Introdução
Os doentes submetidos a uma cirurgia estão expostos a diversos riscos, quer inerentes ao procedimento, quer associados às comorbilidades do próprio doente. Nas cirurgias não cardíacas, as complicações cardíacas são frequentes a curto e longo prazo e podem assumir várias formas. O enfarte agudo do miocárdio (EAM) é uma das mais temidas e está associado a mau prognóstico, sendo a principal causa de morte pós-operatória aos 30 dias1,2. No entanto, até 70% dos EAM pós-operatórios são clinicamente silenciosos devido à anestesia, sedação ou analgesia, associando-se ao aumento da morbi-mortalidade aos 30 dias1,3. Pode ainda haver lesão miocárdica, denominada lesão cardíaca após cirurgia não cardíaca (MINS), que tem ganho relevância nos últimos anos como fator de risco para mortalidade e morbilidade cardiovascular no período pós-operatório. Esta é definida como elevação das troponinas cardíacas acima do limite superior do percentil 99 do valor de referência no período pós-operatório e pode não ser diagnosticada em até 90% dos casos1,3. Apesar de durante muito tempo ter sido menorizado, o surgimento recente das troponinas de alta sensibilidade (hsTnI) tem vindo a ajudar a compreender melhor a extensão deste problema2,4. Estudos recentes mostram uma incidência de MINS de 8% após cirurgia não cardíaca e têm sido identificada como preditor independente de mortalidade a 30 dias3. O aumento da mortalidade é significativo até pelo menos 1 ano após a cirurgia5,6. Por outro lado, a MINS foi também associado a um risco 5 vezes maior de ocorrência de eventos cardiovasculares major (MACE) após cirurgia não cardíaca7. Os doentes com MINS são habitualmente mais idosos, mais frequentemente do sexo masculino e têm maior prevalência de fatores cardiovasculares ou doença coronária conhecida6. Tendo por base a evidência já disponível da MINS nas várias especialidades cirúrgicas, os autores propõem-se a fazer uma revisão da literatura disponível da MINS no contexto da Cirurgia Vascular.
Métodos
Foi realizada uma pesquisa na Medline com o objetivo de identificar artigos relacionados com a patofisiologia da MINS e o seu significado no contexto específico de Cirurgia Vascular. As palavras chave utilizadas incluíram “peripheral artery disease”, myocardial injury after non-cardiac surgery”, “carotid endarterectomy” e “vascular surgery”. Artigos considerados relevantes para o tema em questão foram também analisados para esta revisão não-sistemática e incluídos por cruzamento de referências. Os endpoints primários foram a descrição da associação da MINS com as características demográficas e prognóstico a curto e longo prazo.
Discussão
Não existem muitos estudos sobre a ocorrência de MINS após cirurgia vascular e o seu significado no prognóstico dos doentes, sendo a maior parte dos estudos realizados relacionados com o pós-operatório de endarterectomias carotídeas (CEA). Numa população de doentes submetidos a uma cirurgia vascular, a MINS foi cerca de 10 vezes mais comum que a trombose venosa profunda e esteve associada a um aumento da mortalidade ao final de 1 ano8. Num outro estudo que incluiu 502 doentes submetidos a cirurgia vascular, a incidência de MINS foi de 19,1%. A mortalidade aos 30 dias foi de 12.5% (95% CI 7.3%-20.6%) comparado com o grupo sem MINS (1.5% (95% CI 0.7%-3.2%)) (P < 0.001), tendo a MINS estado associada de forma independente ao aumento da mortalidade a 30 dias (odds ratio, 9.48; 95% CI, 3.46-25.96). Os autores concluíram ainda que a maioria dos doentes foram assintomáticos e que a MINS não teria sido detetada na ausência de monitorização por rotina das troponinas cardíacas9. Recentemente, numa população com doença aorto-ilíaca Trans-Atlantic Inter-Society Consensus (TASC) II D, a ocorrência de MINS esteve associada de forma significativa a EAM, acidente vascular cerebral, MACE, eventos adversos major de membro (MALE) e mortalidade por todas as causas a 12 meses. Neste estudo verificou-se também que a presença prévia de insuficiência cardíaca aumenta o risco de MINS10.
Como referido anteriormente, a maior parte dos estudos do MINS na Cirurgia Vascular é na área da CEA. Um estudo de 2015 estratificou o risco cardíaco de 324 doentes submetidos a CEA segundo o Vascular Study Group of New England Cardiac Risk Index e verificou que, ao contrário dos doentes de alto risco, os doentes de baixo e médio risco tinham maiores aumentos dos níveis de troponinas pós-operatório. Concluíram ainda que havia uma elevada incidência de MINS após CEA11. Um outro estudo de 2016 verificou que numa população de 225 doentes submetidos a CEA, a elevação dos níveis de troponina no período pós-operatório esteve associado ao aumento de eventos adversos cardiovasculares12. Um outro estudo mais recente estudou o efeito prognóstico da MINS em 156 doentes submetidos a CEA com anestesia regional. Nesta população a incidência de MINS foi de 15,3% e os doentes com insuficiência cardíaca prévia apresentaram o maior risco. Por sua vez, o diagnóstico de MINS esteve associado a um maior risco de EAM e MACE a longo prazo13.
O mecanismo responsável pela ocorrência de MINS permanece desconhecido, o que também dificulta a implementação de medidas para a prevenir ou tratar. Em muitos casos, é postulado um mecanismo fisiopatológico similar ao enfarte tipo 22,6. Outras hipóteses que também têm sido levantadas são a existência de placas ateroscleróticas instáveis (EAM tipo 1), cardiomiopatia induzida pelo stress ou estiramento dos miócitos cardíacos por aumento do volume intravascular6. Também poderá haver contribuição da inflamação ou a ocorrência de tromboembolismo pulmonar6. A presença de hipertensão, doença coronária, história de EAM, IC e doença renal parecem ser fatores de risco para MINS6. Nos doentes submetidos a cirurgias vasculares a idade e a fibrilação auricular também foram associados a maior risco de MINS9. Num estudo recente verificou-se que a níveis pré-operatórios elevados de marcadores séricos de hipercoagulabilidade estiveram associados a um maior risco de MINS em doentes submetidos a uma cirurgia vascular14. Algumas recomendações referem o BNP e peptídeos derivados como fortes estratificadores de risco cardiovascular pós-operatório. Num outro estudo, níveis pré-operatórios elevados do fragmento N-terminal do peptídeo natriurético tipo B (NT-pro-BNP) estiveram associado a um maior risco de MINS, sendo o risco maior quanto maior o valor de NT-pro-BNP15. Foi sugerida a sua utilização como critério de seleção para vigilância de MINS nos pós-operatório16.
Há uma relação contínua entre o níveis de troponina e o risco pós-operatório e a longo prazo, sendo que o aumento das troponinas implicará risco acrescido dentro dos que SE enquadram Na definição de MINS1. O tipo de biomarcador cardíaco parece ter influência na incidência de MINS. As hsTnI estão associadas a uma maior incidência de MINS6.
As mais recentes guidelines da Sociedade Cardiovascular Canadiana para a gestão do risco cardíaco peri-operatório recomendam o doseamento diário de troponinas durante 48 a 72h após cirurgia não cardíaca em doentes com risco basal superior a 5% para morte cardiovascular ou EAM não fatal a 30 dias17. Por outras palavras, o doseamento por rotina aplica-se a doentes com mais de 65 anos, com idade entre os 45 e os 64 anos e uma doença cardiovascular significativa, um score do revised cardiac risk index igual ou superior a 1 e/ou a níveis pré-operatórios elevados de BNP9,17. Foi neste grupo de doentes de alto risco que a relação custo-benefício foi máxima para a monitorização por rotina dos níveis de troponinas pós-operatórios tendo em vista o diagnóstico de MINS18. Na prática o que isto poderá significar é que a grande maioria dos doentes da Cirurgia Vascular terá indicação para a monitorização pós-operatória dos níveis de troponina e que esta seria uma medida com boa-relação custo-benefício relativamente ao MINS.
Várias estratégias têm sido estudadas para a prevenção e tratamento do MINS noutras especialidades cirúrgicas e a grande maioria dos resultados têm sido conflituosos2,6. A utilização de estatinas ou aspirina como estratégia de prevenção têm tido resultados mistos, enquanto a utilização de inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECAs) e beta bloqueadores tem sido associada um ligeiro aumento do risco de MINS, não sendo possível excluir um viés de indicação6. Além disso, o tipo de anestesia não parece ter relação com a ocorrência de MINS apesar de a hipotensão (pressão arterial média <65mmHg) e a taquicardia (frequência cardíaca >110 bpm) intra-operatórias estarem associadas a um maior risco de MINS6. Tem sido no tratamento pós-operatório que têm surgido os resultados mais promissores. O estudo Dabigatran in Patients with Myocardial Injury after Non-Cardiac Surgery (MANAGE), um estudo internacional randomizado controlado que envolveu 1754 doentes, chegou à conclusão que 110 miligramas de dabigatrano 2 vezes ao dia reduz o risco de complicações vasculares major sem aumento significativo de hemorragias major quando comparado com o grupo placebo19. Park et al verificaram também que numa população de 5267 doentes demonstrou que o tratamento com estatinas após o diagnóstico de MINS esteve associado a uma redução da mortalidade20.
Conclusão
A MINS na prática clínica da cirurgia vascular permanece um tópico ainda por explorar visto que a evidência associada a este fenómeno ainda permanece escassa. Apesar disso, os estudos disponíveis têm associado o diagnóstico de MINS a um agravamento do prognóstico e a aumento do risco de eventos adversos e mortalidade. A prevalência de MINS aparenta ser superior à das restantes especialidades cirúrgicas descritas na literatura, rondando os 15% na CEA e ultrapassando sistematicamente esse valor na Doença Arterial Periférica.
Atualmente o doseamento por rotina dos níveis de troponina pós-operatórios não está recomendado para todos os doentes. Este doseamento deverá ser reservado para os doentes de alto risco pelo revised cardiac risk index ou valores elevados de BNP pré-operatório.
A evidência disponível não permite identificar nenhuma medida definitiva de prevenção pré ou intra-operatória eficaz para a ocorrência de MINS. No que concerne à gestão pós-operatória de MINS, o dabigatrano e as estatinas demonstraram potencial na redução do risco de eventos adversos e mortalidade, respetivamente. O seguimento destes doentes em consulta diferenciada de risco cardiovascular também será uma opção a considerar no futuro. No global, são necessários mais estudos para melhor compreender a MINS na Cirurgia Vascular.