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Medievalista
versão On-line ISSN 1646-740X
Med_on no.27 Lisboa jun. 2020
APRESENTAÇÃO DE TESES
Costas com Dom: Família e Arquivo (Séculos XV-XVII)
Tese de Doutoramento em História/Arquivística Histórica, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Outubro de 2018. Orientação dos Professores Doutores Maria de Lurdes Rosa e João Paulo Oliveira e Costa
Margarida Leme1
https://orcid.org/0000-0002-0726-0572
1Instituto de Estudos Medievais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1069-061 Lisboa, Portugal, mleme@netcabo.pt
No que foi ao mesmo tempo tanto um problema como um desafio fascinante, e contrariamente a outras teses já apresentadas sobre Arquivística Histórica / Arquivos de Família, o presente estudo não partiu de um arquivo concreto, ainda existente, mas da tentativa de reconstituição do que teriam sido os arquivos de diversos membros de uma família nobre, de finais do século XV às primeiras décadas do XVII, personagens de uma mesma linhagem originária de um patriarca fundador, Álvaro da Costa, cuja descendência ficou conhecida nos nobiliários por Costas com Dom, distinguindo-se assim de outras famílias com idêntico apelido. A origem desta designação reside na atribuição ao fundador da distinção honorífica de Dom, sinal claro do apreço em que o tinha D. Manuel, o senhor que primeiro serviu, com enorme dedicação, desde os tempos do Ducado de Beja.
Assumindo que a história da nobreza será sempre mais rica e completa se partir de dentro, ou seja se partir dos seus próprios arquivos, e na ausência, por vicissitudes diversas, destes acervos, tentámos reconstituí-los com recurso a todo o tipo de testemunhos documentais: os originais conservados, mesmo se em arquivos distintos daqueles em que foram produzidos ou acumulados, as cópias, os inventários tardios, os traslados de época ou posteriores, incluindo os excertos ou referências em obras publicadas, os registos ou mesmo originais produzidos por outras instituições que com a família se relacionaram, as referências em outros documentos. Alcançámos assim um corpus razoável de documentação que em determinado momento integrou os arquivos dos membros das quatros gerações de Costas com Dom que nasceram, viveram e morreram entre os finais do século XV e os inícios do século XVII, ou seja, desde o nascimento do fundador da linhagem, Álvaro da Costa, até à morte do último dos seus bisnetos cuja produção documental estudámos, o armador-mor Gonçalo da Costa. Este é sem dúvida o ganho central da nossa tese, que se situa entre a Arquivística e a História, procurando tirar de ambas os mais relevantes contributos: uma investigação construída sobre um método histórico-arquivístico de reconstrução de arquivos perdidos, que propomos à crítica e à utilização de todos os investigadores interessados.
Não foi possível, em função do tempo e do espaço disponível para esta investigação, reconstituir e estudar a produção documental de todos os descendentes de Álvaro da Costa compreendidos no período temporal que nos propusemos analisar. Tivemos, portanto, que fazer opções, e restringimos a análise aos membros da família que deram início, ou se integraram, em três Casas nobres cujos arquivos de família chegaram mais ou menos intactos ao final do século XIX, quando a legislação que extinguiu o instituto jurídico do morgadio ditou, na maioria dos casos, a sua desagregação. O critério de base foi seguir a linha masculina, que obrigava a uma herança única, ou, no caso, um tipo de partilha da mesma que privilegiava os filhos, após a compensação das filhas com dotes - que equivaliam à sua saída do grupo familiar de origem e à consequente entrada nas famílias dos cônjuges. Assim, os membros da linhagem descendente de Álvaro da Costa que seleccionámos foram, na segunda geração, os seus dois filhos varões que casaram e tiveram descendência, Gil Eanes e Duarte. Na terceira geração, a dos netos de Álvaro da Costa, foram considerados todos os filhos varões que tiveram descendência, tanto de Gil Eanes da Costa como de Duarte da Costa. Incluíram-se nesta geração as filhas ainda solteiras ou as que entraram em religião, enquanto sob a tutela dos pais. Por fim na quarta geração, só foram incluídos os filhos varões, herdeiros da Casa dos pais.
Partindo do princípio que os arquivos não são objectos estáticos mas corpos em permanente mutação e que a colecção virtual de documentos obtida reflecte, em parte, o que em determinado momento integraria os arquivos que pretendemos estudar, e ainda conscientes de que, por mais exaustivos que procurássemos ser, apenas conseguimos obter uma imagem parcial desses arquivos que, apesar de tudo, merece ser dada a conhecer, estruturámos a tese, que pretende ser de âmbito, simultaneamente, histórico e arquivístico, em três partes distintas.
No capítulo 1 expomos, com recurso à bibliografia disponível, as bases teóricas do que se convencionou chamar Arquivística Histórica, a qual trouxe para o centro da outrora considerada Ciência Auxiliar da História o próprio Arquivo, como objecto de estudo. Seguidamente, damos uma rápida panorâmica sobre a tipologia arquivística Arquivo de Família, e discorremos como a sua organização pode ser encarada dentro dos princípios e métodos da chamada Arquivística sistémica, tal como definidos por Armando Malheiro e a que se convencionou chamar Escola do Porto. Com semelhante brevidade, mas reputando-a de tarefa fundamental, fazemos referência aos estudos da historiografia portuguesa recente sobre história social da nobreza tardo-medieval e moderna, que foram mais relevantes para esta investigação.
No capítulo 2 damos a conhecer os percursos dos arquivos familiares de três ramos da família Costa com Dom em primeiro lugar, o Arquivo de D. Gil Eanes da Costa, integrado por casamento de uma sua neta, herdeira do seu morgado, no Arquivo da Casa de Óbidos, Palma e Sabugal; seguidamente, o Arquivo da Casa de Soure, descendente de um dos filhos do mesmo D. Gil Eanes da Costa; por fim, o Arquivo da Casa dos armadores-mores, condes de Mesquitela, que descende simultaneamente de D. Duarte da Costa e de D. Gil Eanes da Costa, ambos filhos do fundador da linhagem, D. Álvaro da Costa.
Passamos de seguida a explicar como, na ausência actual desses arquivos (com excepção do primeiro, integrado num arquivo mais vasto), recorremos aos mais diversos fundos provenientes de instituições com as quais a família se relacionou, para obter um corpus documental representativo da produção documental dessas quatro gerações de membros da família Costa com Dom, constituindo assim uma série de arquivos virtuais. Tentámos igualmente perceber como esses arquivos contribuíram para a estruturação e afirmação da família e entender o uso que lhes foi dado pelas gerações que os produziram, acumularam e utilizaram.
No capítulo 3 fazemos, a partir do corpus documental obtido, complementado com outras fontes bibliográficas, a biografia possível de cada um dos diversos membros da família Costa que seleccionámos, acompanhando-a com a análise da sua produção arquivística.
Em conclusão
A nossa investigação centrou-se no estudo da produção documental de quatro gerações da família Costa, dita Costa com Dom, descendente do Álvaro da Costa, que no início do século XVI ascendeu na Corte manuelina, não só social, mas também economicamente, graças sobretudo à amizade e confiança que o rei nele depositava, recebendo de D. Manuel o título de Dom que legou à sua posteridade. Na ausência de arquivos de família chegados ao presente (com uma única excepção identificada) tivemos que recorrer à reconstituição daquilo que teriam sido, a partir de fundos de outras instituições públicas ou privadas que com os diversos membros da família de qualquer forma contactaram e também dos instrumentos de descrição que perduraram. E aqui residiu, desde logo, aquele que nos parece um primeiro grande ganho do nosso estudo - o estabelecimento e concretização de uma metodologia que permitisse lidar com este vazio documental directo. Em face dos resultados alcançados, parece-nos poder dizer que o método de reconstituição dos círculos de contactos institucionais e pessoais dos personagens históricos, como norte da pesquisa heurística, viu comprovadas as suas eficácia e relevância.
A um segundo nível, o corpus obtido, apesar de uma pálida imagem do que teriam sido na(s) época(s) os arquivos familiares dos personagens estudados, mostrou-se suficientemente coerente para podermos entender a importância que o arquivo detinha na transmissão, de geração em geração, de direitos e deveres, e como prova de posse de património. De facto, no caso do grupo familiar que estudámos, notam-se claramente duas tendências quanto à acumulação de património, que poderão ter tido relevância na constituição e conservação de arquivos.
Considerando o eixo que poderíamos classificar de transmissor de ofícios - ou seja Álvaro da Costa - Duarte - Álvaro/Duarte - Francisco/ Gonçalo, verifica-se uma tendência acentuada para a acumulação de património em tenças. Este ramo não instituiu nenhum morgado, nestas quatro gerações, e o património que transmitirá à descendência será, além da casa de família, o chamado Palácio da Porta da Oura em Lisboa, e de uma capitania no Brasil (Paraguaçu e Jaguaripe), numerosas tenças e o ofício de armador-mor, bem como a comenda de São Vicente da Beira que se manteve sempre neste ramo da família. Poderá esta base de riqueza ter levado a uma menor preocupação com a manutenção de um arquivo próprio, dado que os documentos originais se encontravam com facilidade no Arquivo da Coroa, com a qual estes servidores públicos tinham contacto quotidiano ou, em todo o caso, frequente? Embora seja preciso ter em conta factores como o desgaste natural do tempo, ou acidentes como o incêndio do palácio da família, parece-nos que aquela hipótese tem plausibilidade, e que será interessante verificá-la através de estudos sobre famílias afins.
Já o caso de Gil Eanes da Costa e dos ramos seus descendentes, é distinto. Tanto o próprio Gil Eanes, como três dos seus quatro filhos homens, instituíram morgados (o quarto filho herdou o morgado do pai) e investiram largamente em bens fundiários e meios de produção. Simultaneamente, tanto do arquivo de Gil Eanes, como do de seu filho João, nos chegaram inventários, se bem que tardios, que nos permitiram conhecer bastante mais produção de documentos do que a que sobreviveu em original, e que apontam para preocupações de conservação e recuperação documental dentro da esfera familiar. É nossa convicção que o tipo de base patrimonial deste ramo familiar obrigava a um muito maior cuidado numa conservação autónoma dos documentos de prova da posse dos bens, e seguramente obrigava à conservação dos documentos de gestão dos mesmos. Além disso, fica patente a importância dos morgadios como eixos estruturantes desses arquivos, corroborando hipóteses defendidas por outros estudos recentes e em curso sobre arquivos de família afins, como sendo os de Rita Sampaio da Nóvoa, Maria João Andrade e Sousa e Alice Gago.
Destacaríamos ainda o trabalho realizado quanto às pequenas biografias que pudemos fazer de cada um dos membros deste grupo familiar. Se é certo que são díspares entre si em termos de profundidade, foi realizado um total de quinze, o que nos surge como um importante contributo para a história social da nobreza no período, recorrendo a uma panóplia de arquivos; e de resto não seria possível realizar biografias com a mesma extensão para todos os membros do grupo familiar, dada a discrepância na documentação existente. Privilegiamos assim o fundador e os seus dois filhos, tentando, porém, oferecer estudos o mais informados possível sobre os restantes elementos masculinos da família, pelo menos.
Do mesmo modo, cremos que o apêndice documental que reúne toda a documentação alcançada a partir de fundos arquivísticos dispersos e, em vários casos, até agora raramente utilizados, ou mesmo totalmente desconhecidos, alguma da qual descrita em pormenor, enriquece a nossa tese e, sobretudo, poderá ser de grande utilidade para os futuros estudiosos das muitas temáticas a que eles podem dar lastro.
Uma última referência deve ser feita aos registos de autoridade e às descrições documentais realizadas no software AtoM, na instância Arquivística Histórica, disponível no site da FCSH, relativa aos trabalho académicos em Arquivística História realizados na instituição (http://www.arquivisticahistorica.fcsh.unl.pt/index.php/familia-costa ).
Tese de Doutoramento disponível para consulta em: https://run.unl.pt/handle/10362/65519
COMO CITAR ESTE ARTIGO
Referência electrónica:
LEME, Margarida - “Costas com Dom: Família e Arquivo (Séculos XV-XVII)”. Medievalista 27 (Janeiro - Junho 2020). [Em linha] [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/medievalista27/leme27-1
Data recepção do artigo / Received for publication: 2 de Maio de 2019