Introdução
As perturbações do humor e da ansiedade são comuns. Globalmente, as prevalências de depressão e de ansiedade na população geral são de 4,4% e 3,6%, respetivamente1.
Os seus sintomas podem ser crónicos ou recorrentes, incapacitando o doente nas suas atividades diárias. Estas perturbações podem ser facilmente diagnosticadas e tratadas em contexto de cuidados de saúde primários. No entanto, apenas ¼ dos doentes com depressão procura auxílio médico ou recebe tratamento. A depressão é 2 a 3 vezes mais frequente na presença doença física crónica2.
A doença venosa crónica (DVC) também é muito prevalente nas sociedades ocidentais. Enquanto os estadios mais precoces (telangiectasias e varizes reticulares) afetam até 80% da população, as varizes tronculares estão presentes em 20-64% dos adultos, e a lipodermatosclerose e a úlcera venosa em 1-2% da população3. A elevada prevalência da DVC acarreta um impacto considerável na qualidade de vida da população, de forma proporcional à sua gravidade, que tende a ser desvalorizada pelos clínicos2,4.
Tal como as perturbações do humor ou da ansiedade, a DVC é mais frequente no sexo feminino1. A importância que as sociedades ocidentais conferem à estética dos membros inferiores, particularmente no sexo feminino, pode associar importantes componentes social e psicológico à doença anatómica4. As consequências psicopatológicas da DVC podem ser por isso significativas, particularmente nos estadios mais avançados.
A avaliação de qualidade de vida específica da DVC através do questionário CIVIQ20 já inclui 9 questões que abordam sintomas relacionados com a depressão e a ansiedade. Além disso, os doentes com varizes frequentemente apresentam alterações psicológicas em questionários dedicados5. Por outro lado, foi demonstrado que o tratamento DVC, além de melhorar a qualidade de vida, alivia os sintomas de depressão6. Assim, as perturbações da ansiedade e do humor já estão frequentemente instituídas no doente que procura o cirurgião vascular por DVC, com causalidade indefinida.
O objetivo deste estudo foi identificar e caraterizar a psicopatologia na DVC e a sua relação com a qualidade de vida.
Métodos
Foi realizado um estudo transversal após aprovação pela comissão de ética local. Este estudo incluiu todos os doentes observados em primeira consulta por dois cirurgiões vasculares de um hospital universitário terciário, com o diagnóstico de DVC, de Dezembro de 2019 a Janeiro de 2021.
Depois da realização da consulta convencional, com anamnese, observação clínica e intervenção terapêutica proposta ao doente com DVC, foram aplicados 5 questionários validados na língua portuguesa, após consentimento informado. Três destes questionários pontuavam a qualidade de vida (QoL) percecionada pelo doente: EQ-5D (Euro quality of life - 5 Dimensions), EQVAS (Euro QoL visual analogue scale) e CIVIQ20 (chronic venous insufficiency questionnaire). Um dos questionários pontuava sintomas sugestivos de perturbações da ansiedade (BAI - Beck’s Anxiety Inventory- Tabela 1); e um outro pontuava sintomas sugestivos de perturbações do humor (BDI - Beck's Depression Inventory- Tabela 2). A pontuação (score) resultante dos questionários BAI e BDI permitiu, após estratificação de acordo com a Tabela 3, determinar o nível ou gravidade da perturbação, se presente.
Os endpoints primários foram os scores sugestivos de perturbações da ansiedade e de humor, avaliadas nos questionários BAI e BDI, respetivamente. O endpoint secundário foi a qualidade de vida percecionada, avaliada nos questionários EQ-5D, EQVAS e CIVIQ20. Os achados foram correlacionados com a classe clínica (C) da classificação CEAP (clinical, etiological, anatomical and pathophysiological) e entre si, conforme considerado relevante.
A análise estatística foi realizada utilizando o software IBM SPSS Statistics 24®. As variáveis categóricas foram expressas em frequências e analisadas usando o teste do Qui-quadrado ou o teste exato de Fisher. As variáveis contínuas com distribuição normal foram expressas em média ± desvio padrão e a sua comparação foi realizada através do teste T de Student. As variáveis contínuas com distribuição não normal foram expressas em mediana ± intervalo interquartil e comparadas com o teste de Mann-Whitney. Testes de correlação foram aplicados para relacionar duas variáveis contínuas. Considerou-se estatisticamente significativo um valor p<0,05.
Resultados
Foram incluídos 59 doentes. A idade mediana foi de 58±20 anos. 73% eram do sexo feminino (N=43) e 27% do sexo masculino (N=16). O IMC (Índice de Massa Corporal) médio foi de 28,8±0,7.
20% realizavam previamente medicação psiquiátrica (N=12), a maioria benzodiazepinas ou antidepressivos. 31% estavam sob venotrópicos orais (N=18). 31% usavam regularmente meias de compressão elástica (N=18). 24% já tinham realizado previamente procedimento(s) cirúrgico(s) de correção de DVC de membros inferiores (N=14). 15% tinham realizado previamente procedimento(s) de escleroterapia (N=9).
74% tinham história familiar conhecida de DVC (N=39). 71% tinham DVC bilateral (N=42) e 29% unilateral (N=17). 96% apresentavam insuficiência do sistema venoso superficial documentada em Eco-Doppler venoso dos membros inferiores (N=53). 11% apresentavam insuficiência do sistema venoso profundo documentada em Eco-Doppler venoso dos membros inferiores (N=6). A distribuição na classificação clínica CEAP foi a seguinte: C1 7% (N=4); C2 64% (N=38); C3 10% (N=6); C4 15% (N=9); C5 2% (N=1); C6 2% (N=1).
Os questionários incluídos na análise estatística que se segue encontram-se apresentados na Tabela 4. O score CIVIQ20 mediano foi de 48±21. A pontuação mediana na escala EQVAS foi de 70±40.
O score mediano BAI foi de 16±20. 40% dos doentes relataram níveis moderados ou potencialmente preocupantes de ansiedade (N=22), distribuídos pelos seguintes níveis de ansiedade: 33% apresentavam níveis moderados de ansiedade (N=18) e 7% apresentavam níveis potencialmente preocupantes de ansiedade (N=4).
O score mediano BDI foi de 7±11. 31% dos doentes relataram níveis pelo menos ligeiros de depressão (N=15), distribuídos pelos seguintes graus de depressão: 12% apresentavam perturbação ligeira do humor (N=6), 8% apresentava depressão clínica borderline (N=4), 6% apresentava depressão moderada (N=3) e 4% depressão grave (N=2).
Verificou-se uma correlação positiva fraca estatisticamente significativa entre a classe clínica CEAP e o nível de ansiedade no questionário BAI (rs=0,267; p=0,049). Verificou-se uma correlação positiva fraca estatisticamente significativa entre a classe clínica CEAP e o score BDI (rs=0,267; p=0,039; Gráfico 1). Não se verificou correlação estatisticamente significativa entre a classe clínica CEAP e a pontuação na EQVAS (p=0,105).
Doentes com score CIVIQ20 superior selecionaram pontuações inferiores na EQVAS (rs=-0,470; p<0,001). Verificou-se uma correlação positiva moderada estatisticamente significativa entre o score CIVIQ20 e o score BAI (rs=0,476; p<0,001), que se manteve após estratificação do score por nível de ansiedade (rs=0,445; p=0,001), e entre o score CIVIQ20 e o score BDI (rs=0,429; p=0,003), mantida após estratificação por gravidade da perturbação do humor (rs=0,366; p=0,011).
Doentes com pior saúde percecionada na EQVAS apresentaram níveis superiores de ansiedade (rs=-0,363; p=0,009), e scores mais elevados no questionário BDI (rs=-0,510; p<0,001), bem como depressões mais graves (rs=-0,508; p<0,001).
Entre as dimensões do EQ-5D: as dificuldades sentidas nos cuidados pessoais apresentaram correlação positiva com a classe clínica CEAP (p=0,006); as dificuldades sentidas na mobilidade e nas atividades habituais apresentaram correlação positiva com o score CIVIQ20 (p<0,001), tal como a intensidade da dor ou mal-estar (p=0,011). A intensidade da dor/mal-estar e a gravidade da ansiedade/depressão no questionário EQ-5D apresentaram correlação positiva estatisticamente significativa com o score no questionário BDI. De forma semelhante, todas as dimensões do EQ-5D apresentaram correlação positiva estatisticamente significativa com a gravidade da perturbação depressiva. Pessoas com maiores dificuldades na mobilidade e nas atividades habituais e com maior ansiedade/depressão percecionadas no questionário EQ-5D selecionaram scores superiores no questionário BAI, relacionados com índices superiores de ansiedade.
Verificou-se uma correlação positiva moderada estatisticamente significativa entre o score BAI e o score BDI (rs=0,428; p=0,002; Gráfico 2) e entre os níveis de ansiedade no questionário BAI e a gravidade da perturbação do humor no questionário BDI (rs=0,581; p<0,001).
Discussão
Este estudo demonstrou uma elevada prevalência de perturbações do humor e da ansiedade na população de doentes com DVC referenciada a consulta externa de cirurgica vascular, utilizando questionários validados dirigidos à psicopatologia. Além disso, demonstrou uma estreita associação entre a psicopatologia e a patologia orgânica. Por um lado, a presença e gravidade da psicopatologia pode alterar a perceção da DVC. Por outro, as doenças físicas crónicas precipitam e exacerbam os sintomas da depressão2.
Este estudo identificou sintomas significativos de depressão em 31% dos doentes. Outros detetaram perturbações depressivas em 29-34% dos doentes com varizes dos membros inferiores2,5. Esta prevalência da depressão e ansiedade corresponde à dos doentes com doença física crónica e é duas vezes superior à da população geral2,3.
Verificou-se neste estudo que os doentes com estadios mais graves da DVC reportam mais sintomas de ansiedade e depressão. Outro estudo refere que a incidência de perturbações do humor e da ansiedade é de 40-60% se existe úlcera ativa, e de 26% nos doentes sem úlcera venosa ativa ou cicatrizada2.
A associação do componente psicopatológico à DVC já foi previamente estudada. F. Amsler et al. demostraram que este é predominante em mulheres jovens, magras, com educação e status económico superior. Estas doentes sentem que a sua saúde global está a ser desvalorizada e que a sua qualidade de vida psicológica está reduzida. Apresentam ansiedade e centram-na nos membros inferiores, sobrevalorizando o sintoma inespecífico de sensação de peso nas pernas5.
O impacto da DVC na qualidade de vida e os seus instrumentos de avaliação têm sido extensamente estudados e têm um lugar bem estabelecido na prática clínica e nos estudos que se dedicam ao tratamento da DVC2. Enquanto a classificação CEAP é uma ferramenta anatómica descritiva e discriminativa ótima, o CIVIQ20 acrescenta-lhe variáveis psicológicas e sociais e relaciona-se bem com outros testes de qualidade de vida. Sabe-se que o CIVIQ20 é confiável e bom discriminador para a gravidade dos sintomas e classes CEAP. Como foi desenvolvido tendo em conta as queixas dos doentes, reflete a importância que os mesmos atribuem a cada queixa e utiliza palavras que estes utilizariam para as exprimir4. Assim, o papel preponderante que os sintomas de ansiedade e de depressão apresenta na qualidade de vida específica dos doentes com doença venosa é demonstrado pela correlação positiva que o score CIVIQ20 e os scores BAI e BDI evidenciaram neste estudo, bem como pela correlação negativa com a EQVAS demonstrada.
Outro exemplo da relação estreita entre a doença venosa orgânica e a psicopatologia são os doentes com sintomas “venosos” sem achados objetivos. Estes doentes apresentam um síndrome depressivo e ansioso associado a hipocondria, em que os sintomas pouco sensíveis e inespecíficos da insuficiência venosa integram sintomas de uma doença funcional5.
Este estudo apresenta algumas limitações. Inclui um número relativamente reduzido de doentes com uma patologia altamente prevalente na população, o que não permitiu incluir um número considerável de doentes dos estadios CEAP mais graves; isto deveu-se à exclusão de doentes sem capacidade cognitiva para responder adequadamente aos questionários e ao período de realização, coincidente com a redução da atividade eletiva em consulta não urgente, condicionada pela pandemia COVID-19.
Não avaliou a influência de fatores sociais ou económicos na qualidade de vida e nas perturbações do humor ou da ansiedade. Não avaliou também
o impacto da intervenção terapêutica proposta nos scores de ansiedade, depressão e qualidade de vida.
Em conclusão, as perturbações da ansiedade e do humor coexistem frequentemente e são prevalentes nos doentes com DVC sintomática. A relação estreita entre sinais clínicos graves de DVC, qualidade de vida inferior e presença de psicopatologia foi demonstrada neste trabalho. Assim, pode ser justificada uma abordagem psicológica adjuvante nestes doentes. Por conseguinte, a popular medicina holística tem também o seu lugar nesta área.