Na Península de Setúbal, em finais da Idade Média: organização do espaço, aproveitamento dos recursos e exercício do poder.
Dissertação de Doutoramento em História Medieval, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2008
Um simples olhar, sobre um qualquer mapa que represente a península de Setúbal, facilmente fixa a fractura definida pelo traçado do esteiro que conduz a ribeira de Coina até ao Tejo. Com efeito, ficam assim compartimentados distintos territórios, ainda que sejam tradicionalmente integrados na mesma província. É na porção ocidental da península de Setúbal que descortinamos, de forma mais evidente, os factores naturais comuns à Estremadura: contrastes orográficos, mais amenos no caso de Almada, onde prevalecem terras baixas, atravessadas por colinas suaves; contrastes mais tensos e violentos, na faixa meridional, marcados por uma irrupção montanhosa excepcional, a Arrábida, que sucede à depressão da zona central da península; depois, largas manchas arenosas preenchidas por pinhais a perder de vista; finalmente, um clima atlântico matizado por influências mediterrâneas.
À componente geográfica sobrevinha o critério histórico: o espaço em causa coincidia, sensivelmente com os medievos concelhos de Almada, que então englobava o território hoje afecto ao município do Seixal, Sesimbra, que compreendia o chamado «país» de Azeitão e, confrontando com estes, o enclave de Coina, que contornava a confluência da ribeira homónima com um profundo esteiro do Tejo.
A definição destas unidades administrativas estruturou-se, como ocorreu na generalidade do território português, no contexto da conquista cristã. Embora não disponhamos de testemunhos escritos, alguns vestígios arqueológicos, reforçados por uma toponímia relativamente profusa, sugerem uma efectiva presença muçulmana em Sesimbra, em Azeitão, na encosta meridional da serra da Arrábida, junto aos esteiros do Tejo e, mais intensamente, nos arredores de Almada, com prolongamento até à Trafaria.
O processo de colonização do território, na sequência da conquista cristã, permanece nebuloso. A entrega de Almada a ingleses, como recompensa da sua participação na tomada de Lisboa, em 1147, não passará de uma fantasia e a doação de Sesimbra a flamengos não teve qualquer eficácia prática. O laconismo das fontes escritas terá a sua explicação. Depressa este eixo de avanço cristão - outro articulava Santarém e Évora - se orientou em direcção a Palmela e a Alcácer do Sal, marginalizando a face ocidental da Península de Setúbal. Escassos indícios apontam para uma apropriação do espaço por parte de membros das elites urbanas lisboetas: magistrados municipais, membros do cabido, mercadores abastados, oficiais régios. Contudo, uma parte significativa da terra terá permanecido ou caído nas mãos de elementos populares menos prestigiados, conforme se infere do peso da propriedade alodial.
As gentes procuraram, naturalmente, as terras mais produtivas e acessíveis, mas com diversas condicionantes e particularismos. Contudo, enquanto nos arredores de Almada a fragmentação da propriedade e, até, alguma irregularidade orográfica, se conjugaram com uma forte dispersão, no «país» de Azeitão as diversas quintas remeteram os camponeses para pequenas aldeias que se distribuíram pela estrada que percorria o sopé da Pré-Arrábida. Já nos terrenos arenosos, que se estendiam da Azóia até Alfarim, então aproveitados preferencialmente para o cereal, dominava um povoamento intercalar, com pequenos núcleos, quase sempre coincidentes com as cabeças dos casais que preenchiam a zona.
Como centros urbanos, pese a sua modesta dimensão, podemos classificar as vilas de Almada, Coina e Sesimbra, esta com uma dupla existência. Na sua origem confinada ao recinto amuralhado do castelo, foi literalmente substituída pelo povoado ribeirinho, em finais do século XV.
De acordo com o que aconteceu um pouco por toda a Europa, onde as cidades se rodearam de vinhedos, quer para satisfação do consumo interno, quer para efeitos de comercialização, o território de Almada desde cedo conheceu o incremento vitivinícola. Primeiro, a vinha ocupou os terrenos mais pródigos ou nas imediações dos pontos de passagem fluvial, depois, avançou progressivamente mais para sul, passando a defrontar directamente pinheiros e matagais. Mas não só. A procura da bebida mais popular ao tempo, levou as vinhas também a galgarem a charneca, como sucedeu em Coina.
Como era regra, também o cereal marcava presença um pouco por todo o lado, mas o seu domínio era mais visível no recanto sudoeste da Península, coincidindo com a única zona em que sobreviveram casais. Mais discreta foi a presença da outra componente da chamada trilogia mediterrânea, o olival. Pouco dado aos ventos marítimos o olival confinou-se aos lugares mais abrigados.
Afora os espaços cultivados, sobejavam vastas áreas onde a intervenção dos homens era mais esporádica. A depressão central da península era preenchida por pinhais, matos e charnecas, que sofreram uma intensa desflorestação ao longo do período estudado.
Ao crescimento de Lisboa, que solicitava madeiras, lenha e carvão, vieram juntar-se, no decorrer do século XV, as progressivas exigências de sobro, pinho e de um seu derivado, o pez, por parte da florescente indústria naval. Já nos altos da Arrábida, ou nos seus recessos mais escusos, que não consentiram qualquer ocupação humana permanente, se podiam encontrar exuberantes pastos e, nas matas de carrasco, a grã.
Num espaço maioritariamente litorâneo, as águas constituíam um recurso que não podia ser negligenciado. Não obstante, a actividade piscatória só conheceu um verdadeiro incremento em Sesimbra, que dispunha de condições ecológicas particularmente favoráveis. Para Almada e Coina, a pesca parece não ter ultrapassado um carácter secundário ou, mesmo, residual. Nos longos e solitários areais da Costa de Caparica, só tardiamente se instalou um baleal.
As águas garantiam, também, a força motriz necessária ao funcionamento de azenhas, junto a levadas e ribeiros, ou dos chamados moinhos de maré, que tiravam partido da alternância entre a enchente e o vazante nas bordas do mar da Palha, na vizinhança, por vezes, de algumas marinhas que propiciavam a extracção do sal. Era ainda o esforço do mar que projectava as partículas auríferas que conferiram notoriedade medieval à Adiça. Ouro é sempre ouro e, por diminuta que fosse a produção das minas instaladas na praia e no medão da extremidade sul do areal de Caparica, a atenção que mereceu dos diversos monarcas ficou bem expressa na quantidade de diplomas que estes dedicaram à sua administração.
À semelhança de muitas zonas do país, o rei era o principal proprietário. Da mesma forma, verificava-se a presença de diversos conventos e mosteiros sediados em Lisboa ou de alguns membros da nobreza e da oligarquia lisboeta, embora o seu peso patrimonial fosse relativamente reduzido. Como explicação fica a possível predominância da propriedade alodial, isto é de terras na posse de elementos populares, que no decorrer do período estudado vão, paulatinamente, alienar os seus bens a compradores estabelecidos ou oriundos da capital.
Enquanto, no século XIV, era o oficialato régio que se destacava dentre estes novos proprietários, já na centúria seguinte a sua composição social sofreria alterações. A incursão de representantes da fidalguia e de seus acostados ou dependentes ganhou maior visibilidade. Por outro lado, a partir de meados Quatrocentos acentuou-se a procura de terras por parte de diversificados indivíduos quase sempre radicados em Lisboa, muitos deles à procura de quintas, que ilustrassem a sua recente nobilitação. Falamos essencialmente de membros da oligarquia municipal, mercadores, letrados, servidores régios pela espada ou pelo exercício de cargos, elementos da Casa Real. Contudo, com o aproximar de Quinhentos, emergiram altos funcionários régios ligados aos negócios ultramarinos, que, mais do que a territorialização, procuravam na Outra Banda o controlo de actividades subsidiárias ou complementares da construção naval e do comércio ultramarino. Investiam em aquisições florestais, na exploração de salinas, moinhos e vinhas.
Embora de diferentes extracções, os proprietários, na sua maioria, geriam, as suas terras em regime de exploração indirecta. Os aforamentos, contratos que, para sempre, alienavam o usufruto aos foreiros e aos seus descendentes, embora predominantes no início do século XIV, foram cedendo lugar aos emprazamentos, que triunfariam no século seguinte. Ao estipularem prazos mais curtos, geralmente em três vidas, os emprazamentos possibilitavam a actualização das rendas. A este processo não ficaram, decerto, indiferentes os enfiteutas, que conseguiram prolongar estes vínculos de três para quatro gerações. Ao demais, e apenas excepcionalmente, os detentores da terra recorriam aos arrendamentos, contratos que estavam circunscritos a um número limitado de anos.
A duração dos contratos reflectiu-se na estrutura das rendas. Em crescendo até 1375, os pagamentos parciários, isto é, de um determinada quota-parte da produção, foram, depois, progressivamente preteridos pelos pagamentos fixos em dinheiro. Apesar dos riscos inerentes, em particular da desvalorização da moeda, a renda em numerário, por norma fixa, impôs-se no decorrer do século XV. Facilitava a administração das propriedades, nomeadamente quanto ao processo de cobrança e à previsão de receitas, ao mesmo tempo que se adequava sem dificuldades a uma economia tendencialmente monetária.
Para além do exercício de domínio patrimonial, que decorria da posse das terras, sobrevinha o poder sobre os homens que se estratificava a três níveis: os concelhos, os donatários das jurisdições e, acima de todos, o rei.
Após a conquista definitiva pelas forças cristãs, a totalidade do espaço, repartido pelos concelhos de Almada e de Sesimbra, ficou sob jurisdição da Ordem de Santiago, fruto da concessão outorgada por D. Sancho I, em 1186.
A primeira reorganização administrativa ocorreu quando D. Paio Peres Correia, em 1271, doou para sempre o lugar de Coina ao mosteiro de Santos. Não sendo uma alteração significativa do ponto de vista jurisdicional, uma vez que esse poder permanecia no seio da Ordem, esta tentativa de criação de um couto acarretaria um arrastado conflito entre as donas santiaguistas e o concelho de Sesimbra, que se sentia esbulhado do direito de aí exercer a sua autoridade. A contenda atingiu o seu auge durante o reinado de D. Afonso IV e, em 1346, uma avença promovida pelo corregedor régio contentou as partes, consignando um regime jurídico híbrido para o território de Coina, que passou a estar jurisdicionalmente submetido às duas entidades.
Já em finais do século XIII, Almada passaria para a Coroa por troca pelas vilas de Almodôvar e de Ourique e os castelos de Marachique e de Aljezur, mais os respectivos termos. Posteriormente o concelho almadense foi sucessivamente doado: uma primeira vez a João Fernandes de Lima, um rico homem da corte, e sua mulher, D. Maria de Aboim, mais tarde à rainha D. Beatriz, a quem sucedeu a neta D. Maria. Depois de entrar nas arras de D. Leonor Teles, o senhorio foi concedido a Nuno Álvares Pereira, tendo passado às suas descendentes.
Contudo com no decorrer de Quatrocentos, o controlo jurisdicional dos concelhos tendeu a concentrar-se em núcleos familiares chegados ao monarca. O concelho de Almada vinculado à linha descendente de Nuno Álvares Pereira, acabou por se aproximar da esfera de influência da Ordem. Com efeito, no decorrer do século XV, a política governamental de D. João I relativamente à chefia das ordens militares, conjugada com as estratégias matrimoniais dos infantes encarregados da sua administração, concentrou nas mesmas casas o senhorio dos territórios em causa. O infante D. João, governador de Santiago, matrimoniou-se com a neta do condestável, D. Isabel. O seu sucessor à frente da Ordem, o sobrinho D. Fernando, casou precisamente com D. Beatriz, filha destes João e Isabel, que herdou a jurisdição de Almada.
Nem sempre a articulação entre os concelhos, os donatários e o rei funcionava segundo a cadeia hierárquica. Quando rebentavam os conflitos, as conexões entre estas entidades conheciam diversas combinações. Era possível que um concelho se queixasse à Ordem da actuação régia, como também podia ocorrer que os concelhos descontentes com a actuação dos donatários se agravassem ao rei. A própria Ordem ou os senhores de Almada socorriam-se da intervenção régia quando não conseguiam controlar ou resolver as conflituosidades internas.
Com a chegada do Príncipe Perfeito à governação do reino, ainda em vida de D. Afonso V, este xadrez de interesses conheceu um novo arranjo. Primeiro, como regente, e depois, como monarca, D. João II juntou à chefia do reino a da Ordem. Assim, os concelhos deixaram de poder socorrer-se da protecção régia quando se sentiam lesados pala administração santiaguista. Este novo enquadramento terá sido prejudicial ao concelho de Sesimbra, particularmente na resolução das diversas contendas que dirimia com Setúbal, dado que esta vila pertencia à Mesa Mestral.
O alicerce de todo o edifício político-administrativo concelhio radicava, inicialmente, na assembleia vicinal, acessível a todos os membros da comunidade. Porém, a sua capacidade de intervenção e de decisão foi-se esbatendo à medida que a administração municipal passou a ser controlada por um corpo de oficiais mais restrito e especializado. Aos juízes juntaram-se os vereadores, os almotacés, procuradores, às vezes um escrivão do concelho. A realização das assembleias-gerais ficou restringida ao critério dos oficiais camarários, que, praticamente, só as convocavam quando pretendiam obter um apoio alargado às suas decisões.
Juízes, vereadores e procuradores eram teoricamente eleitos. Porém com a Lei dos Pelouros, em 1391, o acesso ao exercício das magistraturas ficou condicionado aos notáveis dos sítios. Como estes não podiam repetir dois mandatos consecutivamente, a tendência foi para a circularidade dos oficiais concelhios. Diversos indivíduos percorreram as três funções, e quando alguns deste restrito grupo de governantes estavam desprovidos de qualquer cargo, era frequente encontrá-los na direcção de instituições de assistência e confrarias, ou participando em diversos actos públicos.
Apesar da contaminação destes órgãos de poder local por elementos conotados com o rei ou com personagens influentes, durante o século XV, o exercício do poder camarário terá sido assegurado maioritariamente, tanto em Almada como em Sesimbra e Coina, por aqueles que se dedicavam à exploração de terras como proprietários e enfiteutas, ou nas duas condições em simultâneo. O acesso de outros sectores sócio-profissionais à gestão municipal era reduzido, ou inexistente: artífices ainda encontrámos alguns, mercadores nem um exemplo.
Parece, assim, confirmar-se a extensão e o peso da propriedade alodial no espaço considerado. Será a força económica dos pequenos ou médios detentores de terras de extracção popular que permite explicar o controlo do poder político durante um período tão alargado. Só tardiamente, para o âmbito cronológico deste trabalho, e apenas em Sesimbra, quando a vila piscatória substituiu definitivamente o recinto amuralhado, um novo grupo profissional, a comunidade dos mareantes, acedeu à gestão da vida concelhia.
Por isso as políticas municipais orientaram-se na defesa dos interesses dos agricultores, protegendo as suas produções ou reclamando contra os excessos praticados pelos oficiais das donatárias sobre a sua actividade, como aconteceu frequentemente em Almada.
Já os esforços do concelho de Sesimbra, ao longo do século XIV, foram claramente dirigidos no sentido de aceder livremente ao Tejo, por Cacilhas ou Coina, e, consequentemente a Lisboa, bem como ao mercado de Setúbal que garantia o escoamento de vinhos e a aquisição do sal tão necessário que era à conservação do peixe.
O confronto de Sesimbra com Setúbal, as relações de solidariedade que aquele concelho estabeleceu com Almada a e referida reivindicação de direitos jurisdicionais sobre Coina, apontam, no seu conjunto para um mesmo fenómeno - a polarização do espaço estudado pela cidade de Lisboa e a progressiva subordinação económica ao desenvolvimento da capital.