A produção têxtil portuguesa medieval nunca alcançou uma dimensão comparável à dos grandes centros produtores europeus da época, mas foi um dos pilares mais importantes da economia interna do reino e, provavelmente, aquele que, de entre os vários sectores artesanais, maior número de mulheres ocupava1.
Ao longo de toda a Idade Média, a importação de produtos têxteis estrangeiros foi uma constante em Portugal2. O reino não produzia tecidos delicados e luxuosos como os da Flandres ou de Inglaterra. Em contrapartida, tinha têxteis resistentes e muito mais baratos do que os importados3.
Os tecidos de lã portugueses eram, na sua maioria, de qualidade média/baixa e satisfaziam grande parte dos consumos dos grupos sociais inferiores. O essencial da produção lanígera concentrar-se-ia no interior do reino, onde abundava a matéria-prima. Se uma boa parte dessa produção era de carácter doméstico e destinada a pouco mais do que o auto-consumo, uma outra parte, localizada em “focos industriais” importantes4, servia-se de matéria-prima castelhana, que, depois de transformada, era vendida no reino, mas também exportada para Castela5.
A produção de seda tinha ainda uma dimensão reduzida nos séculos XIV e XV. Seria Afonso V, na segunda metade do século XV, a dar um impulso significativo a esta indústria, tendo ordenado a plantação de amoreiras em todo o reino. Em 1475, o monopólio da produção de seda de Trás-os-Montes é concedido ao Duque de Bragança6. Nunca tendo deixado de ser de qualidade grosseira, a seda do reino supria as necessidades de um mercado mais alargado, sendo ainda exportada para Castela e até mesmo para Itália, como comprovam os registos da companhia Cambini7. A sua produção cresceria em qualidade a partir do século XVI, em grande parte graças à introdução de mão-de-obra especializada estrangeira8.
As necessidades de importação faziam-se sentir menos em relação aos tecidos de linho e de cânhamo. A sua produção encontrava-se dispersa um pouco por todo o país e tinha uma longa tradição, observável já desde o período pré-romano9. O linho estava perfeitamente integrado na «estrutura agro-económica das explorações agrárias10» e organizava-se num sistema produtivo doméstico e rural, de meios técnicos rudimentares. Fabricavam-se tecidos grosseiros, nomeadamente o bragal e a estopa, e outros mais finos, como o lenço. O cânhamo, um material mais resistente, tinha aplicação sobretudo em artigos navais, nomeadamente nas velas dos navios (o chamado pano de tréu) e nas cordas11.
A participação feminina
A reduzida projecção da indústria portuguesa medieval em geral, e da indústria têxtil em particular, explica, em parte, que poucos testemunhos da sua existência tenham chegado até nós. Não temos, para os séculos medievais, fontes directas para o estudo da produção artesanal. Contratos de aprendizagem não existem, livros de fiscalidade são poucos e listas de artesãos são raras. As fontes comerciais, nomeadamente contratos e livros de contas, também não abundam.
Se o estudo das estruturas produtivas é difícil, mais complicado ainda é o estudo da organização do trabalho12. As primeiras corporações de ofícios surgem apenas nos finais do século XV e também só se generalizam ao longo do século XVI. Como já foi dito, grande parte da produção opera-se num contexto doméstico, precisamente aquele que as fontes mais dificilmente permitem alcançar. O trabalho das mulheres é, por isso, um fenómeno que constantemente nos escapa. Perante estas limitações, a metodologia de análise que adoptámos, e que temos vindo a seguir noutros trabalhos13, valoriza o género (feminino ou masculino) da designação ocupacional em contextos de referências gerais à ocupação. Estas referências gerais encontram-se sobretudo nas posturas e tabelamentos municipais, nos quais as designações ocupacionais são referentes a um grupo profissional e não a indivíduos concretos. O uso mais ou menos regular, que pode variar no tempo e no espaço, das formas feminina e/ou masculina, assume-se, para nós, como claro indício do género dominante de quem se dedicava a essa actividade. A atenção a essa forma vocabular é bastante importante para inferir a realidade e a distribuição sexual do trabalho. Não deixamos, no entanto, de prestar atenção também às referências individuais, embora não tenhamos a pretensão de apresentar uma recolha documental exaustiva a esse nível. A este título, o levantamento de referências documentais a judeus no século XV, realizado por Maria José Ferro Tavares, é excepcional, pela quantidade e homogeneidade espácio-temporal dos dados recolhidos14. As informações retiradas deste estudo servir-nos-ão para complementar e confrontar os dados recolhidos noutros contextos.
Os poucos vestígios que conseguimos reunir apenas nos fornecem indícios e sugerem tendências, mas é com eles que tentaremos esboçar um esquema que nos permita avaliar a participação das mulheres em cada uma das fases da produção e do comércio têxtil.
a) Preparação da fibra
Uma grande parte da produção e preparação da matéria-prima estava directamente ligada ao trabalho agrícola. Cultivava-se o linho ao lado do cereal e do vinho. O linho era, aliás, um elemento frequentemente incluído nas rendas das explorações agrícolas15. A sua plantação e tratamento eram algumas das muitas tarefas do agregado familiar camponês, no qual a mulher teria um papel fundamental. Mas existiam também as grandes explorações, para as quais era necessário recrutar trabalhadores assalariados.
Nas posturas municipais de Évora, dos finais do século XIV, encontramos referências a “homens de serviço”16 responsáveis por diversas tarefas ligadas à agricultura. Entre elas, as operações ligadas à plantação e ao tratamento do linho. Era à mulher que competia mondar (arrancar as ervas daninhas e as plantas danificadas), arrincar (arrancar as plantas), ripar (separar a baganha do caule), lavar, maçar (separar as fibras têxteis das lenhosas, através de pancadas) e tasquinhar (separar as impurezas das fibras mais finas, através de pancadas). Só a tarefa de maçar é que seria também partilhada pelos homens. Todas as outras eram exclusivas das mulheres17. Prova disso são também as classificações profissionais correspondentes, que surgem apenas no género feminino: são as tasquinhadeiras18 e as gramadeiras19 (responsáveis por separar as fibras têxteis das lenhosas, através da fragmentação dos caules). Nenhuma destas mulheres trabalharia a tempo inteiro. O processo de preparação da fibra decorreria entre Maio e Outubro20. O recrutamento dos trabalhadores fazia-se sazonalmente e o seu salário era pago à jorna. Não dispomos de dados suficientes que nos permitam comparar salários entre homens e mulheres especificamente nas tarefas de tratamento do linho21, mas sabemos que no sector agrícola, em geral, a tendência era para as mulheres ganharem menos 20 a 33,33% que os homens, no desempenho de iguais funções22.
Relativamente à preparação da lã, surgem, também em Évora, referências às penteadeiras23. Quanto aos cardadores, a sua existência está documentada desde o século XII24, mas não encontramos testemunhos da participação das mulheres neste ofício ao longo da Idade Média25.
b) Fiação
A fiação era uma tarefa feminina por excelência e assim terá permanecido até aos finais do século XIX26. A própria Eva surge associada a esta actividade (“Quando Adão cavava e Eva fiava, onde estava o fidalgo?”). Fiar e tecer faziam parte das diversas actividades domésticas que as mulheres aprendiam desde muito cedo a desempenhar. Era uma espécie de inerência à condição de “ser mulher”, que está bem patente neste ditado popular: “Mãe, o que é casar? Filha, é fiar, parir e chorar27”. Às raparigas competia também fiar o linho para o seu enxoval28 e a roca surge-nos muitas vezes como símbolo da mulher casada29.
A fiação era um trabalho relativamente fácil e perfeitamente conjugável com outras actividades. Ao contrário, por exemplo, da tecelagem, não exigia muitos conhecimentos técnicos, nem grandes investimentos em ferramentas. O fuso e a roca eram instrumentos acessíveis e permitiam uma mobilidade que o trabalho no tear não consentia30. Deslocando o fuso e a roca consigo, a mulher podia facilmente fiar em qualquer lugar, no intervalo dos afazeres domésticos e das fainas agrícolas31. No Auto da Lusitânia (1532), Gil Vicente permite-nos entrever a fiação no interior do cenário doméstico32. O elenco de personagens é composto por uma família judaica (o pai, alfaiate, a mãe, a filha Lediça e o filho Saulinho):
Mãe Lediça vai à janela
traze-me a roca e a banca
e o fuso que está co ela.
Lediça Pardeos mãe i vós por ela
Que nam sois cega nem manca
Pai Assentai-vos a fiar
Saulinho e eu a coser
Lediça guise o jantar
Como acabar de varrer
E a loiça de lavar
Estamos perante o retrato de uma família dedicada à produção têxtil, na qual os elementos do sexo feminino se repartem entre a actividade da fiação e as outras tarefas domésticas.
Produzido essencialmente num sistema doméstico e rural, o fio servia para consumo próprio do agregado familiar e/ou da unidade produtiva doméstica, para pagar as rendas e também para vender, quando havia excedentes. Embora as fontes dos séculos XIV e XV não nos forneçam informação suficiente sobre este assunto, é possível também que, à semelhança do que acontecia noutras regiões33, as fiandeiras nem sempre fossem donas da matéria-prima que transformavam, actuando sob o controle de mercadores, no âmbito de um verlagssystem34. Não tendo acesso directo ao mercado, as mulheres e as famílias produtoras de fio viam assim a sua função limitada dentro do ciclo produtivo. A única excepção que encontrámos foi uma fiandeira de seda, judia, da cidade de Chaves, que, em 1442, recebia do rei o privilégio de poder fazer contratos de compra e venda a pronto e a prazo, nas mesmas condições dos cristãos35. Estamos perante um caso em que o produtor de fio tinha autonomia para comercializar o seu produto e para interagir directamente com os agentes das outras fases produtivas. Como referimos, trata-se de um exemplo isolado e não cremos que fosse regra.
c) Tecelagem
A tecelagem realizava-se tanto no espaço rural como no espaço urbano. Não havia aldeia que não tivesse um ou mais teares36 e nas cidades e vilas multiplica-se o estabelecimento de preços relativos ao trabalho dos tecelões e tecedeiras a partir do século XIV. Pouco sabemos sobre a tecelagem realizada nos meios rurais e em contexto doméstico. Tal como a fiação, é possível que se integrasse também no modelo de um verlagssystem, controlado pelos mercadores e produtores de têxteis (provavelmente os trapeiros)37. Ao longo do ano de 1442, Afonso V concedeu privilégios comerciais a centenas de artesãos e mercadores judeus38 de todo o reino. Entre esses registos, encontramos cartas de privilégio atribuídas a 143 tecelões (homens)39 e a apenas duas tecedeiras40. Se nos baseássemos apenas nos números desta amostragem, poderíamos facilmente concluir que o sector da tecelagem seria largamente dominado pelos homens e que às mulheres estava reservado um espaço muito reduzido. Mas estes números podem enganar. Por detrás de cada um dos nomes destes tecelões poderia estar escondido o das suas mulheres, que trabalhavam em conjunto com eles nas oficinas ou no quadro de uma economia familiar. O privilégio é atribuído apenas no nome do homem porque é ele o mestre do ofício. Não deixa, mesmo assim, de ser significativo que nesta lista haja duas mulheres, que nada indica serem viúvas, a receber o privilégio na qualidade de mestras.
As tecedeiras raramente são referidas individualmente, mas os documentos municipais e outros referem-nas de forma colectiva e genérica várias vezes41. Uma constituição do arcebispo de Braga, D. Martinho Pires de Oliveira, de 1304, permite-nos distinguir diferentes níveis de dedicação à actividade da tecelagem. Ao definir os dízimos que cada mesteiral deveria pagar, determinava-se que as tecedeiras que trabalhassem todo o ano pagariam 5 soldos, as que trabalhassem só meio ano pagariam 2 soldos e meio, isentando-se ainda aquelas que trabalhassem menos de seis meses42. Para além das mulheres que exerciam a actividade a tempo inteiro, existiriam outras que se dedicavam sazonalmente ou pontualmente à tecelagem, o que nos leva a crer que as mulheres do campo participariam no sector. Neste documento do início do século XIV, o ofício da tecelagem surge-nos referido exclusivamente no feminino e só cerca de um século e meio mais tarde é que vemos surgir, novamente a propósito dos dízimos, a designação ocupacional em ambos os géneros, na constituição do arcebispo D. Fernando da Guerra, de 145243, adoptada também, mais tarde, por D. Diogo de Sousa, bispo do Porto, em 149644. Nessa constituição, os tecelões estavam obrigados ao pagamento de trinta reais, enquanto as tecedeiras pagavam apenas vinte. Não cremos que esta diferença se explique pelo facto de as mulheres receberem menos pelo seu trabalho. Como veremos mais à frente, homens e mulheres recebiam o mesmo valor pelas peças que produziam. Acontece que, provavelmente, ao contrário dos homens, que trabalhariam a tempo inteiro, as mulheres dedicariam menos tempo à actividade (como nos é sugerido pelo documento de 1304), o que resulta num menor rendimento global anual e, consequentemente, num dízimo proporcional a esse mesmo rendimento.
Um outro documento relativo a dízimos que nos fornece referências ocupacionais gerais é o regimento das “conhecenças”, de Tomar, de 145745. Trata-se de uma carta do Infante D. Henrique, na qual se determinam os dízimos que os mesteirais e braceiros deveriam pagar, de modo a pôr termo ao desentendimento que se havia gerado entre estes e o vigário de Tomar. Dispomos assim de uma lista extensa de designações ocupacionais, que não só nos permite verificar a especialização técnica e a distribuição sexual das ocupações, como também estabelecer uma hierarquia salarial entre elas. Relativamente aos ofícios relacionados com a tecelagem, distinguem-se os seguintes: tecelões de pano de cor e mantas, tecelões de burel e tecedeiras. As tecedeiras subdividem-se ainda entre as que têm tear próprio, obrigadas ao pagamento de oito reais e aquelas que tecem em “tear alheo”, estando obrigadas ao pagamento de apenas cinco reais. Esta breve referência sugere-nos então que haveria tecedeiras a trabalhar por conta própria e tecedeiras que trabalhavam por conta de outrem. Resta-nos saber se estas últimas trabalhariam para outros mestres tecelões ou mestras tecedeiras ou directamente para os mercadores, que seriam os detentores dos meios de produção. Comparando os valores dos dízimos entre homens e mulheres, verificamos que a tecedeira com tear próprio e o tecelão de burel pagavam ambos oito reais de dízimo. Já o tecelão de panos de cor e de mantas, mais especializado, pagava doze reais.
No caso dos documentos municipais, as tecedeiras são referidas em dois tipos de situação: quando se estabelecem os preços dos produtos têxteis e quando são tomadas medidas relacionadas com o controle dos pesos usados pelos artesãos. As determinações concelhias de Lisboa (1458)46, Évora (1379-81)47 e Arraiolos (1420)48 referem-se conjuntamente a tecelões e tecedeiras, sem fazer distinções. Homens e mulheres recebiam exactamente as mesmas quantias e aparentemente, submetiam-se de igual modo às regras estabelecidas pelo município49. Nos capítulos especiais de Cortes de Guimarães e Braga, de 1455, e de Leiria, de 1460, referem-se simultaneamente tecelões e tecedeiras50. Já no caso de Loulé, em 1403, na hora de determinar os preços dos tecidos, fala-se apenas de tecedeiras e não de tecelões51. O mesmo acontece na cidade do Porto, em 1412 e em 141352. As tecedeiras encontram-se entre os oito mesteres tabelados pela câmara portuense, sendo de resto o único mester que surge designado no feminino. Tal permite-nos deduzir que este seria um dos sectores de destaque na cidade, em quantidade ou em dimensão social e económica e que, por isso, importava tabelar.
É já no último quartel do século XV que encontramos indícios de especialização técnica e de divisão sexual do trabalho na cidade do Porto. Quando, em 1485, se referem os tipos de pesos que cada artesão deveria utilizar, distinguem-se duas categorias profissionais relativas à tecelagem: os tecelões de linho e as tecedeiras de “veeos”53. Os “veeos” eram tecidos de seda, muito finos e delicados54, que só os profissionais mais qualificados conseguiam executar com perfeição.
Como podemos ver, a participação da mulher no sector da tecelagem verifica-se em níveis distintos, que vão desde o trabalho rudimentar típico dos meios rurais até ao trabalho realizado em oficinas urbanas, caracterizado por um elevado grau de especialização técnica.
d) Acabamentos
A mulher está praticamente ausente nesta fase produtiva. A pisoagem era uma tarefa exclusivamente masculina, provavelmente por exigir um maior esforço físico55.
Tanto os tecidos de lã nacionais como os importados eram submetidos à tosa. Isto explica a significativa presença de tosadores nos espaços urbanos ao longo dos séculos XIV e XV, mas em nenhum momento encontramos mulheres associadas a estas tarefas. Nos regimentos do século XVI também não se prevê a participação feminina neste ofício56.
A tinturaria era um sector fortemente dominado pelos judeus e claramente masculino. As referências individuais a tintureiros que se conhecem são quase sempre referentes a homens57 e as referências gerais também nos surgem no masculino58. Temos notícia de duas excepções, ambas no Porto: uma tintureira, em 129559, e uma outra tintureira judia, em 147460.
e) Confecção de vestuário
A confecção de vestuário era tarefa dos alfaiates, que faziam tanto o vestuário masculino como o feminino. O sector era claramente dominado pelos homens, e muitos deles eram judeus61, embora também se encontrem algumas referências dispersas a mulheres alfaiatas.
Dos 301 alfaiates judeus62 que, ao longo do ano de 1442, recebem cartas de privilégio de Afonso V, quatro são mulheres63. Uma destas mulheres é também casada com um alfaiate64. Ela e o marido surgem na mesma lista e cada um recebe a sua própria carta de privilégio. Estamos perante um testemunho raro em que ambos os cônjuges actuam na qualidade de mestres. No Porto, encontram-se também referências gerais a alfaiatas65 e ainda uma menção concreta a uma alfaiata, que, em 1432, é nomeada “medideira do pão” pelos homens da Câmara66.
Embora a existência de mulheres alfaiatas fosse uma realidade, é curioso verificar que nos regulamentos relativos a esta profissão, a designação geral é quase sempre masculina. Assim acontece no Porto67, em Lisboa68, Évora69 e Arraiolos70. No já referido “regimento das conhecenças” de Tomar, surgem-nos diferentes categorias de alfaiate: o alfaiate “que tever mancebo ou custureiros”, obrigado ao pagamento de quinze reais de dízimo; o alfaiate sem mancebos nem costureiros (doze reais); o alfaiate de burel e de pano de linho (oito reais) e, por fim, a alfaiata, assim designada no género feminino, que pagava apenas seis reais de dízimo. A mulher alfaiata aparece no final da lista, sem qualquer menção a uma especialização técnica e parecendo auferir menos do que todos os seus congéneres masculinos, numa diferença significativa que oscila entre 60 a 25% menos. A partir destas informações, pode deduzir-se que o trabalho dos alfaiates homens é mais especializado e, portanto, melhor cotado, enquanto o das mulheres parece ser indiferenciado e, por isso, menos valorizado. Recorde-se que, no mesmo regimento, a tecedeira paga mais dízimo (oito reais) do que a alfaiata (seis reais). É possível também que algumas das mulheres alfaiatas se dedicassem especificamente ao arranjo e reconversão das roupas. No regimento do hospital de Todos os Santos de Lisboa, de 1504, determina-se que seja contratada uma alfaiata (e não um alfaiate) para “coser e repairar de seu oficio e fazer de novo todos os lemçoes todos os mamteis e allmofadas toalhas carapuças lemções guardanapos e toda outra roupa de lynho desta sorte”71.
A participação da mulher no sector podia ser muito maior do que os documentos nos sugerem, se considerarmos a hipótese de os alfaiates recorrerem à colaboração dos elementos femininos do agregado familiar72.
f) Comércio e organização da produção
A maior parte do comércio a retalho estava a cargo das mulheres73. Vendiam produtos frescos, como o peixe, a fruta e o pão, mas também objectos de pequeno valor, como louça ou alguns artigos têxteis. Linhas e fitas de seda eram vendidas pelas tendeiras, em Lisboa74, ou pelas marceiras75, em Évora. Havia também mulheres que se dedicavam à venda de roupas usadas: eram as adelas76. Temos notícia de duas adelas, judias, que, em 1442, integram a lista dos artesãos que recebem do rei o privilégio de fazer contratos de compra e venda77.
Mas não era só no pequeno comércio que a mulher participava. Embora os dados de que dispomos sejam escassos, encontramos testemunhos da existência de mulheres trapeiras. O trapeiro era um comerciante de tecidos, podendo simultaneamente ser um empresário ou organizador da produção, no âmbito do verlagssystem78. O vocábulo é ambíguo e podia ser utilizado apenas numa ou em ambas as acepções.
Na já referida lista de artesãos judeus de 1442, aparece uma mulher trapeira, que exerce a função na qualidade de viúva de um trapeiro79. No Porto, em 1475, encontramos uma breve referência geral às rendas das trapeiras80. Não sabemos se estas mulheres apenas vendiam tecidos ou se também tinham interferência na organização da produção têxtil.
Mudanças no século XVI
Os poucos dados que conseguimos reunir sugerem-nos que a presença da mulher na produção têxtil era bastante significativa nos séculos XIV e XV, mas em nada se compara à projecção que viria a ter no século XVI. Não só as cidades crescem e a indústria se desenvolve, como uma série de factores relacionados com a expansão marítima permite aumentar consideravelmente as oportunidades da mulher no mercado de trabalho. Muitos homens saíam do reino em direcção ao “novo mundo”, deixando margem para que as mulheres ocupassem os seus lugares no artesanato e no comércio81. Por outro lado, dá-se um aumento excepcional da procura de têxteis para comercialização nas várias partes do Império e da procura específica de panos para velas (tréu), para as muitas embarcações que então se construíam. Há registo de centenas de mulheres dedicadas à fiação e tecelagem de tréu nas comunidades marítimas82. Também a indústria da seda se desenvolve e ocupa muitas mulheres na região de Trás-os-Montes.
Conclusões
A importância da participação da mulher na produção têxtil portuguesa tardo-medieval afirma-se em duas dimensões: na economia do agregado familiar e na sustentabilidade e estruturação do sistema produtivo. Trabalhando em casa, no âmbito do verlagssystem ou cooperando com o chefe de família na sua actividade, a mulher contribuía para o aumento e complemento dos rendimentos familiares. Não é por acaso que se diz que “a fiar e a tecer ganha a mulher de comer”83.
O trabalho da mulher não só tinha valor, como era valorizado. No século XIV, um trovador, destacava, em tom jocoso, as capacidades de uma simples ama84:
Ca sabe ben fiar e ben tecer
e talha mui ben bragas e camisa;
e nunca vistes molher de sa guisa
que mais limpia vida sábia fazer;
De entre todas as tarefas domésticas, aquelas tidas como mais dignas eram as relacionadas com a confecção de tecidos e de roupa. Consideradas virtuosas, as actividades têxteis eram também apanágio de mulheres nobres. A rainha Santa Isabel “por nom estar ocioza custumava por suas mãos lavrar, e fazer cousas douro, seda, e prata”85. Também a princesa Joana, filha de Afonso V, quando estava no mosteiro de Jesus de Aveiro, terá aprendido a fiar “e do seu fiado se fazião corporais pera os altares”86. Encontrámos ainda, em algumas representações iconográficas portuguesas, a arte têxtil sublimada na figura da Virgem Maria87.
Trabalho valorizado, digno de admiração e desejável, mas também causador de espanto e até de medo88. Em 1481, Beatriz Fernandes pedia perdão ao rei pelos crimes de que tinha sido acusada: alcovitaria, roubo de carneiros e feitiçaria. O seu acusador não tinha dúvidas de que ela era uma feiticeira. Afinal, segundo contavam, tinha sido capaz de fiar e tecer uma camisa numa só noite89!
Se o papel da mulher era muitas vezes complementar e secundário e não implicava um elevado grau de especialização, noutros casos era de uma grande exigência, requerendo um domínio técnico do qual muitas vezes só ela parecia ser detentora. Este domínio técnico permitia-lhe ocupar um papel de destaque em determinadas fases e sub-fases da produção têxtil, sobretudo as iniciais. Como pudemos ver, alguns nomes de ocupações profissionais existiam apenas ou maioritariamente no género feminino. Mas fosse dentro ou fora das fronteiras do agregado familiar, o trabalho da mulher era sempre controlado ou supervisionado pelos homens, que tanto podiam ser os chefes de família, como os mercadores ou aqueles que governavam a cidade e que regulamentavam e fiscalizavam a actividade artesanal.
Fontes:
1. Manuscritas
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ANTT (Arquivo Nacional da Torre do Tombo), Chancelaria de D. Afonso V, livros 23 e 26.
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As Obras de Gil Vicente, vol. 2, ed. por CAMÕES, José. Lisboa: Centro de Estudos de Teatro da FLUL e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002.
Cantigas d'escarnho e mal dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses, ed. por LAPA, M. Rodrigues. Coimbra: Editorial Galaxia, 1970.
Constituiçõees que fez ho senhor dom Diogo de Sousa Bispo do Porto (edição em fac-símile do incunábulo da Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa da Fundação da Casa de Bragança). Lisboa: Edições Távola Redonda, 1997.
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