Os conteúdos deste artigo foram, em grande medida, suscitados a partir duma estimulante troca de correspondência com um amigo de longa data, o Professor Doutor Jorge de Alarcão, que, para além de reconhecida autoridade em Arqueologia Romana, sempre se interessou pela documentação medieval, enquanto instrumento para melhor entender o território. Neste âmbito, e durante os últimos anos, realizou importantes estudos sobre a cidade de Coimbra e a região beirã, tendo tido a generosidade de me consultar por diversas ocasiões acerca de assuntos de interesse comum, no âmbito da Alta Idade Média1. O profundo conhecimento que tem da documentação publicada sobre este período, assim como a sua capacidade analítica e facilidade argumentativa, constituíram para nós, pessoalmente, um salutar desafio e a chamada à reflexão sobre questões a propósito das quais, até então, apenas ligeiramente nos tínhamos debruçado.
Apesar do esforço genuíno de alcançar consensos feitos a partir da apresentação dos dados e do debate de ideias, há que reconhecer, com toda a naturalidade, que nem sempre tal desígnio é atingido. Mas são estas trocas de argumentos que possibilitam aproximações em temas que, até anteriormente, eram improváveis. Deve ter-se em conta que as fontes de que dispomos são muito lacunares e, mesmo quando se conservaram - sobretudo até meados do século X -, não raras vezes são imprecisas ou de genuinidade controversa. Será indispensável unir pontas, cerzir indícios, avançar com hipóteses e evocar contextos que justifiquem os enunciados. Criar um fio condutor nem sempre é fácil e, mesmo quando tal se concretiza, outro tipo de argumentos pode tornar válida uma hipótese alternativa. Mas é deste modo que a ciência se afirma e o conhecimento histórico avança, nomeadamente em períodos de tão parca e condicionada informação documental.
A propósito, vale a pena recordar o que, no nº7 da Medievalista online, escreveu o Professor Doutor José Mattoso acerca do desafio que constitui a utilização de certos documentos do Liber Testamentorum, do mosteiro de Lorvão: “as evidentes dificuldades de interpretação resultantes de problemas levantados pela crítica de autenticidade atemorizam a maioria dos investigadores modernos que tentaram servir-se dele”. Ao fazer a recensão crítica da edição do cartulário laurbanense, levada a efeito pelo Centro de Estudios e Investigación ‘San Isidoro’, José Mattoso deixa-nos uma nota optimista que, simultaneamente, pode ser interpretada como directiva:
“Com efeito, esgotados, porventura, os recursos analíticos, creio ser ainda possível avançar de alguma maneira o conhecimento histórico que é, afinal, o objectivo fundamental da abordagem das fontes enquanto testemunhos do passado. Ou seja, na minha opinião, é preciso ainda...proceder a um encontro entre os dados fornecidos pela análise, não como objecto em si mesma, mas como indicadores de factos significativos em termos históricos”.
Referia-se José Mattoso aos estudos de contexto, nomeadamente a factos políticos, a factos da história monástica e à história da ocupação humana do território. No seu entender,
“a síntese não é apenas o resultado da conjugação de dados fornecidos pela análise, mas um passo mais no processo de conhecimento global do passado, pois convida a verificar, num segundo tempo de análise, interrogações que a comparação dos dados sugere e que podem ou não confirmar as hipóteses nascidas da própria comparação”2.
É nesta perspectiva que procuramos reflectir sobre a cronologia de dois documentos de excepcional relevância, inseridos no Liber Testamentorum, tentando contextualizá-los e extraindo daí conclusões sobre o seu significado à luz da história da expansão astur-leonesa na fronteira demarcada entre Viseu e Coimbra.
I. Na pista do príncipe Bermudo Ordonhes3
[911].09.28 - Confirmação régia da “uilla” denominada Vila Cova, adquirida por presúria, cujo anónimo concessionário fica obrigado perante Ordonho de, à data da morte, ceder a respectiva posse a favor do mosteiro de Lorvão4.
Este documento aparece referenciado pelo cartulário como “Testamentum de uilla de Ydriz et de suo seruo nomine Picon”, título este que tem gerado alguma confusão. Para além disso, a sua data foi adulterada. Nos Portugaliae Monumenta Historica aparece datado entre 850-856 e, na edição leonesa do Liber Testamentorum são-lhe apontadas, com interrogação, as datas alternativas de 811 ou 911. Nesta última publicação anota-se a principal bibliografia respeitante ao documento, surgida até à data da edição, e são feitos diversos comentários analíticos5. Em nosso entender, a data crítica do diploma original corresponderia a 28 de Setembro de 911. Aliás, a mesma opinião já antes de nós tinha sido considerada por Rui de Azevedo, Pierre David, Nelson C. Borges, Mário de Gouveia e Jorge Alarcão6.
Vejamos mais de perto as razões que levam a concluir por aquela data. Na transcrição do cartulário falta apenas um C na parte correspondente às centenas, o qual se percebe ter sido deliberadamente rasurado. Deve, assim, corrigir-se a datação como segue: Facta carta notum die IIII kalendas octobris. Era DCCC[C] X L VIIIIª (X aspado na casa das dezenas).
A análise das subscrições aponta-nos também para um curto período, situado entre 911/912. Na verdade, a biografia conhecida dos intervenientes neste acto oferece-nos as seguintes balizas: Ordonho, rei na Galiza (911-914); Nausto, bispo de Coimbra (867-912); Froarengo, bispo do Porto (890?-918); Juvarius, provável bispo de Lamego (911); Recaredus, bispo de Lugo/Braga (893-924); Savarigus, bispo de Mondoñedo/Dume (909-924)7. Esteve ausente o bispo de Viseu, que em 911 deveria ser Gomado, segundo Carriedo Tejedo8.
Confirmada a estreita amplitude cronológica resultante da análise dos subscritores do documento (911/912), desde logo se dá conta de um anacronismo introduzido no conteúdo interno, quando o escriba refere S. Mamede e S. Paio como santos patronos do mosteiro. Foi Pierre David que sugeriu existir um problema no caso de S. Paio, dado que o seu martírio apenas aconteceu a 26 de Junho de 9259. Como já tem sido adiantado por outros autores, esta seria mais uma prova da falta de rigor nas transcrições do notário laurbanense. Ele teria usado aqui a citação dos oragos em vigor no seu tempo (século XII), sendo que apenas S. Mamede corresponderá à primitiva dedicação da igreja conventual. No entanto, Nelson Correia Borges, apoiado em iconografia e documentação de época moderna, pertencentes ao próprio mosteiro, defende que este S. Paio será antes o mártir da Ístria, do século III d. C.10. O problema é que tais informações são colhidas em testemunhos pós-medievais e, por sua vez, este santo não consta em qualquer fonte hagiográfica da Hispânia romana e visigoda, nem mesmo nos calendários moçárabes.
Uma prova irrefutável da data atribuída - 28 de Setembro de 911 - é a circunstância de ela coincidir, precisamente, com o dia da célebre “Congregatio Magna” de Aliobrio, em que o jovem monarca se reuniu com “omnes Episcopi, Comites, et Capitanei territorio Galeciensi”. Esta Curia Régia teve lugar na bacia do duriense, às portas da Stremadura beirã e num momento em que a governação do recém-criado reino “Galeciensi” se defrontava com a necessidade de articular a administração das duas grandes zonas, a norte e a sul do rio Douro, que de ora em diante passaram a integrá-lo. O único testemunho até agora conhecido, sobre os temas aí tratados, é de âmbito muito parcial. Trata-se apenas da demarcação dos limites do bispado de Dume, a respeito da qual existia uma carta autógrafa no arquivo da Sé de Braga e transcrita no Liber Fidei11. É compreensível que tal diploma tenha ido parar ao cartório de Braga, por se relacionar com a confirmação do senhorio dumiense. Naturalmente, estariam na ordem do dia outros temas, nomeadamente os relativos à defesa e ao povoamento da fronteira das Beiras. Mas perdeu-se praticamente tudo, com excepção, também, do documento que agora estamos a analisar. Ele é nada mais, nada menos, que a confirmação régia feita a determinado magnata, de uma propriedade sita em zona estratégica da fronteira do Mondego e recentemente tomada por presúria. A designação coeva de “Porto de Ladrões” para o lugar onde se situava a Uilla Cova estará relacionada com a instabilidade que se vivia nesta faixa territorial, numa altura em que Coimbra ainda sofria grande exposição a ataques inimigos. Aliás, a fragilidade dessa zona, numa época em que as autoridades islâmicas continuavam a desencadear algaras punitivas e pilhagens, veio a ser replicada mais tarde e num outro contexto, quando no tempo de Almançor uma horda de meliantes, vindos de Condeixa, atacou o mosteiro de Lorvão12. O copista laurbanense omitiu ostensivamente o nome do tal magnata agraciado pela confirmação régia, mas ainda no século XII o respectivo original se conservava no cartório monástico, sendo transcrito para o cartulário com algumas deturpações. Apenas por dizer respeito a um bem fundiário de excepcional notoriedade, cuja posse o mosteiro sentia necessidade de legitimar, é que se decidiu incluir a sua cópia. Ora, a carta autógrafa não era mais do que a pública-forma de um dos actos régios que ocorreram durante a referida Cúria, à semelhança do que, também em separado, sucedeu com a cópia da delimitação do termo de Dume. E, acrescente-se, alguns dos subscritores até são comuns aos dois diplomas. A não sobreposição de todos eles explica-se pelo facto destes documentos não constituírem qualquer acta da reunião curial, mas, tão somente, corresponderem a extractos de decisões aí tomadas e das quais se passou registo particular, com endereçamentos diferenciados. Mesmo assim, o número e o nível de subscritores da confirmação régia da Uilla Coua demonstram tratar-se de um destinatário de estatuto superior.
O diploma em causa diz respeito à ratificação do usufruto pleno, por uma vida, da “Uilla Coua ad portu de Latrones”, feita pelo futuro rei Ordonho II, recém-aclamado senhor da grande Galiza em consequência da divisão do reino leonês, após Afonso Magno ter sido obrigado a resignar. Mas, como acima se disse, a cópia do cartulário omitiu o nome do concessionário. Todavia, em duas ocasiões ele é citado genericamente pelo monarca (“tui serui”, “uita tua”), que lhe impõe o compromisso de, após a sua morte, deixar ao mosteiro de Lorvão a posse plena dessa herdade. Mais adiante, veremos quem terá sido o destinatário do documento, cujo nome foi suprimido deliberadamente pelo copista.
Para sustentar o nosso raciocínio e dada a complexidade do texto - por estar escrito em latim medieval e conter imprecisões de transcrição - apresentamos a tradução da sua parte mais significativa:
“Em nome do Senhor. Ordonho rei, Saúde Eterna no Senhor. Na verdade (quidem) não existe dúvida, pelo contrário isso (sed...eo) permanece bem conhecido (notissimum) de muitos, de que apresuraram (preendiderunt) a uilla do teu servo chamado Picon, e eu, Ordonho, [confirmo-te] a uilla denominada Vila Cova ao Porto de Ladrões, que obteve (quod obtinuid) Ydriz, com suas paredes e seus lugares (uiciis, no sentido de “casais” ou “aldeias”) e termos antigos, e com toda a sua coisa útil (prestantia) tudo o que aí está disponível (adprestitum) aos homens. Assim, que desde o presente dia e do tempo segundo o qual a apresuraram (eam preserunt) ao teu servo (tui serui) [determino que] a possuas com firmeza em vida tua, por nossa concessão (de nostro dato), e depois da tua morte, aquela uilla e aquele servo que acima se repete, fique posteriormente parte (post parte) do mosteiro de Lorvão em honra de S. Mamede e S. Paio, para remédio da nossa alma e de nossos pais de santa memória. Cujo juramento confirmo por Deus Pai Todo Poderoso, de que nunca estarei (nunquam ero) contra este meu acto para o quebrar (ad inrumpendum). E além disso todo aquele que (Et insuper quantum) [contra isto] atentar compense em quadriplicado...”.
Este documento é extremamente relevante, pois, para uma época ainda demasiado precoce, dá-nos conta do modo como se ia processando o povoamento estratégico da fronteira recém-ocupada por forças cristãs. No vertente caso, tratava-se de homologar o desfecho de uma presúria particular, levada a cabo pelos homens de um magnata, acaso um nobre senhor com relação próxima ao próprio monarca. Independentemente do estatuto da pessoa em causa e da sua, maior ou menor, proximidade ao Rei, a legitimação de um acto de presúria passaria, antes de mais, pela confirmação da autoridade régia. E terá sido esta a razão primordial do diploma.
A dada altura do documento é referido um servo, de nome Picon. Nada mais se diz a seu respeito, podendo pensar-se que se trate do antigo proprietário ou, então, do responsável pelo maneio da terra que certos homens apresuraram (quod preendiderunt) e que aí se manteve na condição de servo. Deveria ser alguém vinculado à mesma terra pelo trabalho, já presente na herdade antes da presúria. O facto de ser citado apenas este nome numa herdade que, para ser explorada, deveria exigir múltiplos servidores, pode significar que seria ele o mais destacado em Vila Cova, dono de terrenos que foram alvo da presúria e reduzido à condição de servo na sequência desta última.
Outro interveniente citado no diploma é um tal Idris, que, em nosso entender, foi o autor material desta presúria (“Uilla Coua...quod obtinuit Ydris”). Tê-lo-á feito em nome do anónimo senhor da uilla ou, como alternativa, em nome próprio e tendo posteriormente cedido a respectiva posse ao nobre destinatário da carta. Porém, estamos em crer que se tratará da primeira hipótese, dado que a homologação da presúria exigiria confirmação régia e esta encontra-se passada em nome do desconhecido magnata e não de Idris.
Mas vamos ver quem deverão ser eles, o novo dono da uilla e este tal Idris, seu presumível auxiliar. O desvendar deste enigma começou a dever-se à argúcia de Jorge Alarcão que, em In territorio Colimbrie, lançou uma primeira hipótese. De acordo com o que aí propunha, tratar-se-ia da presúria efectuada por “servos” de Diogo Fernandes, sobre uma propriedade que havia pertencido a Idris13. Independentemente das imprecisões que subsistem nesta interpretação, ela constituiu um passo importante para o posterior esclarecimento da identidade do destinatário da escritura de confirmação lavrada pelo rei Ordonho. O avanço seguinte foi dado muito recentemente, pelo mesmo investigador, numa nota inserida no seu estudo Do Douro ao Mondego de Afonso Magno a Almançor, como segue:
“DC 3 [= LT 47] é um documento muito estropiado que nos parece dever interpretar-se como doação da villa de Ydriz pelo príncipe Ordonho a Bermudo [Ordonhes]. Não figura no documento o nome do donatário; mas a villa doada, Villa Cova ad portu de Latrones, parece-nos ser aquela mesma Villa Cova que D. Onega doa ao mosteiro de Lorvão em 928, em cumprimento das últimas vontades do príncipe Bermudo, recentemente falecido (DC 34). No documento de Ordonho, a doação é feita com a condição de o donatário, por sua morte, doar a villa ao mosteiro laurbanense”14.
Na verdade, o diploma de 928 mais não é do que a satisfação do compromisso assumido por Bermudo Ordonhes em 911, sendo encarregados do seu cumprimento, post mortem, a condessa D. Onega e seus quatro filhos, numa cerimónia confirmada por Ramiro, rei em Viseu, três bispos regionais e diversos membros da aristocracia local15. Nesta estimulante proposta de Jorge de Alarcão apenas mantemos reservas quanto ao papel desempenhado pelo tal Idris, “quod obtinuit” a dita vila.
Quanto ao documento de 911, pode concluir-se que não foi seu destinatário o abade de Lorvão, como interpretam os autores da edição crítica do cartulário16. Se assim fosse, em princípio, os termos seriam diferentes: deviam estar mencionados concretamente o suposto abade e, também, os monges ou o mosteiro. E nesse caso não haveria razões para o escriba omitir nomes. Além do mais, o mosteiro aparece aqui como beneficiário em segunda instância, pelo que o beneficiado directo - o verdadeiro destinatário do diploma - terá que ser outra entidade.
Também não foi seguramente Idris, como queria Rui de Azevedo17 e aceitam vários autores, pois o benefício régio é concedido a título vitalício, a alguém que não este personagem. A maneira como ele é referido no documento, com a conjugação do verbo na 3ª pessoa, não corresponde ao modo “coloquial” que é usado em relação ao destinatário: “tui serui”, “abeas”, “uita tua”. Deve sublinhar-se que a alusão à posse da uilla, adquirida por intermédio de Idris, é apresentada no pretérito e na 3ª pessoa do singular: obtinuit. Mas ao falar-se da presúria, o mesmo texto usa o plural (prendiderunt), circunstância que interpretamos como referindo-se a uma acção envolvendo terceiros. E, neste caso, o mandante da presúria.
Esse tal Idris será, muito possivelmente, o senhor da uilla de Idrizes, em S. Pedro do Sul, onde se fixou o clã lafonense. Pensamos isto devido à raridade e dignidade do respectivo nome, assim como à proximidade geográfica dessa herdade relativamente à uilla Iben Ordonis - hoje Bordonhos - e às Caldas de Lafões; ou seja, ao local onde Bermudo Ordonhes terá habitado e ao sítio que ele frequentava para banhos termais18. A escassos 2 Km do lugar de Idrizes (hoje Drizes), o príncipe asturiano terá mandado construir o templo de S. Martinho do Banho, como pode inferir-se do invulgar fragmento de ajimez aí conservado; o modelo é raro e pode encontrar-se nas Asturias, em San Salvador de Valdedios (Fig. 1). E em Drizes existe ainda a “quinta da Torre”, o que também confirma ter havido uma habitação senhorial muito próximo das antigas termas. Este sítio faz parte da freguesia da Várzea, onde em 1258 é citada ainda uma leira que entestava “in area veteri”19. Esta uilla altomedieval vem documentada no Livro Preto da Sé de Coimbra, logo em 112820 e situava-se na vizinhança imediata das Caldas de Lafões e a uma légua de Bordonhos. Acerca desta “uilla Hydrizes”, “Heldrizes” ou “Eldrizes” existem mais três documentos no Baio Ferrado21, datados de 1150 e 1158. Robert Durand não a soube localizar, apesar do conteúdo de tais diplomas se associar à terra de Lafões 22. Ligou--os erradamente a outros que falam de Aldriz, na freg. de Argoncilhe (Santa Maria da Feira). Ora, este último topónimo, assim como o de Alderiz, na freg. de Pias (Monção), terão uma distinta origem em “Alderigo” ou “Aldrigo”, um antropónimo de etimologia germânica.
“Ydris” é nome árabe, atribuído a um dos mais importantes profetas do Islão. Ele corresponde ao bíblico Enoch ou Enoque que, literalmente, significará “o sábio” ou “o iniciado”. Tal antropónimo anda também associado ao califado Idríssida, de Marrocos (788-974). O seu fundador, Mulei Idris ou Idris I, era neto de Ali e de Fátima, filha de Maomé. Expulso da Síria depois da derrota na batalha de Faqueque (787), na sequência de uma rebelião contra o califado Abássida, ele veio a refugiar--se em Volubilis. Em pouco tempo, tornar-se-ia rei de certas tribos do norte de Marrocos, onde, na esteira do que se dera no Andalus, criou o segundo estado muçulmano a emancipar-se de Bagdade. Durante o reinado do seu sucessor, Idris ibn Idris ou Idris II, é fundada a capital em Fez. Nesse mesmo período dá-se também, em Córdova, a célebre revolta do Arrabalde, levada a efeito pelos cristãos da cidade. A violenta resposta do emir Al-Hakam I, que capturou e mandou crucificar umas centenas de nobres e clérigos, levou a que parte da população moçárabe emigrasse para Alexandria e Creta. Mas cerca de oitocentas famílias terão passado também à Mauritânia, sendo acolhidas em Fez, onde lhes foi atribuído um bairro separado dos árabes. E pouco tempo depois chegaram mais 200 famílias de Cairuão, banidas pelos Aglábidas. Assim, surgiu aí uma sociedade de características muito peculiares, tendo as relações com a Hispânia passado a ficar desde então mais facilitadas, a partir de Fez. Um conhecido magrebino que usou o nome da linhagem idríssida e que manteve estreita relação com o Andalus, foi o historiador e geógrafo al-Idrisi (Abu Abdullah Muhammad al-Idrisi). No trânsito do século IX para o X, o reino marroquino viveu um período de guerra civil e encontrava-se acossado pelos fatímidas da Ifriquia. Estas circunstâncias poderão explicar a presença de um Idris refugiado na fronteira meridional da Gallecia, onde também estão documentados diversos topónimos que evocam a cidade de Cairuão (por ex. “Alquerubim”, cuja correspondência é aceite desde há muito tempo; ou “Queirã”, lugar conhecido na Idade Média por Queyraa ou Quiroa).
O antropónimo Idris é raríssimo na documentação astur-leonesa e, ao que nos é dado a conhecer, será único em território português. Tratando-se de um nome de linhagem aristocrática, é provável que a relação com Bermudo Ordonhes possa ser compreendida à luz de um qualquer antecedente associado à Corte deste príncipe asturiano. É oportuno lembrar que, segundo a Crónica de Sampiro, a sua resistência em Astorga, durante os sete anos que durou o golpe revolucionário contra o rei seu irmão (c.891-898), só terá sido possível graças ao apoio de forças árabes23.
Este conjunto de dados faz pensar que também Idris possa ter sido um dos principais auxiliares do príncipe Bermudo, exilado em terra de Lafões. Apesar de cego, Bermudo Ordonhes contou com um grupo de fiéis apoiantes, entre os quais se destacavam Diogo Fernandes e sua mulher Onega24, para além de vários descendentes dos condes Afonso Betotes e Vímara Peres. O clã lafonense terá sido formado num contexto de rebeldia contra a Corte ovetense, o que não o terá impedido de contribuir, desde logo, para uma reformulação do domínio senhorial na fronteira beirã. Após o desaparecimento de Afonso Magno e através da acção congregadora de Ordonho II, os seus membros acabarão por se integrar activamente no processo de consolidação da monarquia astur-leonesa nestas paragens. O papel tutelar do príncipe Bermudo ao longo de três décadas (c. 898-928), apesar do desaparecimento de quase toda a respectiva base documental, parece ter sido relevante na zona de Lafões e, mesmo, no médio Mondego25. É em torno dele e de Ordonho II que se devem as primeiras referências seguras de um patrocínio em favor do mosteiro de Lorvão. Aliás, a aceitar-se a superior responsabilidade de Bermudo na presúria da uilla de Vila Cova - a mais importante e uma das primeiras herdades documentadas na área nuclear da casa monástica - dificilmente se pode rejeitar a ideia de ele estar associado à (re)fundação do cenóbio laurbanense.
Entre as propriedades mais próximas do mosteiro, do lado do Mondego, contam-se três uillae pertencentes a diversos herdadores e que, aos poucos, os monges de Lorvão foram adquirindo. E os homens que exploravam estes domínios envolveram--se em litígios, por mais do que uma vez, sobre os respectivos limites territoriais. As áreas em conflito eram as seguintes:
- a citada Vila Cova, que Rui de Azevedo pensou centrar-se na Granja do Rio, é considerada com maior probabilidade em Cheira, por Nelson C. Borges, baseado em vários assentos pertencentes ao próprio mosteiro; a localização a meia encosta é, inclusive, mais conforme à tendência de fixação das populações na época conturbada que estamos a tratar; mas a propriedade estendia-se pelas duas margens da várzea, com o seu porto; de acordo com uma informação coeva, a baliza meridional confrontava com os vilares de Oliveira e Louredo, já na margem esquerda do Mondego; pensamos que a primitiva Vila Cova era, antes da presúria, mais ampla e especialmente concentrada na margem norte; mas terá sido repartida nessa altura, continuando uma parte ainda afecta a herdadores independentes, por acordo firmado na ocasião;
- a segunda parcela, igualmente denominada Vila Cova, será a que continuou na posse dos herdadores alodiais; confinava com a anterior, pela margem direita do Mondego e, ao incluir a zona de implantação do castelo roqueiro, passou a ser conhecida como Penacova; é possível que os moradores deste segundo quinhão da Vila Cova explorassem também a excelente várzea que lhe ficava em frente, para os lados da Azenha do Rio; só assim se explica a citação de ambas as Vilas Cova, quando o conde Ximeno Dias presidiu à demarcação da linha divisória que as separava, já a sul do Mondego;
- do outro lado do rio, existia também a vila de Alquinitia, que tinha a ela associados os vilares de Louredo e Soutelo (freg. de Arrifana); segundo J. Silveira, citado por Rui de Azevedo, ainda havia na zona a reminiscência do nome “Alcaniz”; e um documento de 1180, referente ao “couto de Seira”, apresenta nos seus limites a “serra de Alquinicia”26, que deve ser a actual serra do Carvalho, na fronteira entre os concelhos de Coimbra e Vila Nova de Poiares27.
É de recordar que, na vizinhança desta herdade, ficava ainda a uilla de Algaça, de que o rei Ordonho II fez testamento ao mosteiro de Lorvão, possivelmente em 91728. Ainda hoje os moradores designam “Travessa de Algazala” a uma das artérias do lugar29, na forma como o topónimo é referido em quatro documentos do século X. A data do LT 41 foi rasurada e, depois, refeita parcialmente. Houve uma mão posterior que, de modo deliberado, reformulou a datação de vários diplomas tresladados para o cartulário30, relativos especificamente a Ordonho e a alguns personagens ligados ao clã de Lafões31. No caso da doação de Algaça, no espaço da data é nítida a eliminação de um C e é possível que, na reconstituição da parte rasurada, tenha sido reescrito um X, em vez de um L (fol. 27r). Em nossa opinião, a data do original seria “Era. DCCCC.LV”, ou seja, o Ano de 917, condizendo precisamente com o reinado de Ordonho. Entre as subscrições originais - as da primeira coluna - contam-se a de Guterre Mendes e a de um tal “Domnus Garseanus”. Neste último caso não se trata do rei Garcia, como já alguém aventou, pois este havia falecido antes de 914. É um seu homónimo, que juntamente com Guterre Mendes, aparece a subscrever outros documentos de Ordonho, em 915 e 92032. E é possível que seja o mesmo Garsea Patroniz que figura no testamento do próprio Guterre Mendes33. Confirmando a cronologia relativamente precoce do diploma, deve assinalar-se que a doação régia da uilla de Algaça é feita “uobis Iusto abba”, ou seja, ao prelado que figura como primeiro abade do mosteiro (“Inprimis [I]ustus abba”), na lista que o escriba inseriu no chamado “Chronicon Laurbanense”.
Defendemos a (re)fundação desta casa monástica nos primeiros anos do século X, no que apenas ligeiramente diferimos de Rui de Azevedo, quando admite ainda possível o último quartel da centúria anterior: “só a partir de 907 ou, com mais segurança, de 911 há documentos sobre o mosteiro de Lorvão, os quais denunciam a existência já em tempos anteriores, mas de forma alguma nos autorizam a recuá-la para além de 878”34. Confirmada a falsa antiguidade de diplomas que aparecem fraudulentamente datados de um período anterior à presúria de Coimbra, também nós julgamos necessária a revisão da data do LT 19, de que o próprio Rui de Azevedo apresenta 907 como possível, embora pouco segura. É o que tentaremos corrigir na segunda parte deste trabalho.
Diga-se, entretanto, que esta nossa opinião em nada contradiz a possibilidade de uma origem mais antiga do povoamento de Lorvão e da própria casa religiosa, como quer Nelson Correia Borges35. Para além de várias peças de origem romana aparecidas na povoação e até dentro do mosteiro36, é bem provável que possamos identificar o lugar como a sede da paróquia sueva Lurbine37. Ao Parochiale suevo tem sido atribuída uma cronologia entre 572-582 d. C.. Embora com todas as cautelas, pode ainda ser considerada verosímil uma nota de Fr. Bernardo de Brito extraída de “hum livro de óbitos muy antigo da própria casa”, segundo a qual, faleceu a 10 de Abril o “venerabilis Lucentius primus quondam Abbas Laurbani, postea vero ad episcopatû Colimbribensis civitas assumptus”38. A data da morte de Lucêncio teria ocorrido no ano 580. Ainda segundo outra nota transcrita por Brito, a sagração do templo monástico ocorreu a 20 de Maio, data a que Nelson C. Borges não deixa de acrescentar alguma dúvida - “a ser verdade...” - e corrige para 29 do dito mês39.
Já não podemos concordar com a cronologia atribuída ao fragmento de friso que se encontra reutilizado na parede sul da torre sineira40. Tal peça foi considerada como visigoda, mas não pode ser anterior ao século IX. Em recente estudo sobre a escultura dos moçárabes de Coimbra, pensamos ter demonstrado concludentemente que tal friso se insere numa corrente artística que emergiu já após a invasão árabe, perto do final da primeira centúria de domínio islâmico. Pertence a um grupo artístico muito pujante e coerente, que se difundiu no seio da diocese coimbrã e cujo período áureo de produção coincide com os finais do século VIII e, especialmente, todo a centúria seguinte. Este movimento colhe distantes influências itálicas e apresenta-se com bastante originalidade do ponto de vista plástico e no desenho ornamental. O que mais surpreende é que ele evidencia uma deliberada autonomia programática, tendo em conta o contexto sociopolítico em que se encontravam as várias comunidades cristãs da região41. A escultura de Lorvão mostra-se perfeitamente integrada nos padrões dessa corrente: friso esquemático com um ramo de videira exibindo cachos de uvas e gavinhas, mas sem folhas; e encordoados paralelos, entre dois filetes lisos, a servir de orlas ao motivo central (Fig. 2). Todavia, existem dois detalhes que singularizam esta peça face à maioria das produções da corrente em que se integra. Em vez do calcário de boa qualidade, tão frequentemente usado na região e nessa época, este friso foi lavrado numa pedra “de mármore cinzento escuro com veios esverdeados, proveniente, com toda a probabilidade, das pedreiras das proximidades de Sazes de Lorvão, nas faldas do Buçaco”42. Por outro lado, enquanto na totalidade dos exemplares conhecidos os cachos de uva aparecem envolvidos por uma orla rígida, aqui esta última encontra--se praticamente ausente. O encapsulamento dos bagos de uva é uma marca distintiva da matriz inspiradora da arte coimbrã dos séculos VIII-IX. Trata-se de um detalhe formal claramente importado do exterior e que caracteriza as produções mais genuínas deste grupo. O desaparecimento das orlas rígidas - de que apenas é perceptível um tímido esboço no primeiro cacho do lado esquerdo - constitui para nós um possível indício do carácter relativamente tardio desta peça, que, sem custo, situaremos no início do século X. Aliás, entre a vasta série de esculturas conhecidas, não será a única mais evoluída e que dobra a centúria. Tal cronologia bate certo com o momento de intervenção de Bermudo Ordonhes e do seu sobrinho, o rei Ordonho II. Ela é em tudo compatível com a data crítica atribuível aos documentos mais antigos do cartulário e, bem assim, com o cálculo aproximado sobre o início da série abacial, tal como esta se apresenta no “chronicon laurbanense”.
Mais ainda, os santos patronos do mosteiro de Lorvão ajudam também a sustentar a origem relativamente recente do mosteiro, tal como já observava Rui de Azevedo. Quanto a S. Paio, é explicado o acréscimo desta invocação por iniciativa do autor do treslado, à luz do que seria usual no seu tempo. O martírio do santo cordovês apenas se deu no ano 925 e num pergaminho original que chegou até nós, datado do ano 998, ainda só se refere S. Mamede43. Aliás, o próprio Liber Testamentorum inclui uma série de diplomas apenas com a invocação deste santo. Nelson C. Borges, com base em anotações modernas inseridas em documentos do cartório das monjas cistercienses, aceita a possibilidade de se tratar de um outro S. Paio, originário da Ístria, que foi martirizado no século III d.C.44. Todavia, esta hipótese confronta-se com a realidade da inexistência de quaisquer fontes hispânicas sobre o seu culto em época visigoda e, nos calendários moçárabes, o santo que aí figura é o mártir cordovês.
Quanto a S. Mamede de Cesareia, apesar de relíquias suas terem sido colocadas em Santa Cruz de Poitiers, no século VI, a verdade é que “en España sólo aparece en calendários mozárabes, en la adición al Pasionario silense y en el sacramentario de este monasterio com una misa de latin muy tardío dependiente de la Passio”45.
Estranhamente, o Liber Testamentorum não inclui qualquer informação acerca do fundador do cenóbio laurbanense. Era de esperar que, na selecção dos treslados, figurasse o documento fundacional, o registo do dote do fundador ou, pelo menos, o mais antigo privilégio real. Tal nunca é explicitado e, tendo em conta outras anomalias, Maria João Branco e Mário de Gouveia fazem avaliações assertivas sobre a conjuntura em que se deu a fixação dos textos no cartulário e chegam à conclusão de que, tanto os anais, como a selecção e o tratamento dos diplomas, obedeceram a objetivos ideológicos e propagandísticos46. A escolha das notícias analísticas e a própria organização interna do códice revelam claras intenções de valorizar determinadas ocorrências e certas entidades, em detrimento de outras. No dizer de Maria João Branco, a sua feitura pressupõe uma verdadeira “agenda política”. E o momento escolhido para a elaboração do cartulário (c. 1120) teve, mesmo, uma motivação concreta. Ele segue-se à recuperação da autonomia do mosteiro face à Sé de Coimbra e surge para evocar a época mais pujante da instituição, salientando as personalidades que, no passado e no entender da comunidade, mais contribuíram para a sua riqueza e prestígio.
Torna-se perfeitamente claro que foi preocupação dos monges enfatizar o papel de Ramiro II e a acção de membros da linhagem conimbricense, herdeira do presor Hermenegildo Guterres. Apesar dos documentos régios mais antigos dizerem respeito a Ordonho II, eles foram remetidos para segundo plano e sofreram, até, mutações fraudulentas. É nosso entender que o pano de fundo de tais escolhas e da modificação do conteúdo de alguns documentos (deturpando datas, por exemplo, para invocar uma origem mais antiga e mascarar a identidade dos fundadores) prende-se com um conflito, ainda hoje pouco questionado, mas que parece ter existido entre as principais linhagens associadas ao movimento das Presúrias. E não nos podemos esquecer, também, que o próprio Ordonho se tornou rei após ter destronado o pai, em conivência com seus irmãos. Ora, Hermenegildo Guterres foi o mais leal servidor de Afonso Magno47. Para além do mais, ainda como príncipe e governador da Gallecia, foi Ordonho quem estabeleceu pontes com a Corte do arqui-inimigo de Afonso III, Bermudo Ordonhes, seu tio e irmão do rei. Bermudo encontrava-se exilado em Lafões com outro infiel, Diogo Fernandes48, a quem o mesmo príncipe teve ainda a suposta “desfaçatez” de entregar ao seu cuidado a criação do terceiro filho, o futuro rei Ramiro. Diogo Fernandes estava ainda rodeado de alguns descontentes, da descendência dos condes Vímara Peres e Afonso Betotes, a quem Hermenegildo Guterres terá querido apoderar-se de territórios de que se sentiam com direito, como parece confirmar-se pela intitulação do conde Hermenegildo como “comes Tude et Portucale”, num documento de 89949. Entre esses descendentes contavam-se Hermenegildo Gonçalves e Rodrigo Tedones, netos de Afonso Betotes; Alvito Lucides, neto de Vímara Peres e genro de Diogo Fernandes; e um irmão deste, Teodorico Lucides, que, como veremos a seguir, pode ter exercido temporariamente o cargo de conde de Coimbra, retirando a primazia à linhagem guterreana.
Deve recordar-se que Vímara Peres é desconsiderado no próprio Liber Testamentorum quando, na resenha analística que fala da presúria de Portucale, surge citado apenas pelo nome, enquanto que Hermenegildo Guterres é respeitosamente apresentado na qualidade de “comes”. Para além disso, é muito enigmática a referência à morte de Vímara Peres, em Vama, na presença do rei Afonso Magno. Vímara Peres, apesar de filho do fidelíssimo Pedro Theon, pertence já a uma geração que se encontrava em conflito com o rei, como o prova a revolta liderada por seu irmão, Hermenegildo Peres. Ora, sem entrar em detalhes deprimentes - como acontece noutras partes do cronicão -, o escriba pode ter querido evocar o assassinato de Vímara na presença do rei ou, pelo menos, lembrar uma morte desejada. É isso o que parece ter acontecido também com a seca referência à morte de Afonso VI, o rei que terá sido responsável pelo início da perseguição da comunidade moçárabe e que originou a submissão do mosteiro de Lorvão à Sé de Coimbra, pela mão do conde D. Henrique e logo a seguir à morte do alvazir Sesnando50. De outro modo não se explica a escolha da notícia, já que o autor dos anais não sentiu necessidade de evocar a morte de outros personagens benquistos para a comunidade. Aludir à ocorrência da morte, simplesmente, funcionaria como a catarse de uma desgraça maior.
A elevação dada à figura de Ramiro II prende-se, por sua vez, com o reconhecido apoio que este veio a dar ao mosteiro, numa aliança perfeita com a nova linhagem patronal, sobretudo na pessoa do conde Gonçalo Moniz, bisneto do presor conimbricense. Ramiro nunca cortou os laços com o clã de Lafões, onde teve como irmã de leite a futura condessa Mumadona. No entanto, após receber em testamento a parte sul do reino da Gallecia, ele irá tomar diversas medidas de aproximação à família guterreana, aquela que poderia ser mais problemática no novo reino, dadas as antigas afinidades de Ramiro com a parentela de Diogo Fernandes. Quando se tornou rei em Viseu, ele casa-se com Ausenda Guterres, filha de Guterre Osores e Aldonça Mendes, e agrega auxiliares de governação oriundos de cada uma das facções: Ximeno Dias, que é citado com direito de precedência nos documentos, e Gonçalo Moniz, que devia então ser bastante jovem e aparece em segundo plano, como subscritor. Entretanto, Ramiro despacha Hermenegildo Gonçalves e Mumadona Dias para norte do Douro, em jeito de recompensa, mas também como forma de garantir o domínio territorial e assegurar a estabilidade no condado de Portucale. Ao ascender ao trono de Leão, Ramiro repudia Ausenda, sem aparente trauma para a estirpe de origem da rainha, e casará com Urraca Sanches de Pamplona. Deste modo, a sua hábil estratégia leva-o a procurar apoios na fronteira leste do Reino, ao mesmo tempo que estreita laços com a nobreza galaico-portuguesa. Merecem aqui destaque as boas relações que imediatamente procura estabelecer com o jovem bispo S. Rosendo - neto de Hermenegildo Guterres -, assim como a confirmação de Gonçalo Moniz como conde de Coimbra. Esta orientação de favor para com a linhagem guterreana e o condado de Coimbra, leva o conde Ximeno Dias, anos mais tarde, a consorciar-se com uma irmã de S. Rosendo, talvez na expectativa de alcançar ganhos pessoais numa zona em que, já anteriormente, havia exercido funções de relevo. Tal iniciativa não terá surtido o efeito desejado, pois a escolha régia veio a recair em Gonçalo Moniz. Porém, esta ligação acabou por enfeudar Ximeno na política seguida pela linhagem conimbricense, no âmbito das disputas pelo trono leonês, a ponto de vir a ser qualificado de filius canis por Ordonho III, o monarca apoiado pela sua família nuclear, a partir do solar vimaranense51.
A nosso ver, terão sido estas as razões de fundo que explicam o critério selectivo e a organização interna do Liber Testamentorum, bem como certas anomalias que podem ser consideradas fraudulentas. Tudo leva a crer que houve como que uma damnatio memoriae acerca da identidade do (re)fundador do mosteiro de Lorvão. Achamos muito provável que o renascimento do cenóbio laurbanense se tenha ficado a dever a um entendimento entre Ordonho II e seu tio, o príncipe Bermudo Ordonhes, numa época em que Coimbra ainda se mantinha em situação muito precária, face a sucessivas investidas muçulmanas52. Ainda em 907 o conde Guterres Mendes foi obrigado a acorrer em auxílio de Coimbra, na altura em que estava para nascer o seu segundo filho, o futuro S. Rosendo. O povoamento e a segurança do território, agora sob alçada cristã, exigiriam a implantação de uma forte comunidade em um lugar de 2ª linha, relativamente bem defendido, embora integrado nas zonas em disputa. Importava criar uma instituição capaz de dominar espiritualmente o território, captar vontades e congregar meios, contribuindo desse modo para estimular a presença de novos colonizadores e mobilizar as populações para a defesa das terras recentemente apresuradas. Pela sua singular posição estratégica, a partir do vale do Vouga, e pelos contactos que o respectivo círculo de apoiantes devia conseguir manter entre ambos os lados em disputa, Bermudo Ordonhes era certamente quem poderia estar em melhor posição para levar por diante um tal desígnio. Ao atribuirmos a provável fundação do mosteiro a este magnata, em articulação com Ordonho (ainda príncipe regente ou já como rei da Gallecia), somos obrigados a considerar tal sucesso ainda na primeira década do século X, senão mesmo em 911, data do controverso documento LT 47.
É bem possível que o assunto da fundação do mosteiro de Lorvão tenha sido abordado na célebre Congregatio magna de “Aliobrio”, onde estiveram presentes “omnes Episcopi, Comites, et Capitanei territorio Galeciensi”53. Recorde-se que se encontrava aí o bispo Nausto de Coimbra e que, entre os leigos, aquele que em primeiro lugar subscreve o documento é o conde Lucídio Vimaranes. Ele era o pai de Alvito Lucides, já cima referido. Este último estava casado com Múnia Dias, uma das filhas de Diogo Fernandes, de quem herdou uma outra uilla nas proximidades de Vila Cova, em Gondelim. Em 984, a herdade estava na posse de Tegla Alvites, neta de Diogo e Onega. Pelo exposto, parece poder concluir-se que Diogo Fernandes terá avançado para as margens do Mondego na mesma ocasião de Bermudo Ordonhes, vindo eventualmente a tomar a uilla de Gondelim também por presúria. O seu servo Astruario, que vivia na dita vila ainda em 984, ligado à herdade desde o tempo dos avós de Tegla e aí se mantendo com filhos e netos, pode muito bem ser descendente dos primitivos donos, a quem tal uilla fora apresurada e aí terão permanecido por carta de encomuniação54.
Não seria de estranhar, porém, que a decisão da (re)fundar o mosteiro de Lorvão tivesse sido tomada pouco tempo antes destes acontecimentos. Após a resignação forçada de Afonso Magno, Ordonho foi aclamado rei da Galiza, em Lugo, a 7 de Junho de 910, estando aí presentes todos os condes “imperantes” no território lucense. Em data próxima, antes ou depois da assembleia de Lugo, o príncipe Ordonho efectuou ainda uma expedição contra Sevilha. Não logrando entrar na cidadela, atacou o bairro periférico de Regel, o que lhe permitiu regressar a Viseu com grande número de cativos e um abundante botim. É possível que uma parte desses cativos sejam os que constam da doação que fez à igreja de Santiago, a 20 de Abril de 91155. Mas a notícia do estacionamento do monarca em Viseu demonstra bem a sua grande atenção para com as questões de fronteira. E não seria de admirar que, já então, estivesse de pé a ideia de fundar uma sólida casa monástica no vale do Mondego, que servisse de retaguarda ao povoamento da terra coimbrã.
A presúria de Vila Cova pode ter ocorrido pouco tempo antes da reunião magna de 28 de Setembro de 911, em Aliobrio, pois o que o documento régio faz é apenas confirmar a apropriação da uilla e com o desígnio expresso de favorecer o mosteiro, numa altura em que este se encontraria em fase fundacional. Não se sabe quem levou ao rei o assunto da Vila Cova. Pode ter sido Lucídio Vimaranes ou mesmo Diogo Fernandes, o qual passou também a frequentar a Corte no momento em que o rei Afonso Magno começava a perder influência56. E voltará a estar junto a Ordonho, por exemplo, em Maio de 91257 e em 91558.
O ano de 912 parece ter sido crucial para a fronteira beirã e, possivelmente, nos preparativos da campanha militar de Évora, do ano seguinte. Entre Abril e Junho há três documentos de Ordonho a favor da basílica de Santiago. E a 30 de Maio o príncipe Ramiro aparece pela primeira vez no séquito do monarca, seu pai59. É possível que Ordonho tenha descido até Viseu e Lafões, regressando com o jovem príncipe à Galiza, que com doze a quinze anos de idade deixa a região que lhe serviu de berço a seguir ao nascimento. É mais do que provável a presença de Ordonho junto à fronteira, nesse preciso ano de ingresso do príncipe Ramiro no ambiente da Corte. Na verdade, são também dessa altura as duas epígrafes mais antigas da Beira Interior e que - é nossa convicção - estão associadas ao momento da fundação de mais dois mosteiros, em outras tantas áreas estratégicas da fronteira beirã: Lourosa da Serra e Trancoso60. Isto leva-nos a pensar que a via colimbriana, na sua obliquidade NE-SW, seria neste momento o marco de consolidação do movimento das presúrias e um trampolim para preparar novos avanços na parte ocidental do reino leonês.
Tal sucessão de acontecimentos, em datas relativamente prematuras da fase de repovoamento, pode induzir-nos a pensar que os membros do clã de Lafões, sentindo-se confortáveis nas margens do Vouga e seguros no seu solar de abrigo, iniciam desde logo uma campanha de expansionismo senhorial em direcção à bacia do Mondego. E nesse âmbito, cientes da instabilidade que aí ainda se vivia, talvez tenham pensado aproveitar o momento para aceder ao governo do condado de Coimbra. Este processo ia claramente contra os interesses da família do presor Hermenegildo Guterres, com quem poderiam querer ajustar contas antigas. A anterior tentativa do mordomo de Afonso Magno para alargar à sua estirpe o governo de toda a faixa atlântica até Coimbra, à custa da anexação das terras condais de Tui e Portugal, não podia ser esquecida pelos descendentes de Afonso Betotes e de Vímara Peres, que sobre elas sentiam direito em resultado da acção dos seus antepassados. Vários indícios apontam no sentido de uma possível concorrência entre os dois grupos durante a primeira metade do século X. Um testemunho dessa disputa pelo governo do condado de Coimbra, por parte das referidas linhagens, é o que parece evidenciar o documento que se segue.
II. A possível disputa pelo governo do Condado de Coimbra
[926-927].04.13 - Doações do presbítero Fradilani ao mosteiro de Lorvão, quando Ramiro era Rei, em Viseu, e Teodorico Lucides seria seu conde e provável governador de Coimbra61.
Este diploma diz respeito a uma doação do presbítero Fradilano ao abade João e aos monges de Lorvão, segundo a qual, após a sua morte, deixa um conjunto de bens situados nos actuais concelhos de Coimbra e Cantanhede. Entre eles, ocupam lugar de destaque a igreja de S. Martinho de Seliobria e uma outra igreja dedicada a Santa Cristina. O lugar de “Seliobria” corresponde ao sítio de Pedrulhais ou Pedralhais, na actual freguesia de Sepins. Nos séculos XII e XIII era conhecido como S. Martinho de Senobria ou Sonobra, havendo também uma menção a um castellum de Seliobriga62. Através de um documento setecentista, sabemos do achado de “pedras labradas, sepulturas de pedra, tijolos e telhas grossas”. Ainda hoje, a distribuição de vestígios arqueológicos se estende por uma vasta área, tendo em 1987 sido destruídos vários muros e um pavimento de opus signinum. Quem sabe se tais estruturas até estariam relacionadas com o primitivo templo, pois na Alta Idade Média usavam-se pavimentos muito semelhantes?! O local fornece materiais desde o Calcolítico e é de destacar o aparecimento de um alfinete em ouro, encontrado nas “chãs de S. Martinho” e adquirido pelo Museu Nacional de Arqueologia. Os vestígios romanos e medievais concentram-se na parte mais alta do lugar63.
Relativamente à igreja de Santa Cristina, o texto é um pouco ambíguo, devido a redacção defeituosa. A seguir à menção desta igreja, o articulado do diploma anota a doação “cum tota illa uilla iam supradicta seu et omnia ministeria que in ipsas ecclesias applicare potui”. E, a isto, acrescenta uma extensa enumeração de bens móveis e de gado diverso. Por isso mesmo, Jorge de Alarcão chegou a considerar a hipótese de tal templo se situar também em Seliobria. Mas em estudo posterior acaba por reconhecer que se trata de Sª Cristina de Coimbra, da qual o presbítero Fradilano e o rei chegaram, respectivamente, a possuir metade dos direitos de padroado, antes de os doarem ao mosteiro de Lorvão64. Aliás, já era esta a opinião de Rui de Azevedo65. Em nosso entender, é acertada tal conclusão. De facto, em 933, Ramiro II faz a doação de metade dessa igreja de Santa Cristina, a qual, segundo titula o códice, ficava junto à porta de Almedina. A oferta régia deu-se no tempo do abade Mestálio, para sustento dos frades e servir de hospício, “secundum illam primiter contestabit, post partem idem monasterio, Fradinani presbiteri”66. Como se vê, é o próprio monarca a aludir à anterior doação do presbítero Fradilano. O escriba trocou o l por um n, no nome do presbítero, mas não restam dúvidas que se trata da mesma pessoa. E se atentarmos melhor ao teor do testamento do clérigo67, a alusão à uilla dirá apenas respeito a S. Martinho de Seliobria e não a Santa Cristina. Depois de Fradilano citar as “meas ecclesias” pela ordem mencionada, passa a referir “tota illa uilla”, no singular. E só depois, ao descrever todos os bens móveis e o gado que pretende doar, é que vêm explicitados, no plural, “omnia ministeria que in ipsas ecclesias applicare potui”. Por fim, o texto conclui com a descrição do termo da referida uilla. Embora se reconheça que o diploma é algo confuso, julgamos poder afirmar que a vila é uma só, havendo a doação de uma segunda igreja. Poder-se-ia argumentar que existiram vilas possuidoras de mais do que um templo. É uma realidade. Mas, neste caso, não oferece dúvida o facto de o documento de Ramiro se estar a referir à anterior doação do presbítero Fradilano.
Resta saber onde, em Coimbra, se situava a igreja de Santa Cristina, já que na documentação dos séculos XI e XII nunca mais se fala de um templo com esse orago. Lembramos que o autor do cartulário deixou a seguinte nota, no cabeçalho da doação LT 1: “Inprimis testamentvm de Sancta Christina de Colimbria ad portam de Almedina”. Na opinião de Jorge de Alarcão, não seria o templo que precedeu a igreja românica de Santiago, cujo patrono anterior era S. Cucufate. Embora reconheça a dificuldade do tema, põe a hipótese - com pouca convicção - de o templo se situar no arrabalde, mas mais próximo da porta de Belcouce. Defende ainda que tenha desaparecido durante a segunda ocupação islâmica e não aceita a coincidência com a actual igreja de Santiago. Todavia, acaba por manter expressa alguma dúvida, condescendendo que “é muito provável que se situasse extramuros, junto da porta que depois se chamou de Almedina”68. Temos reflectido bastante sobre este problema e aos poucos, com novos dados, fomos evoluindo até formar a convicção de que se trata, efectivamente, do mesmo local.
A igreja moçárabe estava inicialmente dedicada a Santa Cristina, cuja festa litúrgica se realiza a 24 de Julho, ou seja, na véspera da de S. Cucufate. E a reconquista de Coimbra por Fernando Magno, em 1064, dá-se a 25 do dito mês, precisamente no dia de S. Cucufate e, também, de S. Cristóvão e S. Tiago. As festas religiosas dos dois primeiros são citadas nos Anais do mosteiro de Santo Tirso, exactamente a propósito das conquistas de Fernando I, de Leão: cita-se S. Cucufate para a tomada de Viseu e, para a reconquista de Coimbra, é invocado S. Cristóvão69. Eram apenas estas as festas do calendário litúrgico para o dia 25 de Julho, que, no século XI, estavam na mente dos monges beneditinos. Ora, é de ter em conta que a versão original deste chronicon remontará a 107970, ou seja, somente quinze anos passados do sucesso conimbricense. A dedicação do templo a Santiago ter-se-á dado já no século XII, remontando a 1137 a primeira referência ao novo orago71, mais ou menos na altura em que podia estar a pensar-se na reforma românica do templo. Esta renovada invocação terá sucedido porque, entretanto, a Historia Silense e o Codex Calistinus haviam-se encarregado de difundir a intervenção providencial do apóstolo de S. Tiago durante a conquista de Coimbra72.
Recuando agora no tempo, a suposta mudança de orago para S. Cucufate pode ter ocorrido numa ocasião também extraordinária, cerca de 70 anos antes, no preciso momento da entrada de Fernando Magno na cidadela de Coimbra, a 25 de Julho de 1064. Não será de admirar que a invocação de Santa Cristina se tenha renovado, em associação ao santo “libertador” da cidade, S. Cucufate, cujo ritual festivo começava na vigília da véspera, exactamente a par da cerimónia litúrgica do dia daquela santa. E a dedicação a S. Cristóvão - a outra igreja do arrabalde cujo orago, em 1116-1117, já incumbia a S. Bartolomeu - pode ter surgido num processo em tudo paralelo ao da sua vizinha da porta de Almedina. Já em trabalhos anteriores tínhamos defendido que, durante a 2ª ocupação islâmica, haviam encerrado todas as igrejas do interior da Medina, sendo o templo de S. Salvador, sito no antigo forum romano, o primeiro a ser simbolicamente restaurado no exacto ano da reconquista73. A renovação do orago das duas igrejas do arrabalde, que mais próximas ficavam da principal entrada da Medina, pode remontar ao mesmo momento da libertação de Coimbra, a 25 de Julho. O simbolismo desta data e o significado da vitória cristã foram de tal modo importantes para os seus contemporâneos, que devem ter dado origem a estas três cerimónias, em louvor de Cristo Salvador e em honra dos dois santos que “intercederam” a favor da vitória das tropas cristãs. Posteriormente, tal sucesso viria, inclusive, a justificar a doação de direitos sobre uma daquelas igrejas - a de S. Cucufate - à diocese de Compostela. E uma prova de que a igreja de Santa Cristina terá sido aquela que precedeu a de S. Cucufate/S. Tiago, encontramo-la na listagem dos bens devolvidos ao mosteiro de Lorvão, pelo bispo D. Gonçalo, no momento em que foi restaurada a independência da antiga casa monástica. Entre as igrejas a devolver no aro de Coimbra contam-se, em estreita sequência, “Sanctum Martinum de Sen(i)obria et ecclesiam beati Cucufati”74. Daí, poder também concluir-se que, em 1116, a dedicação a S. Tiago ainda não se havia concretizado.
A data deste diploma, LT 19, é igualmente problemática e por várias razões. As subscrições dizem respeito a personalidades quase todas documentadas apenas a partir dos anos vinte do século X. Na verdade, o monarca e três dos confirmantes voltam a surgir em conjunto no célebre documento de 928, relativo ao cumprimento da doação de Vila Cova. E analisando a cronologia de outros indivíduos melhor documentados, que aparecem a subscrever o diploma, chegamos aos seguintes resultados: Ramiro, rei em Viseu (926-931); Ximeno Dias (923-961); Gonçalo Moniz (928-981); e o bispo de Coimbra, D. Paio (928-931). A presença de Gonçalo Moniz empurra necessariamente este acto para os finais da década. Ele era então bastante jovem, apesar de seu pai ser o primeiro filho do conde Guterre Mendes75. Finalmente, há a observar que o diploma está dirigido ao abade Mestálio, que é o segundo na ordem do denominado “Chronicon Abbatum” e cujo governo monástico está balizado, pelo menos, entre 927 e 943.
Existem, porém, duas situações que importa comentar. O segundo bispo que aparece a subscrever a presente carta vem assim referido: “Froarengus episcopus”. Ora, segundo Carriedo Tejedo, há um Froarengo que foi bispo do Porto e cujo último documento conhecido data de 91876. Não se tratará provavelmente da mesma pessoa ou esta teria mudado de diocese numa fase avançada da vida, já que, como acompanhante do prelado de Coimbra, é mais lógico tratar-se de um bispo em Viseu. Sobre ambos, no LT 19 não se diz quais eram as dioceses a que pertenciam. No caso de D. Paio não existe qualquer dúvida. Quanto ao outro bispo tem todo o sentido pensar-se em Viseu, pois não é provável que se trate de Lamego e, no Porto, já aparece Hermógio desde 923. Acreditamos que possa ser o antigo prelado desta última diocese, já bastante idoso (pois exercia aquele cargo desde, pelo menos, os anos 905-906) e que, devido à sua madura experiência, possa ter sido chamado para Viseu ainda no tempo de Ordonho II, quando a cidade começava a adquirir nova importância no contexto da reconquista. O certo é que ele terá falecido pouco tempo depois, dado que em Dezembro de 928 já estava Salomão eleito bispo de Viseu. Tudo aponta para que a doação das igrejas de S. Martinho de Seliobria e de Santa Cristina de Coimbra tenha coincido com o ano de 927. Todavia, subsiste ainda um segundo detalhe problemático, pois o primeiro documento conhecido de Mestálio refere-se a 25 de Março de 92777, enquanto a 13 de Abril do mesmo ano, no diploma que estamos a analisar, ainda figura o abade João. Assim, apontamos cautelarmente para uma data aproximada entre 926-92778. Este intervalo de tempo em nada contradiz a possibilidade de estarem presentes tanto Gonçalo Moniz, como o bispo D. Paio, apesar de figurarem pela primeira vez em 928, na documentação conhecida.
O que importa realçar é que estaremos aqui perante mais um diploma atribuível ao período em que Ramiro foi rei em Viseu. E, neste caso, com a explícita assinatura enquanto “rex”. Ele vem acompanhado, logo a seguir, da subscrição de um até agora intrigante “Teodoricus comes”. Em tempos, na sequência de uma pergunta sobre a identidade deste conde, feita em amigável troca de correspondência com Jorge de Alarcão, entregámo-nos à tarefa de desvendar a sua possível linhagem. Viemos a encontrar este Teodorico entre 912 e 94279. Ele aparece a subscrever documentos de Ordonho II e Fruela II, assim como de patronos do mosteiro de Celanova (Fruela e sua mulher, Sarracina; S. Rosendo), e lavrados em benefício de vários institutos religiosos, como a catedral de Santiago, o mosteiro de S. Pedro e S. Paulo de Triacastela ou o de Celanova, já referido. Nos diplomas mais antigos assina apenas pelo prenome, mas identifica-se como Teodoricus Lucidi em 924, 936 e 942. Neste último ano é nomeado como “comes et dux”. E nestes actos aparece associado a outros membros de sua família, como Lucídio Vimaranes, Alvito Lucides, Rodrigo Lucides, Soeiro Lucides, Arias Alvites ou Paio Teodorigues. E ainda, conforme as situações, com nomes bem conhecidos da aristocracia galaico-portucalense, tais como Gonçalo Betotes, Telo Betotes, Hermenegildo Gonçalves, Paio Gonçalves, Diogo Fernandes, Ximeno Dias, Guterre Mendes ou Osório Guterres. Uma prova indirecta desta mesma relação familiar podemos encontrá-la na doação de Múnia Dias ao mosteiro de Lorvão, da uilla Teodorize80, que poderá ter sido fundada pelo seu cunhado, o conde Teodorico. O documento data de cerca de 951/955 e pensamos que esta e outras doações foram concretizadas no momento em que Múnia ficou viúva de Alvito Lucides. Isto porque o documento LT 58, para o qual tem sido apontado o ano 973, deve ser recuado para o intervalo de 928/929. Os seus subscritores são quase coincidentes com os do célebre LT 33, sobre Vila Cova, além de este segundo diploma evocar nos mesmos termos a memória de Bermudo Ordonhes. Entre novos subscritores contam-se Sancho Ordonhes (rei da Galiza entre 926-929) e S. Rosendo (bispo de Dume a partir de 925), o que reforça a credibilidade desta nossa proposta.
Tudo leva a crer, por conseguinte, que Teodorico Lucides seja mais um filho de Lucídio Vimaranis - não citado por E. Sáez - e que veio a ocupar um lugar de destaque junto do jovem rei Ramiro, quando este assentou trono em Viseu. Atendendo à sua posição de destaque no documento, logo a seguir ao monarca, e tendo em conta de que se tratava da doação de bens em Coimbra (igreja de Sª Cristina) e no “suburbio” da cidade (vila e igreja de S. Martinho de Seliobria), estamos em crer que, em 926-927, seria ele o conde de Coimbra. E, se dúvidas houver, basta comparar a singela fórmula da sua identificação neste diploma, com aquela outra do ano 966, quando Gonçalo Moniz, sem dúvida então conde de Coimbra, confirma o testamento de Sancho I ao mesmo mosteiro de Lorvão: Gundisalus Muneonis conf. 81. Num e noutro caso figuram em segundo lugar, logo a seguir ao rei. E, quanto a Gonçalo Moniz, nem sequer é identificado como “conde”, ao contrário do que sucede com o Teodoricus comes. No diploma que estamos a analisar82, Gonçalo Moniz já aparece activo na região de Coimbra, mas atrás das assinaturas de Teodorico Lucides e de Ximeno Dias. É possível que este último até tenha sucedido nas funções de conde de Coimbra, quando esteve a julgar o diferendo entre os homens de Vila Cova e Alquinitia83. Ou que estivesse a actuar ainda em nome do conde Teodorico, como seu directo auxiliar ou como representante dos interesses do clã de Lafões na zona de Penacova. O certo é que Teodorico não irá estar presente em Moçâmedes (Vouzela), quando em 928 é entregue Vila Cova ao mosteiro de Lorvão, satisfazendo o compromisso do falecido príncipe, Bermudo Ordonhes. Em contrapartida, encontram-se aí presentes Ximeno Dias, na qualidade de filho de Onega - senão também como delegado do conde regional84 - e o mesmo Gonçalo Moniz, que confirma o diploma a seguir ao sinal régio de Ramiro. Pode até ter acontecido que o diploma original tenha sido lavrado na quinta de Moçâmedes, apenas na presença das duas partes envolvidas, tendo sido depois levado à confirmação régia, em Viseu, onde na Corte estariam os três bispos subscritores, que não o comes Teodorico, ocupado nas suas funções de governador conimbricense.
É de referir, quanto a Árias Mendes, que E. Sáez defende que ele, tendo provavelmente sido nomeado por Afonso Magno para o cargo de conde de Coimbra, “debió abandonar cuando Ordoño II, cuñado suyo, se encargó del gobierno de Galícia por voluntad de su padre”85. A eminência de voltar a perder Coimbra para as forças muçulmanas, por volta de 907, poderá ter sido um dos motivos desse afastamento. Aliás, é nesta altura que também, segundo o mesmo autor, a aura de Hermenegildo Guterres começa a esmorecer86. O poder da respectiva linhagem, em nosso entender, terá ficado bastante abalado durante décadas (uma geração, talvez) após a senilidade de Afonso III, com quem o velho mordomo mantivera uma convergência de interesses. Hermenegildo já não aparece na documentação da Corte desde os primeiros anos do século X. A sua progressiva perda de autoridade, assim como a subsequente deposição e morte do rei protector, fez com que, a partir de agora, houvesse quem pretendesse saldar contas pela perseguição que, nos anos de glória, o conde Hermenegildo infligiu a certa nobreza galega, sua conterrânea. Só com Gonçalo Moniz as coisas parecem inverter-se e o condado de Coimbra se começa a consolidar e a ganhar verdadeiro poder regional. Ramiro terá percebido bem que, para suplantar as tensões existentes desde há décadas entre as principais famílias nesta parte do reino, era aconselhável entregar Coimbra a uma nova geração, na pessoa de um bisneto do presor da antiga Emínio, e colocar no condado de Portucale Hermenegildo Gonçalves, um herdeiro dos condes de Tui e aliado da descendência de Vímara Peres.
III. Notas arqueológicas e artísticas sobre o mosteiro altomedievo
Na literatura especializada, são pouco conhecidos os vestígios arqueológicos do mosteiro de Lorvão, não obstante terem sido efectuadas escavações no interior da actual igreja, que levaram à descoberta de uma parte da basílica altomedieva. Também tem sido pouco divulgado o já referido friso em mármore, que Nelson Correia Borges deu a conhecer. O seu esquema decorativo integra-se, sem hesitação, na corrente artística difundida na área da diocese de Coimbra, ao longo de todo o século IX. Na centúria imediata, as produções deste tipo parecem começar a rarear. Quanto à peça de Lorvão, ela já praticamente abandonou os cachos encapsulados, que são a principal marca distintiva desta corrente artística. Pode talvez vislumbrar-se um ensaio de orla contínua no primeiro motivo do lado esquerdo, mas ao longo do friso assume-se já uma clara evolução formal, libertando os cachos de uva desse exótico artifício (Fig. 2). Para além dos dados cronológicos fornecidos pelas mais recentes escavações na chamada casa de Tancinus, em Conímbriga, demo-nos ao estudo da difusão deste tipo de cacho, de características tão especiais87. Ele terá surgido na Antiguidade Tardia, em cerâmica norte-africana (Tunísia), e daqui passou à península itálica. A sua transferência para a pedra parece dar-se apenas no século VIII. Na verdade, a orla rígida ainda não está nos cachos de uva da escultura lombarda mais conhecida. Tudo indica que deve ter surgido em Roma, associada à renovação artística imposta pela Cúria papal a partir de Adriano I (772-795) e que prosseguiu com Leão III (795-816) e Pascoal I (817-824). O seu expansionismo acompanhará a acção dos bispos de Roma na busca de uma maior ligação pastoral à Cristandade do Ocidente. A permeabilidade não foi tão forte nas áreas do império carolíngio, dada a sua sólida identidade cultural - excepção feita para algumas regiões próximas da bacia do Mediterrâneo -, mas deu-se especialmente na Hispânia, na Ístria e Dalmácia e, com expressão mais reduzida, no sul de Inglaterra, tudo regiões onde chegaram missões papais. A existência destas últimas é reconhecida, embora escasseiem as fontes a esse respeito. No caso da Península Ibérica, em nosso entender, tal fenómeno terá surgido em redor do movimento gerado pela luta contra o adopcionismo88 e daí a explicação da presença deste motivo - na forma encapsulada dos cachos de uva - entre os dhimmi da diocese de Coimbra, que terão ficado fiéis à catequese romana.
O maior contributo no conhecimento de S. Mamede de Lorvão tem sido dado ao longo de décadas por Nelson C. Borges, que, em 1984, chegou a promover escavações arqueológicas no antecoro da actual igreja. Este investigador deu notícia do achado de materiais antigos e publicou várias imagens resultantes daquela intervenção, embora sem desenvolver comentários interpretativos a seu respeito89. De qualquer forma, os dados apresentados constituem um contributo precioso para o conhecimento do passado desta casa conventual e merecem ser melhor divulgados, justificando aqui a sua análise mais circunstanciada. Na realidade, colocou-se então a descoberto a parte mais significativa do templo alto-medieval e conseguiu-se ainda identificar o assentamento de alguns pilares da igreja românica, o que permitiu, neste último caso, entender como se desenvolvia o edifício do século XII e qual a sua relação com o anterior90. Já anteriormente havia indícios documentais que apontavam para uma basílica de três naves, que teriam, provavelmente, correspondência numa cabeceira tríplice e com absides redondas (cfr. reconstituição na Fig. 6)91. O levantamento arqueológico mostrou também que o templo pré-românico obedecia a um idêntico plano tripartido, se bem que de dimensões mais reduzidas e possuindo cabeceira plana (Figs. 3 e 4). As três absides do santuário do edifício altomedievo ocupam, com grande precisão, o espaço correspondente ao 2º tramo da nave central do edifício românico, contando a partir do pórtico da entrada. E a largura do templo mais antigo coincidia praticamente com a amplitude da nave central da basílica do século XII. Não foi possível escavar a maior parte da aula basilical, tendo apenas sido posto a descoberto o início das respectivas naves, que prosseguiam por debaixo do actual coro das freiras, o que impediu o prosseguimento da escavação.
Pela excelente fotografia publicada por Nelson C. Borges, vê-se claramente que a cabeceira terminava a leste por um único muro rectilíneo, do qual arrancavam as três absides (Fig. 4). Consultados vários reportórios de arquitectura hispânica entre os séculos VI a X, não resta a menor dúvida de que a tipologia desta parte do edifício aponta para a arquitectura asturiana, o que, de certo modo, confirma o que vínhamos a concluir a respeito da época em que surgiu esta comunidade monástica e da provável (re)fundação por um príncipe originário das Astúrias. Na verdade, nesta região do Norte peninsular é quase sistemático o uso de três capelas rectangulares na cabeceira, sendo esta fechada a leste por um muro rectilíneo. No caso de Lorvão, chama a atenção a extrema pequenez do vão que possuem os seus os anexos laterais, em contraste com o exagerado comprimento dos mesmos. Mas há que referir que nas Astúrias também existem capelas laterais demasiado estreitas, em oposição às generosas medidas da capela-mor. Restam fortes dúvidas quanto à reconstituição que fez F. de Selgas a respeito de Santianes de Pravia92. Mas podem citar-se os planos exageradamente distendidos das capelas laterais de Gobiendes, Nora e Tuñon e, em certa medida, até de S. Salvador de Valdedios93. Tomando a relação da largura interior das capelas laterais, face ao comprimento das mesmas, verificamos o seguinte: em Gobiendes 1,20m x 2,30m; em Nora 2,10m x 4,42m; em Tuñon 1,76m x 2,88m; e em Valdedios 1,45m x 2,19m94. No caso de Lorvão, ressalta o contraste, ainda maior, entre o estreito vão transversal de tais anexos relativamente ao excessivo comprimento dos mesmos. Nelson C. Borges fornece alguns dados métricos para a igreja românica, mas nada discrimina a respeito do edifício anterior. Consultando as duas plantas por si publicadas, à escala, podemos calcular aproximadamente as seguintes amplitudes nos anexos da cabeceira: 0,80m (larg.) x 3,50m (comp.). Tais compartimentos são tão estreitos que dá para questionar se seriam verdadeiras capelas ou se serviriam somente como anexos para a guarda de relíquias, objectos litúrgicos ou oferendas. Do ponto de vista estrutural, pode também pensar-se na função de um eventual reforço para sustentar a presumível abóbada da capela-mor, denotando, assim, a insegurança técnico-construtiva prevalente entre os artífices locais.
Ao observar com atenção a planta publicada pelo citado investigador, nota-se ainda uma certa anomalia no que concerne ao traçado de ambos os anexos. Embora não estejamos dentro dos detalhes da escavação, dá a ideia de que a entrada do anexo norte veio a ser bloqueada por um muro feito a posteriori. E que o acesso a este espaço tenha passado a realizar-se a partir de uma porta situada a meio da divisória com a capela-mor. Assim o faz crer a abertura visível nesse ponto da cabeceira, embora algo desfeita (Figs. 3 e 4). Isto leva-nos a questionar, por outro lado, se terá ou não havido, entretanto, uma adaptação funcional desse espaço para o transformar, por exemplo, como cartório ou tesouro, numa fase ainda anterior à construção da torre.
A abside central era igualmente mais profunda do que larga e possuía dimensões que estimamos em cerca de 2,20m (larg.) x 3,50m (comp.)95. É de uma amplitude bastante aproximada à da ousia de Santiago de Gobiendes (2,37m x 3,38m), a igreja que conserva anexos mais estreitos, mas aqui a capela-mor está lançada no sentido transversal, à semelhança de outros exemplos na região. As escavações da capela-mor revelaram vários enterramentos, devendo o central corresponder a alguém importante, ligado eventualmente à obra românica, pois surgiu num nível com aparência de pertencer a uma fase posterior (Fig. 3). Na verdade, sob a sepultura principal, ainda restavam os vestígios da sapata de assentamento do altar pré-românico (Fig. 4).
Como se disse acima, os arqueólogos descobriram também o início da aula basilical, que segue por debaixo do actual coro das monjas. O templo possuía três naves, que mantinham aproximadamente as mesmas larguras descritas para a cabeceira, como se pode observar nas ilustrações apresentadas. Tendo em conta as orientações programáticas da arquitectura asturiana, admitimos ainda a possibilidade de ter havido anexos salientes, encostados aos muros norte e sul da aula basilical. Porém, a interrupção da escavação arqueológica, no início do moderno coro das monjas, impede que se possa confirmar esta hipótese. Durante obras realizadas no século passado, apareceu “um fuste de coluna de mármore branco, 1,49m de alto, mais oval que cilíndrico, com terminações irregulares, em género de astrágalos, podendo ser de qualquer época muçulmana ou de sua influência, mas de aproveitamento de um romano”96. Pela altura da peça, é muito possível que tivesse pertencido à basílica, seja sob os arcos longitudinais das naves, seja na zona do arco triunfal. Não deve causar admiração o facto de, na divisória das naves, aparecerem alinhamentos contínuos de alicerce. Esta era uma prática corrente no assentamento de colunatas, como forma de reforçar a estabilidade dos respectivos pontos de apoio. O mesmo se passa com as aberturas da capela-mor e dos anexos laterais, onde o alicerce é contínuo (Fig. 3). Embora se desconheça a planimetria completa da aula basilical e se existiram ou não eventuais anexos, pode concluir-se que, em linhas gerais, a igreja de Lorvão teria uma organização espacial próxima da de San Adrián de Tuñon, fundada em 891 e cuja consagração teve a presença, entre outros, do bispo de Coimbra. Como alternativa, poderá pensar-se numa planta semelhável à do templo galaico-asturiano de La Corticela, o mosteiro criado pelo bispo Sisnando I de Iria Flavia, anexo à basílica de Compostela. Diga-se, porém, que em La Corticela se desconhece o remate ocidental da primitiva igreja. O mais provável é que tivesse quatro tramos, atendendo à distância que a separava do transepto da basílica românica.
Desde a década de 50 do século passado que está divulgada a existência de uma torre altomedieval, dissimulada na ala nordeste, onde acabou por se integrar durante a renovação desta parte do convento, por volta de 163097. Em nível superior, ela possui ainda a respectiva porta de arco em ferradura (Fig. 5). Porém, esta passagem foi entaipada e insensivelmente revestida a azulejo branco, durante a adaptação do edifício a hospital psiquiátrico, algo que agora poderá ser revertido com a anunciada adaptação do imóvel a hotel.
A torre encontrava-se originalmente afastada da igreja, como pode ver-se na planta que aqui publicamos (Fig. 6). É provável que não tenha sido demolida no século XVII, graças ao seu préstimo funcional e à importância simbólica que teria. Será bem possível que aí se tenham conservado, durante séculos, o tesouro e o cartório do mosteiro. No entanto, não parece que tal edificação haja sido construída logo desde o início. Ela poderá remontar ao século XI, acompanhando o processo de fortificação de diversas comunidades monásticas de Coimbra e arredores, onde estão documentadas torres adjacentes ao respectivo templo. Aliás, chama a atenção a diferença de escala entre a basílica primitiva e a imponente torre. No espaço que medeia entre esta e a igreja pré-românica haveria ainda outras construções para a instalação dos monges. Com provável acerto, Nelson C. Borges sugeriu a permanência de alguns traçados antigos, mas nada de substancial pode daí ser concluído sem a realização de escavações arqueológicas nesse sector98. Daí que preferíssemos nada assinalar na planta aqui publicada (Fig. 6).
Dois documentos falam-nos das agruras que os monges de Lorvão e os de Vila Cova sofreram após a reconquista deste território por Almançor, e que, devido a um incêndio, alguns deles se retiraram “in illa torre de Miranda”99. Os mosteiros foram atacados e os monges que conseguiram escapar, uns esconderam-se no mato e outros refugiaram-se na torre que julgamos estar na origem do castelo de Penacova. Isto devido à sua especial posição estratégica no controlo da passagem do Mondego (Fig. 7)100 e pela inequívoca informação de um documento do ano 980, que localiza a já citada uilla de Alquinitia e a igreja de S. Martinho “in territorio de Miranda”101. Vários autores têm identificado esta passagem com Miranda do Corvo, mas tal é insustentável, pois o seu castelo fica a maior distância de Penacova do que desta povoação à própria cidade de Coimbra. É bom não esquecer que, inclusive, as tão propaladas Vilas Cova eram consideradas, no século X, como pertencentes à área coimbrã: “et est ipsa uilla suburbio Conimbrie et diuidet cum alia Uilla Coua”102. Por maioria de razão, devemos pensar que seria bem mais lógica uma citação do “território de Coimbra”, do que remeter para Miranda do Corvo. Ora, quanto ao territorio de Miranda citado ainda do século X, o que devemos estar em presença é de uma memória da micro-organização territorial na bacia do Mondego, herdeira de um período até anterior à época das presúrias.
IV. A reconstituição da presúria de Penacova e suas sequelas
Antes de abordarmos este tão sugestivo tema, importa realçar o valor estratégico do lugar. A zona de Penacova possuía uma posição privilegiada no controlo da travessia do rio, seja para quem vinha de sul, seja contra qualquer avanço que pudesse ser ensaiado por via fluvial, que da costa viesse em direcção à Beira interior. E vale a pena lembrar o documento já aqui analisado, com data crítica do ano 911, que chega a denominar a passagem junto a Vila Cova, como “portu de Latrones”103. Terá sido para combater esta situação que se promoveu o encastelamento da zona, num processo certamente paulatino e que foi crescendo em rede. É até bem possível que a origem de tal fenómeno possa ter surgido de forma simples e espontânea. Pode ter sido fruto da necessidade sentida pelas populações locais, na sequência da instabilidade que acompanhou a queda do Império romano até à conquista árabe da Península. Esta hipótese é alicerçada, inclusive, na circunstância do castelo ter nascido, não na “uilla” senhorial ocupada por presúria, mas sim no sector afecto aos herdadores alodiais, descendentes dos antigos habitantes da localidade, desde sempre ligados à terra.
O castelo de Penacova já estava em ruína em 1755, tal como o palácio dos condes de Atouguia, herdeiros do morgadio da vila, instituído pelo rei D. Dinis. Da torre de menagem só restava de pé a parte do Ocidente104. Porém, a posição altaneira do castelo está ainda bem patente na gravura que representa a travessia do Mondego pelas tropas de Wellington, em direcção ao Bussaco, em 1811 (Fig. 7). O castelo ficava no chamado monte de Nossa Senhora da Guia, uma das elevações sobranceiras ao rio, cuja designação muito deve à capela aí construída no século XI, onde o respectivo orago105 deixa entrever a função referencial do lugar, em termos visuais e militares. É a esta função de controlo sobre eventuais movimentações hostis, através do vale do Mondego, que também reporta a designação medieva de “torre de Miranda”. Aliás, no início do século XX lá existia um “Mirante”, o qual parece ter substituído a estrutura visível na gravura inglesa de 1815, na parte inferior do castelo (o paço dos morgados da vila?). Uma excelente fotografia “do lado do penedo”, antes das reformas que descaracterizaram o monte, vem publicada em 1909 na revista Serões. Ainda lá se vê com toda a clareza a zona do castelo, o mirante e a altaneira capela da Senhora da Guia (Fig. 9). Este conjunto foi destruído por volta de 1930, para dar lugar ao Preventório de Penacova, por iniciativa do médico Bissaya Barreto. Depois da extinção desta unidade hospitalar, o edifício acabou adaptado a hotel.
A propósito das funções militares de Penacova, temos ainda a suspeita de que no Penedo do Castro, sobranceiro ao lugar onde Nelson C. Borges localiza o núcleo da primitiva Vila Cova, existiu um facho de comunicação à distância. Não é o “penedo” do castelo, acima referido. “Segundo relatos antigos”, já se chamou Penedo do Cambo106, designação esta que julgamos derivar do dispositivo que aí existiu, para envio de sinais luminosos ou de fumo. Não raras vezes, o facho possuía um braço comprido e dobrado na ponta, para dependurar a respectiva gaiola ou caldeirinha. É uma solução já utilizada pelos romanos e que vem representada na célebre Coluna de Trajano (Fig. 10). Repare-se que aqui, ao lado da torre de sinais, aparecem medas de palha e uma pilha de toros de madeira, os combustíveis necessários para realizar mensagens por fumo ou fogo, conforme as circunstâncias. Na imagem vê-se o enorme braço com a ponta incandescente. Em Portugal, ainda se conservam algumas gaiolas em ferro que ficavam penduradas no mastro dos fachos, para exibir os sinais de fogo (Fig. 11)107. Tanto na época romana, como na Idade Média, as comunicações eram processadas em rede, através de postos de vigilância e da emissão de sinais, regra geral luminosos ou sonoros. Isto, sem esquecer o uso de estafetas ou de pombos. Durante o dia poderiam existir outras sinalizações ópticas (espelhos, bandeiras, fumos). Mas para enviar sinais de fogo ou de fumo, nem sempre era necessário recorrer a estruturas muito sofisticadas. Bastaria uma fogueira ou caldeira incandescente.
No Penedo do Castro pode nunca ter existido uma torre de alvenaria, pois havia a possibilidade de utilizar um dispositivo mais ligeiro. Quanto à actual designação do Penedo, ela pode originar confusão, dado que apenas foi atribuída modernamente, em homenagem ao bibliófilo e investigador conimbricense, Dr. Augusto M. Simões e Castro. Não se trata aqui de qualquer povoado ou fortificação de origem proto-histórica. É antes uma alta penedia, a partir da qual se alcança um imenso horizonte visual. Daí pensarmos que, na Idade Média, seria um ponto essencial para observação e comunicação. Como dissemos acima, era também conhecido por Penedo da Cheira e deu nome ao lugar que lhe fica mais próximo. Este topónimo “Cheira” terá igualmente a ver com a função de facho, pois deriva do latim flagrare, que na sua forma clássica significa “arder”. Mas a partir do latim vulgar derivou semanticamente para o sentido “exalar odor” ou “dar cheiro”, algo que também as fogueiras emitem108. O termo “Penedo da Cheira” é usado no mesmo sentido que se dá ao “Cabeço da Chama”, na Serra do Açor.
A fotografia que publicamos na Fig. 8 109 foi tirada precisamente do altaneiro Penedo do Castro. Esta imagem corresponde a um período em que Penacova ainda conservava um grau de desenvolvimento não muito distante relativamente à ocupação medieval do sítio. A perspectiva escolhida pelo fotógrafo é preciosa nesse sentido, pois vê-se com toda a clareza o morro do castelo e um conjunto de espaços que suscitam reflexão mais detalhada. A fortificação mal se distingue, em contraste com o protagonismo da capela de Nossa Senhora da Guia, devido à brancura da sua silhueta. Em artigo assinado por David G. Almeida cita-se uma crónica de meados do século XIX, que fala da última reforma desta capela, no ano de 1783, e onde se diz que ela ficava “entre duas gigantescas muralhas da antiga era”110. É eloquente a posição do castelo como sentinela na curva do rio. Mas a fotografia revela-nos ainda outros detalhes da maior importância. Em primeiro plano, vemos os campos lavrados de Cheira, que aproveitam uma zona de pouca inclinação, com bom potencial agrícola. Este pormenor confere suficiente credibilidade à proposta de Nelson C. Borges, baseada em documentação conventual, de que seria aqui a Vila Cova confirmada ao mosteiro em 928.
A imagem que estamos a comentar mostra ainda a zona de expansão inicial de Penacova, a primeira a urbanizar-se, dentro do castelo e seu arrabalde imediato111. Constata-se um desenvolvimento quase plano, em tudo semelhante aos campos de Cheira. Daí ser muito verosímil estarmos diante da outra Vila Cova, aquela que inicialmente se manteve ocupada por herdadores independentes. A relação de proximidade entre os dois sítios e a semelhança das suas características topográficas, mais sugerem estarmos aqui perante ambas as Vilas Cova. Este paralelismo é demasiado eloquente e ajuda a compreender a sua comum identidade toponímica, derivada certamente de um momento anterior à presúria, cuja negociação ou pressão de cedência, da parte da hoste galaico-asturiana, terá levado a repartir o espaço entre autóctones e as gentes do presor.
Com base na documentação coeva - apesar dos problemas diplomáticos enunciados -, devemos estar diante de um dos raros exemplos em que parcialmente se pode reconstituir um processo de presúria e as sequelas a ele associadas. No relato inserido no compromisso de 911 fala-se de uma “uilla” demarcada por “terminis antiquis” e “cum suis parietes et suis uiciis”112. É possível que um desses uici fosse a futura Penacova, que se manteve na posse dos trabalhadores alodiais que já aí viviam antes da presúria. Outro uicus poderia ser a Granja do Rio, que ficou a pertencer ao sector tomado por presúria. Quanto a parietes, não sabemos se nesta palavra estão supostas casas em uso pleno ou se há uma alusão a meras ruínas. Nesta última hipótese, poder-se-ia imaginar que tenha havido uma retracção das zonas de habitat, durante a primeira fase de ocupação islâmica, concentrando-se a população mais em redor do morro onde surgiu o castelo, por necessidade de defesa. Em contrapartida, a outra parte da uilla poderia ter casebres já em ruína, sendo negociada a sua entrega aos novos colonos, para lançarem as bases da povoação de Cheira, como assento principal da terra apresada. Estamos em crer, porém, que também esta área continuaria a ter os campos lavrados por rústicos locais. E havia, mesmo, alguém que aí se destacava e que decidiu - ou foi obrigado - entregar-se à protecção do novo senhor. É o que deve concluir-se da circunstância de Picon se ter tornado servo, precisamente na sequência da presúria dos terrenos desta parte da vila: “secundum eam [uilla] preserunt tui serui” (“segundo aquela vila apresuraram ao teu servo”).
Antes mesmo da entrega definitiva da propriedade ao mosteiro de Lorvão (928), este continuou a receber novas dotações em redor. Já referimos a doação da vila de Algaça e dos vilares de Louredo e Sautelo, pelo rei Ordonho II113. E em 927, talvez já na perspectiva da concretização da entrega definitiva de Vila Cova - com Bermudo Ordonhes à beira do fim e desejoso de cumprir a promessa -, os monges irão comprar ao presbítero Samuel e demais herdeiros as partes que possuíam no “porto de Uilla Coua”, com sua várzea114. O quinhão vendido ao mosteiro ficava em frente à Granja do Rio e estendia-se pela margem esquerda até confinar com a “uilla de Alquinitia”. Os monges estavam, assim, a assegurar o monopólio da travessia naquele lugar e a garantir melhor segurança no acesso ao rio, precisamente numa zona que, no diploma de 911, era ainda designada como “portu de Latrones”. E só com a precedência do documento de 927 se pode explicar que, no ano seguinte, se fale nos novos limites da vila, a qual, a partir de agora, passou a contar com terrenos nas duas margens: “diuidet cum alia Uilla Coua et cum Alquinitia et Olibaria”115.
A expansão da propriedade monástica foi acompanhada por certa tensão com os vizinhos, talvez em resultado de algum abuso ou indisfarçada pressão, por parte dos monges. Disto resultou que, poucos anos depois, há uma queixa dos homens livres de Alquinitia, que recorrem ao conde Ximeno Dias, em 936, para julgar a disputa existente sobre os limites entre as duas vilas116. Esta era uma zona crítica para as ambições do mosteiro, dado que a ligação mais importante de Vila Cova à via colimbriana partia da Granja do Rio, usando a barca da Ronqueira, lugar onde chegava o ramal de ligação à estrada da Beira e em que o topónimo “Travassos”, junto à margem sul, estaria a sinalizar o ponto de chegada de viandantes. E o próprio termo “Ronqueira” deve evocar a antiga existência de sinais sonoros de aviso ou reconhecimento. Os limites do termo monástico, na margem sul, começavam próximo da Carvoeira - “inter ambas Uillas Couas” -, subiam depois pelo Sanguinho, viravam a sul até Outeiro, aí fazendo fronteira com Oliveira, para depois flectirem de novo em direcção à margem do rio, um pouco antes de Louredo117. O juiz Ximeno Dias, como compensação de ofício, reservou para si parte da várzea, com seu porto, mas voltará a entregar estes bens ao mosteiro dois anos mais tarde118. Porém, os problemas com os habitantes da periferia não desapareceram, pois o mosteiro ia adquirindo novos bens e, paulatinamente, alargando em redor a sua influência119. Adquire inclusive várias igrejas e um pequeno mosteiro, que reforçarão o domínio espiritual e temporal sobre as populações à volta: S. Martinho, na vila de Alcainça (980); mosteiro de Vila Cova (998); Santa Eulália, em Penacova ou nas imediações (1098).
Esta expansão dominial deu origem a novas reclamações e veio a avivar problemas antigos. É o que se deverá concluir da função arbitral do conde D. Henrique, em 1105. O mosteiro de Lorvão, aliás competindo com o da Vacariça e a própria Sé de Coimbra, vai adquirir também bens em Penacova. Suspeitamos mesmo que o tal mosteiro de Vila Cova ficaria nesta parte. Como corolário desse seu ímpeto expansionista, os monges de Lorvão pretendiam “fazer passar o limite de Vila Cova pelo meio do castelo de Penacova e por unam petram que erat super pelago de Seren in medio ribulo e os homens de Penacova sustentavam que o limite passava pela ribeira de Abarqueira”120. Esta ribeira fica a ocidente de Cheira, o que leva a concluir que os habitantes de Penacova, descendentes dos proprietários alodiais do tempo da presúria, não estavam esquecidos de reclamações antigas e terão aproveitado o momento para subir a contestação. Desafiados pela cobiça dos monges e, talvez, conscientes de que o mosteiro se encontraria numa posição mais frágil, face à política anti-moçárabe de Afonso VI, recorreram para o conde D. Henrique, procurando ainda recuperar o termo de Vila Cova/Cheira na parte correspondente à sua dimensão original, fixada no limite da Abarqueira. O conde D. Henrique não atendeu as pretensões dos monges, tendo determinado o limite entre Penacova e Vila Cova “per penedos que sunt inter Pena Cova et Avarqueira, impronante a petra coguluda qui stat in cabo de vineas”. Ou seja, no fim da parte agricultada, podendo os tais penedos coincidir com os pequenos esporões situados abaixo do caminho que desce de Chaínho para Cheira e entronca a meio da via de ligação desta última com Penacova, à cota superior121. Da sentença do conde D. Henrique pode ainda verificar-se que a área da Vila Cova afecta ao mosteiro tinha aumentado consideravelmente na última centúria. Os limites do respectivo termo, na parte ocidental, estendiam-se agora até à Ribeira de Valbom, próximo da actual fronteira com o concelho de Coimbra e, para norte do rio Mondego, embora os dados não sejam tão explícitos, tendia já a envolver o próprio mosteiro de Lorvão.
Esta nossa interpretação sobre “ambas Uilla Couas” é perfeitamente compatível com os dados contidos num Livro de Índices do mosteiro, do século XVIII, transcritos através de Jorge de Alarcão, por amável informação de Nelson C. Borges: “Villa de Penacova e Cheira / Tem este Mostº alguas propriedades / dentro na villa de Pena Cova e seu / limite, e Cazal de Cheyra que antigam.te / se chamava Villa Cova”122. A dita herdade de Vila Cova/Cheira, directamente vinculada ao facho do Penedo do Castro, distingue-se não só pela sua amplitude - recordemos que englobaria a Granja do Rio e se estendia, logo em 928, até aos limites de Louredo, na margem esquerda do Mondego -, mas também pela função estratégica, com o seu posto de observação e comunicação inter-regional. Coincide com o já referido Penedo do Cambo ou da Cheira, acerca do qual, também nas Memórias Paroquiais de 1758, no relatório sobre Penacova, ao aludir à elevação serrana existente sobre a vila, se anota que no extremo ficava o chamado “Cabeço do Alarde”. Esta outra designação - a somar às duas anteriores - induz a pensar que aí chegou mesmo a existir uma guarnição militar. Não seria apenas um mero posto gerido por gente local. Não sabemos a que época remonta tal designação, embora seja um termo de origem árabe (al-ardh). Porém, o que não pode deixar de se acentuar é que esta Uilla Coua dos LT 33 e 47 foi um elemento relevante do processo fundacional da casa monástica de Lorvão e da colonização galaico-asturiana no médio Mondego.
Tanto Lorvão, como Penacova, são claros testemunhos da existência de um povoamento cristão anterior à fase das presúrias, o qual acabará por ser parcialmente absorvido e radicalmente transformado por estas últimas. É possível que, no início da Alta Idade Média, a população cristã herdeira da paróquia sueva de Lurbine tivesse uma existência relativamente pacífica e quase autossuficiente. Esta situação veio a alterar-se com a acção desencadeada a mando de Bermudo Ordonhes, em possível articulação com o príncipe Ordonho, de modo a fortalecer a fronteira do Mondego e consolidar a mais recente expansão do reino asturiano. Bermudo ficara fisicamente diminuído desde a primeira revolta contra o rei, seu irmão, que o mandou cegar. Um dos seus auxiliares terá sido Idris, um árabe de nobre linhagem que - por motivo desconhecido - poderia estar também refugiado junto da Corte de Lafões. É bem provável que tenha sido ele a comandar, no terreno, a apropriação de uma parte da Vila Cova. Apesar da posse da metade ocidental da uilla ter sido entregue por uma vida a Bermudo Ordonhes, é possível que, já a partir de então, esta terra pudesse estar a ser explorada em benefício dos monges de Lorvão, por herdadores dependentes do príncipe asturiano, o patrono do mosteiro até ao ano de 928123. Tratar-se-ia de um meio de sustento algo semelhante ao que vem consignado documentalmente, um pouco mais tarde, acerca das rendas devidas por treze rendeiros dessa Vila Cova124. Em certa medida, nos inícios do século X, poderemos estar aqui perante uma situação próxima daquela que é referida também a respeito de S. Miguel de Negrelos (Guimarães), cujos patronos tomaram a respectiva uilla por presúria e aí fundaram um mosteiro. Neste caso, uilla e mosteiro coincidem no mesmo espaço. Mas é de realçar o testemunho que os fundadores dão das benfeitorias que realizaram na sua propriedade, sublinhando que o bispo “ordinauit... que fecesemus ei date et ingenuassimus eam”125. À semelhança disto, a exploração da Vila Cova/Cheira poderia ter funcionado precisamente como propriedade ingénua, ao serviço do mosteiro, passando mais tarde para a propriedade plena deste último, em obediência ao acordado entre Ordonho II e o príncipe Bermudo. A sua maior vizinhança ao mosteiro e directa relação com o vale do Mondego, assim como a anterioridade cronológica da documentação que lhe diz respeito, levam a concluir que a exploração de Vila Cova possa ter feito parte do dote associado à fundação do cenóbio laurbanense.
Com o movimento das Presúrias assiste-se, assim, à intensa reforma senhorial do território e ao acentuar da militarização desse espaço, cuja unicidade é espelhada na designação “territorio de Miranda”. A reconquista de Almançor trouxe alguns momentos de instabilidade, mas talvez temporários. E, de facto, há indícios de que o mosteiro de Lorvão, após a conquista de Almançor, tenha conseguido recuperar alguma da sua pacífica existência e haja conservado os pontos estratégicos em que assentava o seu domínio em redor126.
Estamos em crer que o posicionamento militar e administrativo das autoridades muçulmanas se deslocou ligeiramente para montante, deixando a área de Penacova mais à conta dos monges de Lorvão. Tais autoridades estariam especialmente preocupadas em controlar o importante nó localizado na confluência do Dão e do Mondego, um ponto sensível das ligações entre Coimbra e a Beira interior, incluindo o acesso à estratégica cidade de Viseu. É o que nos levam a crer dois topónimos aí existentes e de significado complementar: “Porto de Raiva” e “Almaça”. No primeiro caso, estamos quase seguramente perante um ribat, que controlava o mais sinuoso meandro do rio, para reforçar a defesa do lugar onde deveria estar sediado o “superintendente da terra” (al-massâh). Em Castelo de Paiva, no vale do Douro, existe também o topónimo “Raiva”, que um documento de 1062 ainda refere como “Arrabia”, derivado do árabe “ar-râbita” ou “ribât”127. Quanto a Almaça, é hoje um lugar pertencente ao concelho de Mortágua e cuja localização, na confluência da ribeira do mesmo nome com o rio Mondego, lhe conferia bastante segurança nesse conturbado período altomedievo. É quase certo que aí estacionaria algum representante do governo cordovês. Há mesmo a passagem de um documento, do ano 998, que se refere já a essa autoridade regional que, pelo menos no início, agia com alguma hostilidade para com os monges: “que illis peteuat potestate qui erat in illa terra”128. Estamos em crer que tudo isto tenha acontecido somente após a reconquista de Almançor (987), dada a circunstância de que, no que respeita aos ribats com fins paramilitares, a sua proliferação somente terá ocorrido depois de meados do século IX, sendo por isso improvável que tivesse aí funcionado algo do género antes das primeiras presúrias. Além do mais, a região não tinha, até essa altura, a importância estratégica que lhe veio a ser reconhecida no século XI, com os cercos cristãos a Viseu e a Coimbra.
A concluir, não é de mais sublinhar que o Liber Testamentorum reserva ainda surpresas insuspeitas, convocando novas pesquisas, interdisciplinares e de contexto. Apesar do esforço realizado para melhor entender e difundir o cartulário laurbanense, através da edição analítica integrada na série “Fuentes y Estudios de Historia Leonesa” (2008), subsistem muitos problemas de ordem cronológica e de interpretação do próprio conteúdo de certos diplomas129. Com este estudo, procuramos demonstrar isso mesmo, socorrendo-nos também da arqueologia e da análise estilística de uma escultura coeva, para rever o controverso enigma das origens medievais do mosteiro de Lorvão130.