arterial, dislipidemia e doença renal crónica o que, por si só, se associa a uma maior taxa de eventos cardiovasculares com associada reduzida qualidade e esperança média de vida, comparado com a população em geral(2,4,5).
Não menos importante, a presença de anemia tem sido associada a um maior risco de mortalidade e perda de membro em doente com DAP, embora seja discutível a sua associação com pior outcome quando perante uma situação clínica estável(6,7).
Alguns estudos prévios procuraram elaborar sistemas de score preditivos de mortalidade a curto e médio prazo, contudo a sua validade permanece discutível(8-10).
Este trabalho pretendeu analisar os parâmetros analíticos pré-operatórios de doentes com DAP e inferir sobre eventuais correlações com os resultados dos doentes submetidos a revascularização por cirurgia direta entre 2012 e 2014.
Material e métodos
Acedeu-se ao processo clínico, através do programa SClínico®, dos doentes consecutivamente admitidos entre 2012 e 2014 com diagnóstico de DAP e eletivamente submetidos a revascularização por cirurgia direta, no Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho.
Foram então registados os seus fatores de risco cardio-vasculares (hábitos tabágicos, hipertensão arterial, cardiopatia isquémica, dislipidemia, diabetes melitus e doença renal crónica) para procurar analisar grupos uniformes. As comorbilidades foram apenas registadas como presentes ou ausentes, não tendo sido realizada categorização consoante a sua gravidade.
Procedeu-se a uma colheita dos dados analíticos pré-operatórios (< 48horas pré cirurgia de revascularização). Os dados pesquisados foram: proteína c-reativa, proteínas totais e albumina, hemoglobina, creatinina sérica e ureia.
Os outcomes primários definidos foram permeabilidade, perda de membro e mortalidade. Da análise estatística procurou-se estabelecer uma relação com resultados desfavoráveis.
Foi tomado em consideração e separados por grupos, os doentes submetidos a cirurgia de revascularização do sector aorto-ilíaco, femoro-poplíteo supra articular e femoro-crural, de forma a avaliar grupos específicos, isoladamente.
Também se procedeu à sua estratificação segundo classificação de Leriche-Fontaine.
As variáveis contínuas foram avaliadas em termos de média e desvio padrão e as categóricas em termos de frequência e percentagem. Os fatores de risco base bem como os parâmetros analíticos avaliados foram analisados utilizando o t-test para variáveis contínuas e o teste Fisher para variáveis categóricas, tal como apropriado.
Os autores tiveram como valores de referência para dicotomização das coortes a estudar um valor de proteína c-reativa de inferior a 0,5 mg/L, proteínas totais entre 6,4 e 8,3g/dL, albumina entre 3,4 e 4,8g/dL, creatinina sérica inferior a 1,2mg/dL e ureia sérica inferior a 43mg/dL, uma vez que esses valores representam os valores aceites como normais para cada um dos parâmetros(11).
A concentração de hemoglobina foi ainda dividida em três grupos de estudo, o primeiro considerado como anemia severa, abaixo de 10.5g/dL, segundo entre 10.5g/dL e 12g/dL considerado como anemia moderada e terceiro para valores superiores a 12g/dL ou 13g/dL, aceites como normal. A anemia foi definida segundo os critérios da World Health Organization (Hg<12.0 g/dL em mulheres e <13.0 g/dL em homens)(12).
O estudo estatístico foi realizado através de análise multivariada por meio da regressão de Cox de forma a identificar possíveis fatores preditores independentes de um resultado desfavorável, bem como evitar a existência de fatores confundidores.
Foram apenas analisados e englobados no estudo os doentes que concluíram doze meses de seguimento pós-revascularização, tendo os restantes sido excluídos da análise. O plano de seguimento pós cirurgia de revascularização consistia em avaliação a um, três, seis e doze meses.
Em cada consulta procedeu-se ao registo da história clínica, exame físico com realce para a palpação de pulsos e avaliação do índice tornozelo-braço (ITB) em repouso, ou após prova de marcha, se considerado necessário. Se recorrência de sintomas, perda de pulso previamente palpável e queda de ITB superior a 0.15, procedia-se a estudo complementar com ecoDoppler e orientação conforme resultado.
O intuito seria manter este programa de avaliação, depois, cada seis meses até perfazer, no mínimo, dois anos pós procedimento.
Como outro fator de exclusão tivemos aqueles doentes submetidos a procedimento de revascularização endovascular complementar, previamente ou posteriormente à cirurgia de revascularização e doentes que tivessem sido submetidos a mais do que um procedimento no mesmo tempo cirúrgico.
Resultados
Foram analisados um total de 174 doentes, 158 (91%) do sexo masculino, com uma idade média de 67 ± 9 anos.
De acordo com a classificação de Leriche-Fontaine, 42 (24%) doentes apresentavam isquemia IIB, 52 (30%) isquemia grau III e 80 (46%) isquemia grau IV.
Destes, 67 (39%) foram submetidos a revascularização do sector aorto-ilíaco com realização de bypass aorto bifemoral, 44 (25%) foram submetidos a bypass femoro - poplíteo supra-genicular e 63 (36%) foram submetidos a bypass femoro - poplíteo infra-genicular. A caracterização dos doentes encontra-se resumida na tabela 1 e 2.
Ao longo dos doze meses, 24 (14%) doentes foram submetidos a amputação major de membro inferior apesar de revascularizados e 16 (9%) morreram.
Relativamente à taxa de mortalidade e amputação a doze meses ajustada para os valores de hemoglobina, estas foram de: 1,5% (n=1) e 3% (n=2) respetivamente para os doentes submetidos a bypass aorto bi-femoral sendo que, quer a morte ocorrida quer as amputações registaram-se em doentes com valores de hemoglobina abaixo de 10,5g/dL; 6% (n= 7) e 18% (n= 8) respetivamente nos doentes submetidos a bypass femoro-poplíteo supra-articular com 75% (n=6) de amputações e 43% (n=3) das mortes a ocorrerem em doentes com hemoglobina abaixo de 10,5g/dL, 25% das amputações (n=2) e 57% (n=4) das mortes a ocorrerem em doentes com hemoglobina entre 10,5g/dL e 12/13g/dL* e 13% (n=8) e 22% (n=14) respetivamente nos doentes submetidos a bypass femoro-poplíteo infra articular, dos quais 29% (n=4) das amputações e 50% (n=4) das mortes em doentes com hemoglobina abaixo de 10,5g/dL, e 29% (n=4) das amputações e 38% (n=3) das mortes em doentes com hemoglobina entre 10,5g/dL e 12/13g/dL*.
*Consoante o doente fosse do sexo masculino ou feminino.
No que concerne à taxa de mortalidade e amputação a doze meses ajustada para os doentes com insuficiência renal versus aqueles com função renal dentro de parâmetros normais, estas foram de 17% (n=10) versus 5% (n=6) e de 27% (n= 16) versus 7% (n=8) respetivamente.
Aqueles doentes com hipoalbuminemia e hipoproteinemia apresentaram uma taxa de mortalidade e de amputação de 19% (n=11) e 29 % (n= 17), respetivamente, versus 4% (n=5) e 6% (n=7) naqueles doentes com valores normais.
Relativamente aos doentes com valores elevados de proteína c-reativa, as taxas de mortalidade e de amputação foram de 31% (n=15) versus 17% (n=1) e 7% (n=18) versus 6% (n=6), respetivamente.
Os doentes com perda tecidular (isquemia Grau IV) apresentaram uma taxa de mortalidade e de amputação de 14% (n=11) e 25% (n=20) versus 5% (n=5) e 4% (n=4) para o grupo de doentes com Isquemia grau IIB ou III.
A análise regressiva de Cox identificou a idade como um fator adverso em doentes com DAP. De forma a ter em conta eventuais fatores confundidores, esta foi ajustada para sexo e idade e analisadas as restantes variáveis de forma independente.
Dos parâmetros analíticos analisados, que se encontram explanados na tabela 3, salienta-se que:
Anemia apresentou OR 1,2; IC 95% 1.05-2.8, P = 0.004 para perda de membro e OR 1,45; IC 95% 1.23-1,72, P = 0.004 para mortalidade;
Alteração da função renal apresentou OR 5,82; IC 95% 2,97-11,38, P = 0.004 para perda de membro e OR 3,4; IC 95% 1.4-8.45, P = 0.006 para mortalidade;
Hipoalbuminemia e hipoproteinemia apresentaram OR 2.1; IC 95% 1.6-12.2 p=0.003 para perda de membro e OR 4,5; IC 95% 2,6-6.3, P = 0.004 para mortalidade;
Elevação de proteína c-reativa apresentou OR 1.4; IC 95% 1.1-2.0 p=0.003 para perda de membro e OR 1.5; IC 95% 1,3-3.2, P = 0.002 para mortalidade;
Isquemia grau IV segundo classificação de Leriche Fontaine apresentou OR 5.7; IC 95% 3.2-6.3, P = 0.002 para perda de membro e OR 6.4; IC 95% 2,8-8.3, P = 0.004 para mortalidade.
Em termos de análise de permeabilidade de bypass, a análise de regressão multivariada não encontrou qualquer relação entre os parâmetros analíticos pré-operatórios analisados e falência de bypass a seis e doze meses.
Contudo, quando analisados os resultados a seis meses e doze meses, para bypass com anastomose distal a nível supra-genicular versus infra-genicular, foi identificada uma diferença estatisticamente significativa p = 0.001, OR 2.15 IC 95% 2.1-2.8, para valores de referência obtidos de 86% vs 75%, e de 82% vs 60% respectivamente.
Quando comparados os doentes do sexo masculino com os doentes do sexo feminino a permeabilidade a 6 meses e doze meses foi de 90% vs 74% e 88% vs 62% respectivamente, obtendo-se uma vez mais uma diferença estatisticamente significativa: p = 0.05, OR 1.29 IC 95% 1.1-5.6.
Discussão
A literatura científica tem procurado elaborar scores preditivos de risco para esta população específica(13) e pensa-se que, este estudo procurou identificar alguns dos parâmetros mais significativos.
A anemia foi uma situação clínica frequentemente encontrada na nossa população (19%) sendo que, uma considerável percentagem de doentes com outcomes desfavoráveis apresentava anemia severa (11,5%). Estes resultados mostraram-se consistentes com estudos prévios que descrevem a sua associação com fases mais avançadas de DAP, atingimento da circulação distal e resultados desfavoráveis pós revascularização(14,15), encontrando-se descrito um risco relativo aumentado de 2.98 para amputação e 3.58 de mortalidade(16). Apesar de discutível o mecanismo fisiopatológico por detrás desta associação, acredita-se que um mau fornecimento de oxigénio ao leito arterial distal e consequente hipoxia tecidular seja a nível do membro ou do tecido cardíaco condicione isquemia tecidular.
Também a doença renal crónica foi uma patologia bastante prevalente com 15% de incidência global na nossa população. Os estudos publicados tendem a descrever estes doentes como mais idosos e com DAP mais severa(17-19) com taxas de complicações associadas ao membro, na ordem das 10 a 12 vezes mais quando perante estadios avançados da doença renal(20). O mecanismo envolvido na aceleração do processo aterosclerótico permanece desconhecido, mas acredita-se estar associado a uma maior resposta inflamatória, elevada lipoproteína (a) e homocisteína, factores de risco conhecidos para DAP.
A nossa população estudada apresentava uma incidência de 16% de desnutrição. Um estado nutricional depauperado está associado ao desenvolvimento de aterosclerose, é um risco cardio-vasculares independente e fator mau prognóstico em doentes com isquemia de membro(21-24). As explicações descritas baseiam-se na associação com maiores comorbilidades, redução da massa muscular e capacidade de mobilização para realização de programa de marcha, deficiência na capacidade de fornecimento de energia proteica, proteólise e lipólise aumentada com consequente cetonemia e deficiência de antioxidantes.
Em termos de marcadores analíticos associados à DAP, a proteína c-reativa tem sido dos mais estudados. Uma meta análise recente publicada por T.P. Singh et al(25) descreve uma associação existente não só com a PCR mas também com outros parâmetros inflamatórios mas também levanta a dúvida sobre se a correção deste parâmetro realmente se traduzirá em melhores resultados, mas poderá identificar um grupo de doentes carentes de vigilância mais apertada e onde as estatinas poderão ter maior preponderância.
Parece-nos, contudo, que a preponderância que cada um dos fatores analisados irá ter nos resultados estará dependente não só da sua severidade isolada, mas também da possível concomitância de outros fatores.
Todas estas condicionantes dificultam a elaboração de um modelo preditivo, funcionando como eventuais vieses, requerendo por isso estudos adicionais de maior validade científica.
Relativamente à análise dos resultados obtidos em termos de permeabilidade de Bypass, Natalia Egorova et al(26) descreve no seu estudo demográfico uma maior probabilidade de as doentes do sexo feminino se apresentarem num estadio mais avançado de doença e com uma maior taxa de mortalidade, principalmente entre os 40-80 anos, especialmente após cirurgia direta de revascularização. O mesmo estudo atribui esses resultados a questões hormonais, sendo a DAP menos frequente entre as mulheres no período pré e peri-menopausa na consequência de fatores hormonais e metabólicos que funcionam como “ateroprotectores”, descrevendo um aumento significativo da prevalência de DAP no período pós-menopausa, passando de 3%-4.4% para 15.5% a 29 %. Não se encontra, contudo, ainda descrita na literatura uma justificação para uma inferior permeabilidade de bypass neste género.
Os doentes com necessidade de construção de anastomose distal a nível infra genicular, muitas vezes mesmo com necessidade de recorrer a vasos crurais, corresponderão, normalmente a doentes com DAP num estadio de doença mais avançado o que, naturalmente se associa a uma inferior permeabilidade de bypass.
O estudo Basil(27) identificou idade avançada, perda tecidular presente, baixo índice tornozelo-braço e reduzido número de eixos distais mensuráveis como preditores de falência de bypass. A própria Sociedade Europeia de Angiologia e Cirurgia Vascular atribuiu com grande enfase à importância da utilização de uma classificação abrangente em termos de classificação das lesões em doentes com DAP, a salientar a classificação WIFi onde a perda tecidular tem importância prognóstica significativa(28).
Em termos de limitações do estudo, assumimos que o tamanho amostral bem como a taxa de eventos (end points) registados são relativamente reduzidos, o que limita a validade dos resultados obtidos. Não foi assim possível, excluir inequivocamente a existência de factores preditores confundidores pelo que, não nos é permitido elaborar um score preditivo ou taxativamente questionar scores previamente publicados e analisados para elaboração deste trabalho.
Contudo, parece-nos viável dizer que os parâmetros aqui analisados se encontram relacionados com prognóstico desfavorável nos doentes com DAP, cuja validação necessita de maior suporte científico.