Introdução
As complicações vasculares são uma causa importante de falência do transplante renal. A estenose da artéria renal representa uma das complicações vasculares mais comuns geralmente associada a anomalia da anastomose, hiperplasia miointimal ou progressão de aterosclerose(1). Por sua vez, o kinking da artéria renal é uma complicação rara, com um comportamento diferente, que se manifesta habitualmente como disfunção precoce do enxerto(2,3).Ocorre devido ao posicionamento inadequado do rim, à limitação do espaço para o enxerto na fossa ilíaca ou ao deslocamento do rim após a cirurgia do transplante, sendo mais frequente com o rim direito do dador, uma vez que a veia renal é mais curta do que a artéria o que favorece o kinking arterial(4,5).Devido à raridade dessa complicação pós-operatória, a verdadeira incidência é desconhecida. Num estudo retrospetivo unicêntrico foram identificados sete casos de kinking da artéria renal pós-transplante, o que representou 0,3% das complicações pós-operatórias(4).
Descrevemos um caso de kinking da artéria renal pós-transplante com uma apresentação clínica invulgar corrigido cirurgicamente com sucesso.
Descrição do caso
Um homem de 52 anos com doença renal terminal secundária à nefropatia de IgA, que se manifestou como hipertensão arterial de difícil controlo aos 25 anos tendo sido previamente submetido a transplante renal de dador cadavérico. O enxerto foi implantado na fossa ilíaca direita e complicado no pós-operatório com trombose de artéria renal e trombose venosa profunda iliofemoral. O doente foi submetido a transplantectomia e trombectomia venosa. Foi realizada uma investigação extensa para a identificação de um fator protrombótico que foi inconclusiva.
O doente foi submetido a um novo transplante renal com um rim esquerdo de doador cadavérico implantado na fossa ilíaca esquerda. O enxerto apresentava uma única artéria renal que se dividia em dois ramos e uma única veia renal. O procedimento não apresentou intercorrências e o rim apresentou adequada perfusão após a implantação. Tendo em conta o elevado risco de complicações trombóticas em relação com transplante prévio, o doente realizou hipocoagulação durante o procedimento, previamente à clampagem vascular, que manteve no pós-operatório com perfusão de heparina não fracionada. À data de alta, o doente iniciou hipocoagulação com acenocumarol para um objetivo de rácio internacional normalizado (INR) de 2-2,5 e foi instruído a manter o tratamento durante pelo menos 6 meses.
No pós-operatório, o doente evoluiu favoravelmente com creatinina de 2,17mg/dL no momento da alta, que caiu para 1,70mg/dL ao final de uma semana e 1,32 mg/dL após um mês. Porém, algumas semanas após a cirurgia do transplante, o doente começou a queixar-se de redução do volume urinário, conseguindo obter débitos urinários adequados apenas permanecendo longos períodos em decúbito na “posição fetal” ou em posição de “cócaras”. Apesar disso, não se observou um agravamento significativo da função renal.
Foi realizado estudo por ecografia vascular do enxerto que mostrou uma aceleração do fluxo na artéria renal proximal com um segmento de aumento de mais de 3 vezes na velocidade sistólica máxima (PSV) a indicar uma estenose hemodinamicamente significativa com uma forma de onda tardus parvus na artéria distal. Para uma melhor caracterização, foi realizada uma angiografia renal que confirmou o diagnóstico de kinking da artéria renal a cerca de 1 cm acima da anastomose (fig. 1).
Apesar disso, o doente manteve evolução clínica favorável sem agravamento significativo da função renal, tendo sido decidida uma estratégia inicial conservadora sem intervenção.
No entanto, após três meses o doente iniciou uma redução gradual da diurese e agravamento da função renal com necessidade de permanecer em “posição de cócaras” 5 horas por dia para manter o débito urinário adequado (fig. 2). Essa situação levou a uma redução acentuada na qualidade de vida do doente. Foi proposto tratamento cirúrgico e explicado ao doente a possibilidade de perda do enxerto. O doente optou pela cirurgia corretiva e foi submetido a uma pontagem entre a artéria ilíaca externa esquerda e a artéria renal do enxerto com veia grande safena autóloga (fig. 3). No pós-operatório, o doente recuperou totalmente a diurese e a função renal. Aos dois anos de seguimento permanece com enxerto funcionante sem agravamento da função renal.
Discussão
As complicações vasculares correspondem a apenas 5 a 10% de todas as complicações pós-transplante renal, porém são uma causa frequente de perda do enxerto(6).
O kinking da artéria renal no transplante é uma complicação rara que pode comprometer a viabilidade do enxerto no pós-operatório imediato. Habitualmente manifesta-se com deterioração da função renal e hipertensão de difícil controlo no período pós-operatório inicial(7). A suspeita diagnóstica geralmente é levantada através do ecodoppler vascular com os achados de aceleração do fluxo sanguíneo (elevação da PSV) na zona de kinking e a presença de uma forma de onda tipo parvus e tardus nas artérias interlobulares(8). A angiografia de subtração, angiografia por tomografia computadorizada (TC) ou por ressonância magnética (ARM) podem ser úteis para confirmar o diagnóstico, permitindo que o kinking seja diferenciado de uma estenose de outra etiologia(9).
O kinking da artéria renal pode comprometer a viabilidade do enxerto, portanto, uma estratégia terapêutica atempada é fundamental para evitar a perda do rim, no entanto, a abordagem adequada desta complicação não está estabelecida. Vários tratamentos estão descritos na literatura incluindo uma abordagem conservadora(4), intervenção endovascular(10) ou correção cirúrgica(11). No tratamento da estenose da artéria renal, a intervenção endovascular com angioplastia percutânea e colocação de stent é a primeira escolha na maioria dos casos, apresentando alta taxa de sucesso e patência a longo prazo(12). Porém, o kinking da artéria renal habitualmente é resistente ao tratamento endovascular uma vez que a artéria volta a adquirir a conformação inicial após a angioplastia transluminal ou adquire a configuração de um novo kinking distalmente ao local de implantação de um stent(13,14). Assim, a correção cirúrgica com nefropexia ou reanastomose é habitualmente necessária(3,11). Em doentes com redundância da artéria renal, o encurtamento da artéria e posterior reanastomose pode ser realizado(13).
O nosso doente apresentou uma manifestação clínica singular de um kinking da artéria renal pós-transplante. Provavelmente, quando o doente se colocava na “posição de cócoras”, a mobilização do rim levava à retilinização da artéria renal, resolvendo temporariamente o défice de perfusão renal. Optamos pela realização de uma pontagem entre a artéria ilíaca externa e a artéria renal do enxerto. Com esta técnica cirúrgica, foi possível reimplantar a anastomose e retilinizar a artéria do rim transplantado corrigindo o kinking. Esta revelou-se uma boa opção de tratamento permitindo preservar a viabilidade do rim pelo que o doente mantém o enxerto funcionante ao final de dois anos.
Conclusão
Apresentamos um caso de kinking da artéria renal pós-transplante com quadro clínico raro e singular. O kinking da artéria renal é uma complicação vascular rara após a cirurgia de transplante renal que pode, no entanto, comprometer a viabilidade do enxerto renal. Uma estratégia terapêutica oportuna é fundamental para evitar a perda do enxerto.