In memoriam: José Marques (1937-2021), Maria Filomena Barros (1958-2021), Helena Avelar (1964-2021)
Houve demasiadas mortes em dias assim. No último ano, em dois números sucessivos da Medievalista, demos notícia do desaparecimento de três historiadores europeus: Francis Rapp e Michel Parisse, em Julho de 2020, Peter Linehan, já em Janeiro deste ano, todos com obra notável e que marcaram, por razões diversas, diferentes gerações de investigadores. As perdas, infelizmente, não ficaram por aí. Nos últimos meses, a lista de falecimentos parecia não ter fim, levando historiadores em diferentes fases das suas vidas, uns mais conhecidos e consagrados, outros em plena maturidade intelectual. Dia após dia, como se em todos fosse preciso recordar que o historiador morreu, desapareceram muitos dos que dedicaram a vida a esclarecer os assuntos do passado. Nomes em demasia, como os de Francesco Espósito, de Luís Espinha da Silveira, de António Silva Pereira, de José Marques, de Maria Filomena Barros, de Francisco Contente Domingues e de Helena Avelar, ou de Pierre Guichard e de Pedro Laíns, estes dois já bem mais perto de nós.
Se todos são aqui lembrados e homenageados de forma singela, faz-se memória neste número da Medievalista de três desses investigadores recentemente falecidos. Dos que se formaram no país e se especializaram no estudo das realidades medievais portuguesas, deixando um legado importante que dá conta da crescente diversidade dos estudos sobre a Idade Média. Os nomes destes três historiadores - José Marques, Maria Filomena Barros e Helena Avelar - estão associados a algumas das áreas mais dinâmicas da pesquisa histórica, do estudo da Igreja e das instituições eclesiásticas, ao das minorias étnico-religiosas e da complexa relação destas com a maioria cristã e ao esclarecimento do papel das técnicas e do saber astrológico dentro da visão do mundo e da ciência medievais. Os seus trabalhos tiveram, de resto, o devido reconhecimento dentro e fora do país. De tudo isso dão testemunho os autores dos textos aqui publicados, que lhes prestam uma justa e sentida homenagem.
José Marques (1937-2021)
Corria o segundo semestre do ano letivo de 1981-82 quando, enquanto estudante da licenciatura em História da FLUP, conheci o Professor José Marques. Com ele os alunos do 2º ano iriam “fazer a cadeira” basilar de História de Portugal na Época Medieval, iniciada no semestre anterior pelo Professor Baquero Moreno, coadjuvado então pela Dra. Fernanda Santos. A matéria estava atrasadíssima, e o Professor deveria, num tempo record, e perante uma turma enorme numa sala pequena, completar o Programa inicialmente previsto. Não era possível; não foi possível, claro: chegámos apenas ao reinado de D. Fernando e à “crise de 1383-85”, já em cima dos exames, numa maratona de 4 horas de aula, que, creio, nenhum dos presentes na sala terá esquecido. Pensando nisso hoje, acho que o Professor fez um notável exercício de síntese histórica. No ano seguinte, foi a vez de ser sua aluna em Paleografia e Diplomática, e foi no âmbito desta disciplina que para sempre fiquei ligada ao Mestre. Apesar de estar nessa altura a presidir ao Conselho Diretivo da Faculdade, não dispensou continuar a ensinar, embora frequentemente deixasse os estudantes em sala de aula, com um documento em riste, quando da Direção o vinham chamar para atender um telefonema premente ou atender um caso urgente. Essas aulas de Paleografia e Diplomática eram, a todos os níveis, fascinantes, porque iam muito além do “ensino das letras”: instituições, personagens, pesos e medidas, costumes, tudo era abordado a propósito dos atos que se liam. E quando regressado de um Encontro da Comissão Internacional de Diplomática ou do Comité de Paleografia (dos quais viria a ser membro em 1986 e em 1989, respetivamente) o Professor mostrava-nos com entusiasmo os livros adquiridos no estrangeiro relativos a essas ciências e que então dificilmente chegavam a Portugal, indicando-nos as tendências de investigação nessas áreas. Para além das aulas, a faceta de docente emergia claramente aquando das visitas ao Arquivo. Cada peça era descrita simultaneamente com erudição e simplicidade, proporcionando a observação de pormenores que de outro modo passariam despercebidos. Creio que o fascínio com que olhei para esses monumentos do passado seria semelhante ao que vislumbro em alguns estudantes actuais, quando os acompanho em visitas de estudo. E é exatamente por essa razão que até 2019 (em 2020 já não foi possível pelas razões sanitárias de todos conhecidas) sempre pedi ao Mestre, já aposentado, naturalmente, para orientar as visitas do Mestrado em Estudos Medievais da FLUP, sempre que estas tinham lugar no “seu” Arquivo - o Arquivo Distrital de Braga que, entre todos os outros onde também investigou, era o seu local preferido e que conhecia como mais nenhum investigador. O entusiasmo com que falava, e o modo como explicava a importância dos diversos códices e documentos previamente selecionados (o Liber Fidei, o Missal de Mateus, um livro da coleção dos “Livros Findos”, o “Livro das Cadeias”, para além dos pergaminhos avulsos…) e dos arcebispos e outras figuras fundamentais para a compreensão dos espécimes que gentilmente eram disponibilizados para observação, continuaram a atrair a atenção dos grupos de estudantes que, nessas ocasiões, se tornavam também seus alunos, mostrando à saciedade que a aposentação não era mais do que uma formalidade, e que o espírito de Professor continuava bem presente.
Já há bastantes anos, e exatamente a propósito do historiador e medievalista José Marques1, escrevia o professor Luís Adão da Fonseca que “na Universidade - na sua docência e investigação -, a dimensão da convivência é muito importante”. Sendo certo que a investigação, seja no escritório pessoal ou no Arquivo, é sobretudo uma atividade individual, o resultado desse labor destina-se aos outros. Encarnando este gosto pela partilha da descoberta e dos conhecimentos, muitas vezes o vimos chegar à Faculdade com mais um trabalho que oferecia com um brilho de satisfação nos olhos, resultado de documentos que “encontrava” no ADB. A generosidade da partilha constante do saber era, aliás, uma das características mais marcantes do “nosso” Padre Marques, como carinhosamente todos os estudantes e a maioria dos Colegas na FLUP o tratavam, respeitando a sua condição de sacerdote, mas quase transformando esse “adjectivo” em nome próprio. Generosidade patente também na constante disponibilidade para quem o procurava, sempre interessado pelos trabalhos que os jovens investigadores estavam a desenvolver, e a quem sempre dava palavras de alento e sugestões de estudos ou documentos para ver. Mas a convivência ultrapassava as paredes da faculdade: recordo os momentos de descontração em que participava com alegria, acompanhando os Colegas (portugueses e estrangeiros) à volta de uma mesa, depois de dias de intenso trabalho em Congressos. Como sua Assistente de Paleografia e Diplomática, rapidamente aprendi que tão importante como a reunião realizada em Coimbra (com os restantes membros portugueses da CID) para levar a cabo a tradução dos termos do Vocabulaire Internationale de la Diplomatique2, era a paragem obrigatória na Bairrada. Essa refeição (o leitão…) foi a primeira de muitas outras, incontáveis. Acompanhados por um bom vinho verde, esses eram os momentos mais oportunos para debatermos ideias de trabalho, dúvidas, projetos, esperanças, enfim. E ainda recentemente, sentados numa mesa de um conhecido café em Braga, falámos dos caminhos da Diplomática em Portugal, dos documentos transcritos e a transcrever, das publicações que tinha em mente fazer. Assim ao longo de 34 anos, pelo menos, se cimentou uma amizade e confiança recíprocas, que, se se manifestavam na minha vida académica, foram certamente muito para além desta.
Apesar de aposentado em 2003, o Professor José Marques continuou a acompanhar o que se passava na Universidade. Com palavras de alento, sempre me encorajou a continuar a trabalhar (entenda-se, a investigar e a estudar), apesar da crescente carga burocrática que via cair sobre cada um de nós. Recusou-se a alinhar com algumas exigências recentes da produção científica, que considerava desnecessárias, pois defendia que competia à própria comunidade académica e científica aceitar ou não os trabalhos publicados. Mas aderiu com entusiasmo a ideias novas, proporcionadas pela aplicação das chamadas Humanidades Digitais, nomeadamente no que respeitava à ciência dos Diplomas. Não gostava de vários aspetos do caminho que lhe parecia que a Universidade estava a trilhar, mas nem por isso deixava de participar nas efemérides para as quais era convidado, regressando à sua “casa” sempre que a ocasião propiciava (quanto mais não fosse para deixar o seu último “trabalhito” na Biblioteca) e a direção da Faculdade o convidava.
Antes de chegar à Faculdade de Letras, o Professor José Marques tinha já percurso feito. Formado nos Seminários Arquidiocesanos de Braga, aí concluíra o Curso Teológico em 1961, tendo logo de seguida, e já como presbítero ordenado, começado a lecionar História, Ciências Naturais e Religião e Moral no curso de Humanidades. Foi esta experiência docente, ou melhor, a necessidade de mais completamente se formar para poder ensinar bem, que o levou a inscrever-se na Faculdade de Letras do Porto. Iniciou assim em 1969 os estudos conducentes à licenciatura em História, que viria a terminar em 1974, especializando-se depois (1976) na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, como bibliotecário-arquivista. Entretanto, havia sido contratado como monitor (em 1973), pelo que viveu já como membro da Faculdade os anos politicamente conturbados pós-revolução do 25 de Abril. Não admira, por isso, a sua participação nos debates acesos decorridos nas RGA’s da FLUP onde, com a firmeza que lhe era reconhecida, sempre defendeu os seus pontos de vista. Muitas vezes lhe ouvimos relatos desses momentos, que marcaram durante anos as relações na Faculdade. Esta participação ativa, e a luta por valores em que acreditava, acompanharam-no ao longo da sua vida. Muitas vezes o vimos tomar atitudes contra aquilo que considerava injustiças, combatendo adversários e defendendo os direitos, seus e dos outros. Escrevendo cartas, enfrentando diretamente os seus opositores: a frontalidade era uma característica que todos sempre lhe reconheceram.
Como era comum na época, já como assistente foi assegurando a docência de várias disciplinas, ao mesmo tempo que preparava o seu Doutoramento, que veio a terminar em 1982, com a apresentação da tese "A Arquidiocese de Braga no século XV"3 e do estudo “A Administração Municipal de Vila do Conde em 1466”4 como trabalho complementar. Eleito para Presidente do Conselho Diretivo da FLUP nesse mesmo ano de 1982, veio a tomar posse no início do ano seguinte, tendo desempenhado essas funções com total dedicação. Entre todas as realizações, merece destaque, pela sua importância (na época, mas também atualmente) o retomar da publicação da Revista da Faculdade de Letras, nas séries de História, Filosofia e Línguas e Literaturas Modernas, que estava suspensa desde 1974. Neste contexto, não admira que, tendo terminado as suas funções na Direção, o Professor tivesse ficado encarregado da coordenação da série de História, tarefa que desempenhou até ao último número da 2ª série, em 1998. Uma outra iniciativa fica também associada à passagem pelo Conselho Diretivo da FLUP: falamos do desencadear do processo conducente à criação do Curso de Ciências Documentais, que veio mais tarde a coordenar. De facto, a frequência do Curso de Bibliotecário-Arquivista na Faculdade de Letras de Coimbra a que nos referimos, tinha determinado a sua ligação às ciências dos Arquivos, e justificava plenamente a participação do Professor José Marques na transformação da referida pós-graduação em licenciatura de Ciência da Informação, de cujo corpo docente também fez parte até à sua aposentação.
Com uma vida académica recheada de Congressos e publicação de investigações realizadas, facilmente se compreende que José Marques tenha sido convidado para participar nas mais variadas instituições científicas e culturais: basta lembrar que foi membro de Academias (Academia Portuguesa de História e Real Academia de la Historia de Madrid), de Institutos (Instituto Cultural Galaico-Minhoto e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), de Sociedades (Sociedade Científica da Universidade Católica, Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais, Sociedade Martins Sarmento), da Comission Internationale de Diplomatique e do Comité International de Paléographie Latine. Em eventos promovidos por todas, o Professor José Marques apresentou comunicações originais feitas de propósito para a ocasião, participando de forma ativa nos debates e nas conversas que as sessões proporcionavam. Além destes, esteve presente em incontáveis Congressos e Colóquios, em Portugal e no estrangeiro. Numa época em que as viagens, sobretudo além-fronteiras, não eram tão “fáceis” como nos nossos dias, e em que faltavam apoios para as realizar, deve ser salientado o esforço pessoal que cada uma das participações fora do nosso país implicava. Mas a compensação era enorme: para lá dos aspetos científicos, muitos momentos inesquecíveis, alguns deles hilariantes mesmo, tornavam leves os dias cansativos e punham à vista o sentido de humor do Professor.
A obra historiográfica do Professor José Marques inclui mais de 300 títulos, entre os quais se encontram pelo menos 27 monografias (de dimensão variada), artigos, notícias de eventos e recensões ou notas de leitura de obras de tipologia diversa. Não se incluem neste cômputo os mais de 100 artigos publicados nos jornais Diário do Minho e A Voz de Melgaço. Com uma vida académica preenchida, para já não falar dos outros compromissos que, como se viu, foi assumindo ao longo dos anos, não admira que o ritmo da produção historiográfica tenha conhecido flutuações. De facto, a direção da faculdade, a que já me referi, bem como a organização de congressos (de que são exemplos o Congresso sobre “Bartolomeu Dias e a sua época” e o Colloque Technique da C.I.D. sobre “Typologie des Actes Royaux à la fin des XIIIe et XIVe siècles”, bem como a colaboração na organização do Congresso Comemorativo do IX Centenário da Sé de Braga) e, sobretudo as tarefas inerentes à publicação das respetivas Atas justificam que nesses anos o número de trabalhos dados à estampa tivesse conhecido uma diminuição sensível.
Não era apenas a Idade Média que interessava o Professor. De facto, abordou cronologias amplas (de épocas bem remotas até à atualidade), à medida das solicitações que lhe iam sendo feitas, mas sempre baseado em documentos que, nas suas incursões no ADB ou em outros locais, vira, registara, copiara. Geograficamente, foi essencialmente à “sua” diocese de Braga que se dedicou. É sobre este território e as suas instituições que assenta a maioria da obra historiográfica. Muito cedo se apercebeu da importância da interpretação cartográfica, recorrendo aos serviços de infografia da FLUP (logo após a sua criação), incluindo nos seus estudos, sempre que considerou pertinente, mapas elaborados a partir de fontes históricas. Se cartografássemos agora os lugares sobre os quais os seus trabalhos incidem, ficariam evidentes outros espaços (que não a diocese bracarense), embora pontualmente: as Beiras (Trancoso e Coimbra), a Estremadura (Setúbal), o Alentejo (aqui incluindo Olivença, para além de Figueira) e o Algarve (Silves). No estrangeiro, a Galiza, a Andaluzia, os reinos de Leão e Castela surgem como territórios que importava conhecer porque de algum modo, em determinado momento, foram o palco onde clérigos bracarenses se movimentaram. Mas os seus interesses iam muito para além da história das instituições eclesiásticas em geral, e da diocese de Braga em particular, alargando-se ao estudo do povoamento, dos concelhos e municipalismo, das questões de fronteira, que o interessavam de sobremaneira, talvez por ser ele próprio um homem da raia.
Sempre, em todos os trabalhos, transparece a importância do documento. Muitos estudos apresentam no final um apêndice documental, com atos de diferentes tipologias e cronologias, imputados como fundamentais para a investigação realizada e para que o leitor pudesse ele próprio ler o que os testemunhos da época transmitem. Mas para além destas, transcreveu o Roteiro da Viagem de Vasco da Gama, já nos anos 90 do século passado, bem como vários livros de foral e outra documentação relativa a diversas localidades, para não falar do imenso conjunto de atas de vereação do século XVI (Braga) ou do século XVIII e XIX (Melgaço). Todas somadas, se compiladas num único volume, as suas transcrições dariam certamente centenas e centenas de páginas. A morosidade da edição documental explica que dois dos volumes mais importantes, nos quais trabalhou muitos anos, tenham surgido apenas após a sua aposentação: o cartulário de Fiães e as Confirmações de Tui. No que respeita ao primeiro códice, durante muitos anos dedicou-se à sua transcrição e análise, consciente de que a sua publicação exigia uma revisão cuidada e um estudo aprofundado. As confirmações de Tui correspondem igualmente a um projeto antigo que só recentemente pôde ser retomado. Também a revisão da publicação do Liber Fidei, cumprindo a promessa feita ao Professor Avelino de Jesus da Costa, a que acrescentou os tão necessários índices, foi concluída durante a aposentação.
Maioritariamente, o Professor José Marques publicou trabalhos individuais. Contudo, quando as circunstâncias assim o exigiam (como acontece com frequência nos Colóquios e Congressos da CID, dada a exiguidade de tempo para participação dos membros dos vários países), partilhava a autoria dos estudos com os Colegas. Eu própria tive a honra de com ele subscrever vários estudos, o último dos quais apresentado na Alemanha em 2018, e talvez o primeiro do seu repertório escrito em língua inglesa, e que já não chegou a ver publicado.
Consciente de que muitos dos seus trabalhos não eram de fácil acesso à comunidade científica portuguesa, ou mesmo a um público mais vasto a que procurava igualmente chegar, vários dos seus estudos foram dados à estampa por duas (ou mais) vezes. Sabendo que os textos que apresentara em Congressos e Colóquios no estrangeiro seriam publicados em Atas de que poucos Colegas teriam conhecimento, o Professor José Marques procurava difundi-los em português, nomeadamente na Revista da Faculdade de Letras - História, ou mesmo na Bracara Augusta, pois a maioria desses trabalhos tinham como pano de fundo a documentação de Braga (catedral, cidade e/ou diocese). Potenciava-se assim o alcance das investigações realizadas: os textos escritos em francês, conhecidos pelos especialistas estrangeiros a quem os apresentara em primeira mão (ex: “La Chancellerie et la Diplomatique Archiepiscopales de Braga à la fin du Moyen Âge”5 e “L'influence des bulles papales sur les actes portugais au Moyen Âge”6 ), chegavam assim ao “mundo” português, a quem igualmente interessavam. Nos últimos anos, e correspondendo a vários pedidos, decidiu voltar a publicar alguns estudos que, não obstante terem passado alguns anos sobre a sua edição primeira, conservavam o mesmo interesse que tinham na época em que foram elaborados.
A preocupação de divulgação do conhecimento histórico não se confinava à faculdade ou, mais latamente, ao mundo académico. Prova disso são mais de 100 artigos publicados nos jornais a que acima fiz referência, versando sobre assuntos tão diversos como a celebração de centenários de figuras ímpares (ex.: “D. Frei Bartolomeu dos Mártires. No IV Centenário da sua morte”, de 1991) ou mesmo documentos (ex.: “V centenário do ‘Missal Bracarense’ de 1498” de 1998), a evocação de vultos da cultura local , regional ou mesmo nacional, mas igualmente chamando a atenção para curiosidades históricas e imprecisões que a tradição cristalizara (ex.: “Fiães: a filha do senhor abade?”, de 1990 ou “A rua da Cónega”, de 1991) , para a necessidade de renovação ou restauro de património construído (ex.: “Salvemos a Capela do Santo Cristo, em Melgaço”, de 1979), ou mesmo para a importância dos arquivos, nomeadamente os paroquiais (ex: “Atenção aos Arquivos paroquiais”, de 1986). Sobretudo nos últimos anos, a sua colaboração tornou-se mais assídua, e talvez por isso mesmo, dedicada a temáticas e cronologias muito mais diversificadas.
Por tudo o que acabámos de dizer, e também pelo muito que não conseguimos agora transmitir, José Marques é uma figura incontornável da historiografia portuguesa da segunda metade do século XX e inícios do milénio. Qualquer “aprendiz de historiador”, mal inicia o seu caminho de investigação, se apercebe que é impossível estudar o final da Idade Média sem ter em conta o grosso volume “A Arquidiocese de Braga no século XV”. Essa foi a obra magna, sem dúvida. Mas em muitos outros aspetos fica uma marca indelével. Qualquer que seja o campo de investigação, e sabendo que a história da Igreja e das Instituições Eclesiásticas se entrecruza com a política, com a sociedade, com a cultura, é impossível ao estudioso da Idade Média portuguesa não atentar nos estudos de José Marques. Para os que não tiveram o privilégio de com ele conviver, a sua obra científica é, sem dúvida, uma forma de conhecer o homem, o sacerdote, o especialista. Para mim, é uma das formas de o manter vivo.
Cristina Cunha
Maria Filomena Barros (1958-2021)
Las reacciones ante su pérdida testimonian su valía, pues han sido inmediatas, dolientes, expresivas: na segunda-feira, 8 de marzo de 2021, falleció Maria Filomena Lopes de Barros, historiadora admirable y extraordinaria persona. El próximo 23 de mayo habría cumplido 63 años, en plenitud vital y profesional.
La inesperada noticia de su muerte también me afligió profundamente, por todo cuanto con ella perdemos los círculos académicos, investigadores, familiares y tantos amigos, entre los cuales me encuentro desde hace años, incluso desde antes de ser convocada a formar parte de la Comisión que, el 22 de octubre de 2004, examinó en la Universidade de Évora su Tesis Doctoral: Tempos e espaços de Mouros. A minoria muçulmana no Reino Português (séculos XII a XV), dirigida por António Henrique de Oliveira Marques y Adel Sidarus.
El texto de la Tesis puede ahora leerse en el ejemplar electrónico que la Universidad de Évora ha subido a la red7, como también a través del texto impreso en 2007 por la Fundação Calouste Gulbenkian, institución de destacadísima referencia que puso el broche de oro en aquellos inicios de una muy prometedora estudiosa. Pasé aquel verano del 2004 leyendo las casi 800 páginas de la Tesis, y diciendo a todos aquellos con quienes hablaba: “es una investigación espléndida, nueva, profunda; me enseña mucho”, y en esta estimación, incluso asombrada: ¿cómo ha surgido?, coincidimos todos los que intervinimos en el acto de su examen público, donde, además del fervor de sus numerosísimos amigos y colegas presentes, recuerdo la extraordinaria capacidad pensante y expositiva de la doctoranda, no sólo en la argumentación escrita de su trabajo sino, precisamente, en la directa oralidad de sus respuestas. Creo que esta virtud comunicativa fue siempre una de sus características, que aparecía en relación con la profunda sinceridad de sus convicciones, palabras y actos, comprobada también por la vivacidad de su risa.
Debo recalcar las dos vertientes, medievalismo y arabismo, coincidentes en la Dra. Barros ya desde su Tesis hasta ahora, ambas vertientes estuvieron asimismo representadas por cada uno de sus dos directores, y por los miembros de Tribunal. Yo no conocía personalmente, hasta ese día, al magistral Oliveira Marques, que en su admirativa tasación de la doctoranda y de su obra, supo captar, y con clarividencia prever, cuanto aquella Tesis significaba y abría como adecuada y sólida vía indagatoria sobre la historia política, social, económica y cultural de Portugal, desde la perspectiva importantísima de lo que englobaba su entidad, a través de la comprobación y recursos de tales contenidos, puestos de manifiesto, precisamente, en sus referencias y estrategias identitarias en relación con aquel Otro, denominados “Mouros” o “minoría musulmana”, con unos espacios y tiempos “dos mouros que se contrapõe a um tempo alternativo dos Godos e a uma construção da memória escrita da Reconquista”, como indicaba Filomena Barros desde el título y la introducción de su Tesis.
En varias ocasiones (en eventos estudiosos que registra mi CV: 2001, 2004, 2008, 2009, 2010, 2011, 2014, 2017), nos hemos encontrado, en Lisboa, Évora, y Madrid, y siempre he apreciado su carácter afable y generoso, su humanidad incluyente, su capacidad para suscitar concordias, que fructificaban también en el plano profesional, propiciando acciones compartidas, algunas de tan gran calado y heroica dedicación como Hamsa - Revista de Estudos Judaicos e Islâmicos, que Maria Filomena Lopes de Barros coeditaba con José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, cuyo volumen nº 68 apareció hace un año, y cuyo planteamiento tiene el mérito de la correlación al tratar sobre judíos y musulmanes. Es para mí un honor que me incluyera en su amplio e internacional Conselho Científico, desde su primer número en 2014, que lleva una Nota Editorial9 por ambos editores, en que marcan, con su característica precisión y novedad expresiva, hasta qué punto la investigación requiere otras hechuras y otras ambiciones de mayor plasticidad: “The evolution of the Social Sciences and scientific dynamics in general means however that another format and other ambitions of greater plasticity are required, such as this project of studying two social groups and two minorities that populated the same spaces and which also both followed Diaspora paths that are still visible today”.
Su progresismo estaba también en su léxico, no sólo en los conceptos y métodos. Existen manifestaciones positivas sobre su dedicación docente, como profesora en el Departamento de Historia de la Universidad de Évora, durante una veintena de años, y desde luego es reconocida la calidad e intensidad de su actividad investigadora, poniendo también su siempre animoso esfuerzo en empresas colectivas, como el Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS), y el sobresaliente proyecto de investigación internacional RESISTANCE. Rebellion and Resistance in the Iberian Empires, 16th-19th Centuries, coordinado por la Universidad de Évora, con financiación europeo, y cuyo objetivo final es “to produce a reinterpretation of the universe of ‘the dominated’”, lo cual encaja perfectamente con los conocimientos, los intereses analíticos y claro criterio social que Filomena Barros ha mostrado desde sus inicios, con varias aportaciones al ámbito de tal proyecto de investigación, como su reciente publicación (de 2020): “Cumprir Marrocos em Portugal: a comunidade mourisca de Setúbal no século XVI” 10.
Como ella, estudiosa y persona, valía de verdad, sabía valorar a los demás, y creaba en su ambiente un compañerismo del que disfruté en varias ocasiones, como en un retorno a Lisboa desde Évora en un gran ‘todo terreno’, en que nos comprimíamos más de las plazas permitidas. Aquello era compartir hermandad y ciencia. Creo que esto fue durante un trimestre del año 2009, en una estancia investigadora mía en la Universidad de Évora, que la Profesora Barros supervisó, ayudándome tanto a consultar manuscritos árabes en Lisboa y en la interesante colección de Frei João de Sousa, en Évora11, e informando luego puntualmente sobre la obligada Memoria que yo debía presentar en Madrid.
El paso de gigante que dio Maria Filomena Lopes de Barros sobre el estudio de las minorías musulmanas y algo las judías, y en general implicando al resurgir de “los estudios árabes en Portugal” es significativo, pues los plantó de lleno en los espacios de las Ciencias Sociales y de la Antropología; ella era consciente de esto, pues trazó el meollo de este arabismo en su artículo: “From the history of Muslims to Muslims in History: Some critical notes on “Arab-Islamic Studies” in Portugal”12, situando en 1974 los inicios de la “mudança de paradigma ainda não totalmente conseguida”, decía la autora en 2014, sabiendo cuanto se había avanzado y consciente de cuanto su propio impulso estaba aportando. Espero tener próxima ocasión de ampliar todo esto, con la atención que sus publicaciones merecen.
Triste primavera ésta de 2021, en la que hemos perdido a Maria Filomena Lopes de Barros (1958-7 marzo 2021) y un mes después a otro renovador, Pierre Guichard (1939-6 abril 2021). Nos quedan sus recuerdos luminosos y sus respectivos magisterios, que seguiremos queriendo y seguirán iluminándonos.
María Jesús Viguera Molins
Helena Avelar (1964-2021)
A Helena Avelar de Carvalho13, insigne investigadora, que desbravou de forma pioneira caminhos menos conhecidos da História medieval, deixou-nos a 9 de Março de 2021. Reunimos aqui, organizando-os por ordem alfabética, depoimentos de colegas e amigos, que a acompanharam desde que se juntou à FCSH para retomar os estudos, em 2004, no que foi o início de uma brilhante carreira14. Agradecemos a todos os que quiseram evocar a memória da Helena e deixar aqui um testemunho do que foi conhecê-la e com ela trabalhar, aprender e… rir, sorrir. O sorriso da Helena não se apagará das nossas memórias e a sua obra de historiadora continuará a produzir frutos de conhecimento.
Maria de Lurdes Rosa
O tanto que ficou por fazer e viver com a Helena
Não deixo de me surpreender com a fragilidade da vida humana. Lembro-me da Helena num dia de sol há poucos meses atrás, em setembro de 2020, num pátio de Ciências a fazer-me uma entrevista, radiante, cheia de vida e de ideias. Lembro-me de outro encontro à porta da Biblioteca Nacional de Portugal com o Luís em que tinha de ir para casa porque lhe doía a cabeça. O que geralmente não é sinal de nada. E de um minuto para o outro a luz apaga-se. É verdadeiramente assustador como cessa definitiva e irreversivelmente a vida de um ser humano. Gera, porque é real, um enorme sentimento de impotência.
O que podemos fazer é não deixar apagar a sua memória, é inscrevê-la na história. A Helena tinha tido um percurso individual fora do habitual e a sua história só há relativamente pouco tempo tinha-se cruzado com a minha. Uniu-nos uma empatia imediata, mas também a vontade e energia de delinear e concretizar projetos. Partilhávamos algo mais: a paixão pelo Warburg. Eu tinha sido PhD ocasional student em 2006 e a Helena acabou por ter sido a primeira portuguesa a doutorar-se no Warburg Institute/School of Advanced Studies/University of London, em 2018. E só quem teve a experiência de estudar no Warburg pode antever o universo cultural e científico em que as suas ideias germinavam. Para além disso, na Helena destacava-se um espírito empreendedor. Recém-chegada do estrangeiro, num curto espaço de tempo, estabeleceu de imediato dois protocolos de colaboração entre o Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT) e institutos de universidades estrangeiras, um da Universidade de Erlangen-Nuremberg, e outro, o Warburg Institute. Não só por isto, mas também, o CIUHCT deve-lhe imenso. Neste âmbito, tínhamos grandes planos de organizar um mega congresso numa parceria entre o CIUHCT e o Warburg para o qual já tínhamos título - Art and Science in Portuguese Renaissance - e lista de convidados. A pandemia estava a retardar os preparativos por não se saber quando este poderia ser organizado presencialmente. Agora, cumpre-nos concretizá-lo em sua honra e homenagem.
Ana Duarte Rodrigues
Memoir for Helena Avelar
Helena Avelar was expecting the first proofs of her book, An Astrologer at Work in Late Medieval France: The Notebooks of S. Belle, when she died. She had already seen and approved of the cover. This book, of nearly 450 pages, represents the product of the research in astrology in history in which she had been engaged for her MA dissertation (Vir Sapiens Dominabitur Astris. Astrological Knowledge and Practices in the Portuguese Medieval Court: king João I to King Afonso V)) and her PhD thesis (The Making of an Astrologer in Fifteenth-century France. The Notebooks of S. Belle: Lisbon, MS 1711 and Paris, NAL 398). But the book also shows how much more she could have done, had she lived longer. By examining the manuscripts in which S. Belle collected horoscopes (both his predecessors’ and those that he had drawn up himself), important passages from astrological writings (especially those of the early ninth-century Persian-Arabic astrologer, Māshā’allah), and wrote an almanac detailing the movements of the planets between 1468 and 1480, she was able to get inside the mind of a professional astrologer, and work out what conclusions he drew from the evidence of the movements of the heavens. Belle was deeply concerned about his clients, their marriages and careers, their illnesses, and their life expectancy, as well as their states of happiness or sadness. Helena clearly identified with her astrology in her concern about people - and also animals. Her love and caring attitude towards any of God’s creatures was heart-warming. Her academic work and her personal life went hand in hand. She sought to understand the attitudes of people who used the framework of astrology to counsel and give advice in the past, just as she was intent on encouraging and promoting the well-being of her friends and colleagues in the present.
Charles Burnett
À memória da excelência humana e profissional da Helena
É com profunda tristeza que deixo estas palavras, em jeito de homenagem, à Helena Avelar com a qual tive a sorte e o privilégio de me cruzar.
Trabalho há mais de 30 anos na Biblioteca da Ajuda e, ao longo destes anos, foram muitos os investigadores com os quais me cruzei mas só com um punhado desenvolvi uma espécie de amizade profissional. Foi esse o caso da Helena e daí a dificuldade, se assim se pode chamar, de como iniciar estas palavras…, pela alegria, simpatia, sensibilidade, generosidade, despretensão, profissionalismo?
Fico, agora, com a terrível e ingrata sensação de nunca lhe ter agradecido o suficiente mas espero que tenha sido claro para a Helena a dívida de gratidão que mantenho para com ela a nível profissional, pela forma dedicada e rigorosa com que, através das suas investigações, sempre divulgou o acervo da BA, sem nunca esquecer não só a instituição, como as pessoas que dela fazem parte e, a nível pessoal, pelo muito de seu que deu, pela generosidade, partilha e a amabilidade invulgar com que, a todos sem excepção, mimou nesta Biblioteca.
É uma perda grande pelo muito que ainda haveria a fazer, e que a Helena queria fazer. No entanto, uma vez que eu não consigo desassociar a Helena do Luís, o seu trabalho vai, certamente, continuar a refletir-se no trabalho deste. Fisicamente, e só aí, não teremos a Helena que, para sempre, perdurará na memória e reviverá pelo trabalho que nos deixou.
Cristina Pinto Basto
A minha lembrança da Helena Avelar
Quem conhecia a Helena Avelar pela primeira vez ficava de imediato impressionado com três coisas: a sua elegância, a sua inteligência, e a sua bondade. Só mais tarde é que a convivência com ela tornava visível um outro traço do seu carácter, mais difícil de descortinar por detrás de uma amabilidade desconcertante: a Helena tinha uma vontade fortíssima e uma determinação que não vacilava diante de nenhum obstáculo - para a Helena nada era impossível.
A Helena entrou de rompante no mundo da história da ciência devido não apenas à sua formação em história medieval, mas sobretudo aos seus excepcionais conhecimentos de história da astrologia. Chegou como uma mulher madura, que não tinha tempo a perder nem paciência para salamaleques académicos. Sabia o que queria, e tinha pressa. A Helena era muito consciente de que chegava como a pessoa certa no momento certo. Depois de décadas de silêncio, incompreensão, ou até mesmo desprezo, o estudo da astrologia como um fenómeno de enorme incidência cultural e científica nas sociedades europeias atravessava um momento de grande transformação. Trabalhando a partir do conhecimento detalhado e enciclopédico das técnicas e tradições da astrologia antiga, um pequeno grupo de especialistas internacionais renovara esses estudos, e em muito pouco tempo a Helena, com os seus conhecimentos incomparáveis, havia ganho o respeito de todos. Muitos artigos e comunicações, mas acima de tudo o seu livro An Astrologer at Work in Late Medieval France, que vai sair muito em breve na prestigiada série «Time, Astronomy, and Calendars: Texts and Studies», da editora Brill, são a confirmação da importância do seu contributo.
A Helena adorava pessoas. O entusiasmo e as ajudas concretas com que incentivou tantos estudantes e tantos colegas são impossíveis de contabilizar. Foi através dela que conheci muita gente - mas sobretudo que conheci o Luís, seu parceiro de investigações e parceiro da vida.
A morte da Helena é uma perda irreparável para os estudos em que se distinguira. Eu perdi uma colega que muito admirei e uma amiga que espalhava alegria e entusiasmo, de quem recebi sempre, com enorme delicadeza, conselhos acertados e palavras sábias. Vai fazer-me muita falta; vai fazer-nos muita falta a todos.
Henrique Leitão
Para a Helena
Conheci a Helena Avelar em contexto académico, no Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa, investigadora entusiasta, colega sempre pronta a ajudar e sobretudo a estimular o trabalho científico e divulgação do saber através de encontros e seminários de que destaco “Imagens Medievais: Natureza, Espiritualidade, Arte e Ciência” (Escola de Verão FCSH 2012) sessão: Representações do Cosmos e da Natureza. Na Biblioteca do Palácio da Ajuda onde, com o apoio da Doutora Cristina Pinto Basto e juntamente com o Luís Ribeiro, companheiro de vida e de trabalho da Helena, pudemos com outro olhar observar, entre outros manuscritos, o Régime du corps de Aldobrandino de Siena e a Fisionomia de Rolando de Lisboa à luz dos novos interesses que os dois trouxeram aos Estudos Medievais. Foram estes preciosos manuscritos pelos dois investigadores redescobertos e valorizados entre a comunidade científica nacional e internacional. O contributo da Helena Avelar do ponto de vista teórico e metodológico foi, pois, inovador, chamando a atenção para a importância da interdisciplinaridade entre a História, a História da Arte e a Ciência e trazendo para o âmbito dos Estudos Medievais a Astrologia, uma disciplina muitas vezes esquecida entre os medievalistas. Um dos encontros que organizou denominado “Harmonia” (Harmonia na Idade Média: História da Ciência, Arte, Cultura e Sociedade) ajuda a definir a Helena Avelar, foi essa harmonia que orientou a sua vida com uma coerência que muitos poucos conseguem. Conjugou Arte e Ciência e Homem e Natureza sempre com os astros como pano de fundo. Uma vida plena de generosidade que levou a que rapidamente se ultrapassassem as relações académicas para uma amizade que se ia construindo à medida que se partilhavam interesses, particularmente o amor pelos animais e pela natureza.
Maria Adelaide Miranda
Uma aluna singular
Conheci-a em 2009, quando comecei a dar aulas no Mestrado da NOVA FCSH. A Helena era o tipo de pessoa que não passava despercebida numa sala, pois a sua forma de estar era de tal forma comprometida com o que estava a fazer que era impossível não notar a sua presença. Não suportava com facilidade quem estava ali por tédio ou à falta de melhores coisas para fazer e “comprava” brigas com colegas menos empenhados com alguma frequência, o que apenas acrescentava a “piada” que ela tinha.
Sempre com a cabeça a trabalhar, o ouvido atento e a argumentação fácil, era inteligente, curiosa e atrevida nos seus interesses de investigação, sabia porque estudava e o que queria do estudo. Adorava aprender e fazia-o com a paixão e aparente leveza com que fazia todas as coisas que amava. Entusiasta por natureza, emanava aquela boa vibração das pessoas que fazem o seu caminho sem querer saber de mesquinhezes que se possam atravessar no seu caminho. A Helena estava sempre, toda, em todas as causas em que se envolvia, quer fosse a aprendizagem de uma língua nova, a astrologia, a tese de doutoramento, a sua relação com o Luís, o resgate de um burro escanzelado, o realojamento de um pássaro ferido ou o auxílio ao seu semelhante. Nos primeiros tempos em que eu fui secretária do IEM, nos anos 2011-2013, co-liderou um grupo de jovens investigadores que dinamizaram reuniões periódicas e colaborou de perto comigo na tarefa de fazermos os primeiros materiais de divulgação para um renovado IEM. Estava sempre a procurar reinventar novas formas de trabalhar em conjunto, mas desiludia-a o facto de nem sempre se conseguir implementar as mudanças à velocidade que ela entendia como ideal. Tínhamos, entretanto, desenvolvido uma relação de amizade que só se aprofundou, no respeito mútuo que tínhamos uma pela outra e no cuidado que ela dedicava a todas as criaturas que respeitava. Pude acompanhar a sua ida para Inglaterra e vê-la crescer e abrir as asas sob o ponto de vista académico, uma evolução que se reflete nos trabalhos que infelizmente terão de ser publicados postumamente. Jovem de espírito e de aparência, partiu cedo demais, deixando em todos nós uma sensação de orfandade que será muito difícil de apagar.
Gosto de a imaginar no meio das suas estrelas, a organizar as nuvens e tentar persuadir os elementos a serem mais clementes e gentis para com aqueles a quem ela tanto amou, ao mesmo tempo que vai descobrindo segredos que a sua dimensão humana lhe ocultava e confirmando intuições que o seu estudo lhe desvendava. Aquele café pós-pandémico que tínhamos combinado, terá de esperar um pouco mais, agora...
Maria João Branco
As estrelas deram-nos uma estrela
Ter a Helena como aluna e, depois, amiga e colega, foi uma alegria e uma aprendizagem - de História, e de vida. Conhecia-a em Setembro de 2004, enquanto docente de Metodologia da História, a primeira disciplina em que foi minha aluna. A Helena estava a iniciar a licenciatura, com grande entusiasmo por retomar os estudos. Penso que a considerei, de início, “mais uma” daqueles alunos “mais velhos”, que no meu caso têm sido sempre um acréscimo de valor à sala de aula, pela importância que dão à aprendizagem e à partilha de conhecimento. Mas a Helena não era “mais uma”, nunca foi… distinguiu-se desde o início pela sua personalidade viva e interrogativa, sempre gentil mas também crítica; era de uma tocante ingenuidade, por vezes, mas também experiente e ponderada. Fizemos logo “clique”, embora ela me intimidasse um pouco, com a sua espontaneidade - e com os ralhetes (risonhos) que pregava a colegas mais faladores e irrequietos. Estes, até lhe agradecia, afinal, e ela dizia-me que eu tinha que me impor mais! Ficámos amigas, afinal erámos quase da mesma idade, e partilhávamos a mesma paixão pela Idade Média, mesmo enquanto território largamente imaginado (mais tarde descobri que isso não tinha grande mal, pois partilhávamos uma outra paixão: pelo poder da imaginação…).
Foi minha aluna ainda por mais dois semestres, na licenciatura, e tal possibilitou cimentar conhecimentos e amizade. Quando, um ano e meio depois, me disse que queria ir para o Mestrado de Medieval, fiquei muito contente. Nem sempre acho boa ideia que os alunos escolham tal área, pois é difícil e exige muita disciplina, contrária aos impulsos líricos que motivam boa parte dos que se inscrevem. Mas tinha toda a certeza que para a Helena seria “um passeio”! Estávamos na segunda edição do Mestrado “pós Bolonha”, e eu ensaiava tipos e temas de lecionação novos, que exigiam bastante de mim e dos alunos. Nem todos reagiam bem ... A Helena aderiu desde o princípio e, com o seu militantismo de “boas causas”, defendia a importância de ler textos teóricos, discutir a razão de ser da “História medieval”, colocar em causa “as narrativas”. E ralhava com quem não gostava de novidades ... Guardo ainda trabalhos dela, que me trazem imediatamente à memória discussões acesas e profícuas.
Tive uma grande alegria quando me veio dizer que queria que eu fosse sua orientadora de tese; logo transformada em pânico (controlado, penso) quando me informou sobre o tema: a astrologia no Portugal medieval! Na altura era eu quase totalmente ignorante sobre o assunto, e disse-lhe, mas ela insistiu … fiz uma cara séria, tipo “medievalista encartada”, e perguntei-lhe: “mas há fontes?!” Ela até se riu! Foi o começo de um caminho a duas, em que quem aprendeu mais fui eu. A partir de certa altura, com a presença gentil e calma do Luís, um perfeito cavalheiro e outro grande investigador.
A Helena, como de costume, tinha o plano todo gizado na sua cabecinha ... conhecia bem as fontes, reuniu bibliografia, disse-me que ia escrever em Inglês (pioneiro, na altura), e propôs um coorientador especialista na matéria. Era tudo a “100 à hora” com ela, mas sempre no bom sentido, e com uma alegria e convicção tão profundas, que era impossível não aderir… E correu da melhor maneira: tese feita no prazo, com enorme qualidade, bem escrita, interessante. E para mim, foi uma constante aprendizagem, a par da simpatia pessoal, tomando por vezes conta da minha filha pequena, enquanto eu lia os seus trabalhos ... mais tarde, haveria de aconselhar-me a ter paciência com uma pré-adolescente com todas as características da idade. Este era um dos traços principais do feitio da Helena, que aplicava tanto às relações humanas quanto à investigação: preocupar-se, empenhar-se, procurar soluções positivas.
Nos anos seguintes, assisti ao desenvolvimento do que se esperava - uma cada vez maior autonomia de investigação, em temas, ambientes, orientadores e colegas. Sempre com toda a qualidade, convicção e capacidade de trabalho. O doutoramento no Warburg foi mais um exemplo de tal, assim como o restante percurso académico, que outros textos deste in memoriam evocam de forma muito clara.
Não tenho qualquer dúvida em afirmar que a Helena foi uma historiadora e uma investigadora de primeira apanha, uma pioneira em áreas pouco e mal estudadas na historiografia portuguesa, uma intrépida desbravadora de caminhos. Trouxe a astrologia medieval “para cima da mesa” da ciência histórica, deu a conhecer documentos novos, difundiu-os dentro e fora da academia. Era alguém que construía o seu próprio destino. Para mim, o que fica, é o sorriso, a luz que irradiava da Helena ... nos momentos em que, na Torre do Tombo, me mostrava manuscritos de astrologia e tentava que eu percebesse - e, vendo bem que eu percebia pouco, explicando-me com a maior paciência o que ali estava; nas risadas que dava quando me dizia que sabia que eu sempre a tinha achado a “maluquinha da Astronomia”; nos momentos menos felizes que partilhámos, face a situações académicas que nos entristeceram a ambas - mas que nunca nos desviaram dos nossos caminhos e de uma intenção de agir bem, conforme as nossas consciências. Nessas ocasiões, mais uma vez admirei a sua coragem e retidão, que me consolaram e serviram de exemplo.
Sinto uma grande nostalgia ao escrever estes parágrafos, porque me vem constantemente à memória uma das alunas mais marcantes que tive, e uma amiga de quem gostava muito, e muito admirava. Consolo-me, lembrando-me que as pessoas nunca morrem, se tiverem deixado no mundo um rasto como o da Helena - cheio de generosidade, criatividade, bondade e audácia.
Maria de Lurdes Rosa
Luís Ribeiro, a fechar…
A Helena foi marcante na vida de muitos e mudou a minha para sempre. Foi a minha companheira de vida, com quem partilhei visões do mundo, estudos e muitas aventuras. Tal como uma supernova, a sua clareza e dinamismo iluminavam o seu caminho; o seu entusiasmo era contagiante, o seu movimento imparável e suavemente implacável. Tornou-se a primeira Historiadora da Astrologia em Portugal e deixou uma marca inesquecível e inspiradora. Será recordada pelos que tocou directamente e pelos que tocará com o seu legado.
Luís Ribeiro
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive
Ricardo Reis, "Odes”.