Introdução
Este texto procura estudar o cavalo no espaço geográfico e no tempo próprios da formação de Portugal, de modo a preencher um vazio existente na historiografia portuguesa, que, de um modo geral, apenas tem considerado o cavalo como um instrumento de guerra2. Assim, pretende-se dar uma nova faceta ao estudo deste animal, trabalhando-o de um prisma histórico-social, económico, político e quotidiano. Não é posta de parte a existência de uma vertente militar associada ao cavalo, nem é pretendido desvalorizar esse plano. Contudo, esse não vai ser o ponto central deste artigo.
Este estudo engloba o período entre os séculos X e XIII. O espaço temporal definido tem início, pois, durante o processo de reconquista cristã e acompanha-o até ao reinado de D. Afonso III, marcado pela conquista definitiva do Algarve. A limitação cronológica superior deve-se, em parte, ao aparecimento de fontes como o livro de alveitaria do Mestre Giraldo, que já estão relativamente bem exploradas. É certo também que, à medida que nos aproximamos dos finais da Idade Média, os contributos historiográficos aumentam. Desta forma, limitamos a análise, essencialmente, ao século XIII.
Contextualização
Os equídeos mereceram a atenção de tratadistas desde muito cedo. Refira-se a Historia Animalium, do século IV a. C., de Aristóteles. Esta obra, já fazia diversas referências a doenças que afetavam o cavalo, ilustrando a preocupação com este animal na época3. Seguiu-se, ainda na Antiguidade Clássica, a Digesta Artis Mulomedecinae escrita por Flavius Vegetius Renatus, no século IV d. C.4. Contemporâneo desta obra é o fantástico “Mosaico dos Cavalos”5, pertencente ao Museu Nacional de Arqueologia, que foi encontrado na Villa Romana de Torre de Palma e que impressiona pelo pormenor com que estão representados cinco cavalos intitulados pelas denominações: Inacus, Hiberus, Leneus, Lenobatis, Pelops6.
Já dentro da Idade Média e no contexto peninsular ibérico, entre os séculos VI e VII, Isidoro de Sevilha escreveu De Animalibus, que corresponde ao livro XII das Etimologias, onde aborda, entre outros animais, justamente, o cavalo7. Em meados do século X foi composto o Hippiatrika, que reuniu 420 lições acerca da criação de animais e de doenças que poderiam ter8. Três séculos mais tarde, surgiu a De Medecina Equorum, por Jordão da Calábria, um físico e veterinário da corte de Frederico II, do Sacro Império Romano-Germânico. Outra importante obra é o Livro de Alveitaria, de Lourenço Russião que terá sido uma importantíssima fonte para os primeiros tratados portugueses9.
O primeiro tratado de alveitaria, em Portugal, foi escrito já no reinado de D. Dinis, e por sua vontade, pela mão do Mestre Giraldo10. O Livro d’alveitaria pera quallquer besta que quiseres, é uma fantástica fonte para o estudo do cavalo. É necessário destacar, ainda neste tópico, que a primeira obra, acerca de medicina animal, do qual temos conhecimento em território português, surge no testamento de Mestre Gil em 1257, onde é feita a referência a um livro que trata a anatomia e cura de cavalos11.
O cavalo, durante a formação do reino de Portugal, era um autêntico barómetro social. Através dele era possível ascender socialmente e manter um conjunto de direitos ou privilégios e a sua perda, caso não fosse restabelecida, podia colocar o estatuto do cavaleiro em causa. Os concelhos medievais, em cujos forais se legisla justamente sobre os cavaleiros-vilãos e o seu estatuto social, em função de terem ou não cavalo, das suas perdas na guerra e modos de recuperação do mesmo, são a prova disso. É certo que todos os vizinhos do concelho eram homens livres, porém, é nítida a divisão que se estabelecia entre dois grupos: o dos cavaleiros-vilãos e o dos peões12. José Mattoso refere: “Que os cavaleiros constituíam no concelho uma verdadeira aristocracia, já se pode imaginar quando se sabe o valor que o cavalo de guerra tem durante os séculos XII e XIII”13. Assim, a posse de um cavalo, “que se considera ora como uma obrigação ora como um direito” 14, usando-o ao serviço do rei, garantia uma série de direitos, e deveres, que constituíam um estatuto social bastante distinto dos restantes vizinhos do concelho.
A ligação das gentes do medievo ao cavalo, no espaço que hoje é Portugal, não passa despercebida na toponímia. São vários os topónimos, que surgem na documentação medieval, que têm uma clara ligação aos equídeos e sobre os quais podemos considerar alguns exemplos. O atual rio Asnes, na região de Tondela, surge referenciado em diferentes documentos como riuulum de Asinis15, riuulum de Asinos16 ou rivuli Asinorum17, havendo neste caso uma clara ligação ao termo latino asinus, que significa asno ou burro. Também aparece o riuulo de Caualos ou Kaualos18, fazendo referência ao atual rio de Cavalos, em Vale de Taipa, ou ainda o mons de cauallus19, aludindo, talvez, ao atual Monte Cavalinho, em Guimarães. Estes são apenas alguns exemplos dos muitos que podemos encontrar na documentação medieval.
Criação de cavalos
Henrique da Gama Barros, em 1922, tratou a “Creação de cavallos”, na História da Administração Pública em Portugal20, porém, a sua análise parte de meados do século XIV. João Gouveia Monteiro também estudou a “criação e manutenção dos cavalos” no âmbito da obra Guerra em Portugal nos finais da Idade Média21, no ano de 1998. Mais recentemente, Miguel Gomes Martins dedicou um subcapítulo de A Arte da Guerra em Portugal :1245 a 136722, ao cavalo. O mesmo autor retomou o assunto em “Armas e cavalos: os arsenais e as coudelarias das Ordens Militares em Portugal na Idade Média”23. Todavia, estes preciosos contributos acerca do cavalo e da sua criação são mais focados no contexto militar, incidindo, sobremodo, sobre os séculos XIII a XV.
Tal como nos mostram os trabalhos acima referidos, nos finais da Idade Média é visível a preocupação dos monarcas com a falta de bons cavalos em Portugal. De facto, com a conquista do Algarve perdia-se, por um lado, uma motivação para a dispendiosa manutenção destes animais e, por outro, uma fonte de aquisição de boas montadas fruto da captura dos mesmos ao inimigo24. Esta situação aparece--nos espelhada, ainda antes da formação do reino, numa carta de doação e couto, de 1110, onde o Conde D. Henrique pede a Bernaldo Francês, como contrapartida da entrega de cinco casais, um bom cavalo trazido da terra dos mouros25. Ressalvamos a interpretação de Armando de Almeida Fernandes, que diz ser, o cavalo, “obtido em assalto aos mouros ou em comércio com eles”26. De qualquer forma, seja capturado à força ou comprado, há a expressa ordem do Conde D. Henrique para que o cavalo viesse de terras dominadas por mouros.
João Gouveia Monteiro refere - alicerçando-se nas palavras de Ralph H. Davis27 - que no Noroeste europeu, até ao século XI, os cavalos indígenas seriam, por um lado, bastante limitados em número e, por outro, de pequenas dimensões28. Contudo, tal como veremos adiante, esta visão não é propriamente precisa e, a par disso, no caso Peninsular, a situação seria algo diferente. Efetivamente, a Hispania seria na Idade Média um lugar de boas montadas, que já na Antiguidade Clássica eram reconhecidas como tal29.
Neste contexto, não é difícil entender as palavras de admiração do cruzado Raul quando, em 1147, chegou à região de Lisboa: “Nos seus campos espinoteiam éguas de surpreendente fecundidade, pois, ao serem bafejadas pelos favónios, concebem do vento e, depois, atacadas pelo cio copulam com os machos, assim se acasalando com o sopro das brisas”30. No entanto, até chegarmos aos cavalos que existiam no final da época medieval, parece ter-se processado um fenómeno muito lento de manipulação da espécie equina, que se foi desenvolvendo ao longo de vários séculos, ao qual a Península Ibérica não foi alheia31.
De uma forma geral, os equídeos da época medieval não teriam a estatura de um cavalo atual.32 Contudo, será correto considerar que estes animais eram pequenos para a época em que se inseriam? Um estudo zooarqueológico recente considerou um total de quase 200 ossos de cavalo, retirados de 38 sítios arqueológicos em Londres33. Este trabalho permitiu analisar vestígios de equídeos num intervalo de tempo que se estende desde 1220 até 1900. O período considerado entre 1220 e 1350, que mais nos interessa, demonstrou que a altura média da cernelha daqueles animais era de 1,42 metros e a estatura máxima verificada de 1,63 metros34. É de destacar que estas medidas não incluem o pescoço e a cabeça do cavalo, uma vez que usualmente se utiliza a cernelha como ponto máximo para a medição da altura. Embora estes cavalos não pareçam propriamente grandes, devemos ter em conta que a estatura do homem na Idade Média não seria igual à de hoje. Um estudo que se dedica à estatura dos indivíduos que habitaram Portugal, desde o Mesolítico até ao século XX, apresenta duas estimativas, calculadas segundo diferentes fatores, para a estatura do Homem medieval em Portugal, sendo uma de 161cm e outra de 160cm35 .
Assim, se estabelecermos uma comparação entre o maior cavalo analisado em Londres entre 1220 e 1350, no estudo antes referido, e a altura normal de um indivíduo do sexo masculino, podemos perceber que um homem comum medieval seria, sensivelmente, da mesma altura da cernelha de um cavalo de grandes dimensões. Caso o pescoço e cabeça do cavalo fossem tidos em conta, a altura deste animal superaria largamente a altura de um homem36.
No território português medieval, os maiores interessados na criação de gado cavalar seriam os monarcas. Porém, também temos nesta equação os grandes senhores, as instituições eclesiásticas seculares e regulares, sobretudo os senhorios monásticos e os das ordens religiosas militares. Dificilmente, alguém de fora destes grupos poderia ter uma criação de cavalos, pelo menos em número considerável. Isto porque, como mostra Miguel Gomes Martins, a criação de cavalos seria extremamente dispendiosa. Era necessário ter éguas e um bom garanhão, um espaço devidamente vedado com vastas pastagens e acesso a um abastecimento de água e ainda um conjunto de trabalhadores, entre os quais constariam, certamente, “especialistas” em adestramento e tratamento de doenças37. Era uma autêntica empresa que apesar de todas as despesas poderia estar longas temporadas sem conseguir produzir as montadas desejadas.
Podíamos destacar neste contexto as herdades chamadas “cavalarias”, intimamente ligadas ao cavaleiro-vilão. Contudo, estas não seriam criações de cavalos. Como indica José Mattoso, seriam “préstamos concedidos pelo rei em troca de serviço militar a título pessoal”38. Desta forma, podemos associar estas “cavalarias” a um serviço a cavalo prestado ao rei. No entanto, não podemos afirmar que estas terras teriam criações de gado cavalar. Não podemos esquecer-nos da diferença entre manter um cavalo, por si só já bastante dispendioso, e manter uma produção de cavalos, cujas despesas são largamente mais avultadas.
De forma a atestar a antiguidade da criação de cavalos no espaço que hoje é Portugal, podemos recuar à Alta Idade Média. Encontramos no testamento de Mumadona Dias, entre muitos outros bens, a referência a 30 cavalos, 50 machos e mulas, 70 éguas, 3 machos reprodutores e quatro burros39. Estamos aqui perante uma evidente situação de procriação, não só por indicar separadamente os cavalos reprodutores dos restantes, mas também evidenciada pela enorme quantidade de éguas. Este documento mostra-nos não só que em pleno século X havia criação de cavalos, como nos revela que já havia uma manipulação da espécie para o apuramento das montadas, através da seleção dos melhores garanhões para a reprodução de novos animais.
A criação de cavalos podia acontecer de três diferentes maneiras: a primeira era ter uma eguada e um garanhão, tal como acontece na natureza, deixando que a reprodução acontecesse de forma natural; a segunda era escolher o melhor garanhão e deixá-lo cobrir todas as éguas que conseguisse durante a época de acasalamento; a terceira seria fazer uma reprodução seletiva onde tanto o macho como a fêmea fossem previamente escolhidos40.
No caso da criação cavalar referida no testamento de Mumadona Dias poderia tratar-se da utilização da segunda técnica. Naquele contexto seriam três machos selecionados, que acasalariam com as 70 éguas e porventura não estariam todos reunidos num único espaço, mas sim dispersos em várias herdades.
Estes números (cerca de 23 éguas por cavalo) correspondem aos que, mais tarde, surgem nas Ordenações Afonsinas: “cavallo de cavallagem que seja fremoso, e bem pensado, e seu dono fezer certo, que em cada huum anno cavalgua, e segura vinte éguas”41. Tendo em conta que o período de gestação de uma égua dura cerca de 11 meses42, se todas as 70 éguas estivessem em período fértil, Mumadona Dias produziria um número bastante considerável de equídeos anualmente.
Quanto aos monarcas, é certo que tinham as suas criações e que eram os maiores interessados na existência de um grande número de cavalos em todo o reino. Miguel G. Martins destaca, acerca deste assunto, o facto de os monarcas deverem dotar com cavalos os cavaleiros da sua mesnada, pelo menos a partir da centúria ducentista43. Também destaca, referindo-se a Sancho II, o testamento deste monarca, pelo qual deixava metade dos seus cavalos à Ordem de Avis e outra metade à de Santiago44 e, ainda, a sua tia D. Mafalda que deixou a sua eguada à Ordem de Avis45.
Para além destes testemunhos, que só por si já indiciam que os monarcas teriam as suas próprias criações de cavalos, podemos acrescentar outros. É o caso do “livro dos degredos e constetuiçoens que fez o mui nobre Dom Afonço, o quinto Rey de Portugal que foi”, de 11 de abril de 1258, onde está, no segundo decreto, a indicação para o rei não ter outras bestas na estrebaria senão quatro cavalos para éguas46. Num outro documento, de janeiro de 1261, também referente a legislação, encontramos a indicação de que os potros das éguas do rei, após os dois anos de idade, deveriam ser dados a quem o soberano quisesse, de forma a não ter aqueles animais às suas custas47. Torna-se evidente, através destes testemunhos, que o rei D. Afonso III produzia as suas próprias montadas e, ainda, que utilizava os potros, criados por si, para oferecer a quem entendesse de forma a reduzir os custos da criação destes animais.
Recuando ao reinado de D. Sancho I, aliás, encontramos indicações que nos mostram que também este rei já teria criações de cavalos. Em janeiro de 1208, o monarca faz uma doação ao convento da Santíssima Trindade de Santarém, pela qual entregava aos trinitários, entre outros bens, éguas suas que tinha naquela região48. Notemos que não refere cavalos, mas sim éguas, o que nos leva a supor que seria um incentivo à criação cavalar. Ainda sobre Sancho I podemos destacar as éguas de Soure, que deixa ao Mosteiro de Santa Cruz, no seu segundo testamento, e ainda as éguas que tinha em Santarém, que deixa ao Hospitale Captivorum, entre outros animais49.
Sabe-se, ainda, que D. Afonso Henriques teria também as suas produções de gado cavalar e que patrocinava mosteiros para que pudessem ter as suas criações. Temos o caso do Indiculum Fundationis Monasterii Beati Vicentii Ulixbone, ou Notícia da Fundação do Mosteiro de S. Vicente de Lisboa, que contém a seguinte passagem: a partir de então, passou o rei a entregar a essa igreja campos, vinhas, hortas, moinhos, gado ovino, cavalar, bovino, suíno, e as demais coisas necessárias à manutenção dos irmãos nela residentes50. Na primeira alçada das inquirições de 1258, no atual julgado de Nóbrega, aparece outra referência semelhante, dizendo “que este davandito Moesteiro fez elRey don Alfonso I de Portugal, et poblouo de bois et de vacas et de eguas et de seu ganado”51.
Para além das doações régias de éguas, que já fomos referindo, há outros indícios de que as instituições eclesiásticas teriam as suas criações de equídeos. Podemos dar como exemplo, ainda ligado à figura de Afonso Henriques, o documento que regista a requisição, por parte do primeiro rei de Portugal, de dez éguas com os seus potros e uma égua avaliada em 500 soldos, à abadessa de Paderne (c. Melgaço), no ano de 114152. Outro caso é o de uma abadia cisterciense que, provavelmente, faria criação de cavalos: o Mosteiro de Fiães. Para esta abadia em concreto, é possível encontrar referências a compras de herdades que este mosteiro fazia, pagando com potros, éguas e até cavalos. Vejamos: em 1221, os monges compram uma herdade e pagam com uma égua e a sua cria, entre outros bens53; em 1226 regista-se a compra de um casal pelo preço de um bom cavalo54; em 1246, finalmente, assinala-se a aquisição de uma herdade que foi paga com um bom potro55.
Outro tipo de documentos que nos atestam a grande quantidade de equídeos que estava na posse dos mosteiros são as doações, que lhes eram feitas por aqueles que queriam garantir a salvação das suas almas, onde se encontram referências frequentes a éguas e a cavalos, entre outros bens, móveis ou imóveis. Temos, por exemplo, o caso do Mosteiro de São Mamede de Lorvão. Foi possível identificar, para este claustro, documentos dos anos 90756, 93557, 95458 e 96759. Em todos eles aparecem referências a gado cavalar, seja cavalos, éguas, mulos ou burros. Embora as menções aos animais surjam sempre no plural, não é possível precisar quantos seriam. Não deixa, de qualquer maneira, de representar um número considerável de equídeos que o Mosteiro de São Mamede de Lorvão ia recebendo. Também foi possível encontrar, tal como no Mosteiro de Fiães, uma compra dos monges lorvanenses feita com um equídeo60. Neste caso, aliás, compraram tudo o que possuía o muçulmano Oborroz, em Botão (c. Coimbra), por uma égua prenha.
Outro exemplo é o Mosteiro de S. João de Tarouca. Na documentação deste instituto cisterciense também é possível encontrar referências a doações, onde constam cavalos, e compras de propriedades pagas com equídeos. Para o primeiro caso foi identificada uma doação em 117561 e outra em 122862. Para o segundo caso, também foi possível encontrar outros dois documentos, um de 117063 e outro de 117664.
Assim, se reunirmos os documentos que expõem o gado cavalar que os reis doavam aos mosteiros e conventos, as compras que estes faziam com equídeos, as frequentes doações de animais que recebiam e a vasta propriedade que detinham, torna-se difícil não considerar que haveria uma importante criação de cavalos nestas instituições, compreendendo-se, ainda, que tenha sido no seio das mesmas que se vieram a escrever ou compilar alguns tratados dedicados justamente a estes animais, como foi o caso de Bernardo, o Português, que era, muito provavelmente, religioso regular65.
Para além dos monarcas, mosteiros e conventos, os grandes senhores também teriam as suas criações de gado cavalar. De outra forma não seria possível que Egas Moniz deixasse em testamento, no ano de 1081, toda a sua criação de mulos, mulas, cavalos e éguas66. Outro caso é o do famoso conde de Coimbra, Sesnando Davides, que, em 1087, também faz referência ao seu gado de vacas e de cavalos67.
Entrando no meio clerical também podemos destacar neste tópico o bispo de Coimbra, Julião, que, em 1089, testava omnes boues et uacas et equas quas habeo68. Neste último caso atente-se, mais uma vez, na utilização do termo equas (éguas) e não equos (cavalos).
Já em pleno século XIII é possível identificar algumas pistas de que João Peres de Aboim também teria ligação à criação de cavalos, desde logo a doação régia que recebe, a 16 de novembro de 1259, de umas casas, adega e cavalariça na alcáçova de Santarém69. Para além disso, em março de 1263, podemos encontrar duas compras que João Peres de Aboim faz, pagando-as com bons potros70.
Para finalizar, não podemos esquecer o papel das Ordens Militares na criação de montadas. Neste caso, a grande motivação seria, por um lado, a criação de bons cavalos de guerra e por outro a criação de bestas de carga capazes de carregar todo o equipamento necessário numa campanha militar. Estes dois tipos de equídeos aparecem, em grande quantidade, num documento de 1282. Neste documento consta um acordo em que Ramon Marquet, cidadão de Barcelona, e Romeu Burguet, comandante templário de Palau-solità, se comprometem a transportar Lourenço Martins, lugar-tenente do mestre da Milícia do Templo no reino de Portugal, de Barcelona para Acre. Com ele levaria quatro freires com os seus escudeiros e entre 45 a 50 equídeos, entre os quais estariam cavalos e bestas muares71. Veja-se a enorme quantidade de equídeos que apenas cinco freires da Ordem do Templo, com os seus escudeiros, levavam numa expedição.
Embora a presença de Ordens Militares no espaço português remonte a D. Teresa, o seu desenvolvimento em Portugal, e na Península Ibérica, deu-se apenas em meados do século XII72. Neste sentido, as informações que as fontes nos transmitem são bastante escassas neste espaço temporal, sendo mais generosas nos séculos XIV e XV.
De qualquer maneira, é bastante provável que as Ordens Militares produzissem cavalos em Portugal a partir do momento em que começaram a ter os seus domínios. Tal como mostra Miguel G. Martins, “cada uma das praças fortes tuteladas pelas ordens militares teria, para além do seu arsenal, as suas próprias cavalariças, algumas das quais com um elevado número de montadas”73. Destaca ainda o caso de Aljustrel, onde durante o reinado de D. Sancho II a Ordem de Santiago teria uma importante reserva de cavalos74. Estes testemunhos, embora sejam claros quanto à existência de cavalos nos domínios das Ordens Militares, não o são quanto à criação dessas montadas. Seriam produzidas nas imediações dos seus castelos? Seriam apenas fruto de doações e saques de guerra?
Assim, a criação da espécie equina parece ter sido uma prática habitual durante toda a Idade Média portuguesa, existindo mesmo antes da formação do Reino de Portugal. Os diferentes grupos identificados como intervenientes neste processo fazem realçar dois fatores comuns a todos eles: a grande capacidade económica e de posse de terras.
Terminologia medieval para a caracterização do cavalo
A identificação dos equídeos, feita nas fontes medievais, expressa-se de diversas formas e partindo de diferentes características. Dedicamos alguns considerandos à interpretação das denominações empregues na referenciação de diferentes animais.
As mais comuns, e mais óbvias, referem-se às diferentes espécies e ao seu género: equo, equa, mulo, mula, asino, asina. Fazendo referência ao cavalo, égua, mulo, mula, burro e burra. Para além destas diferenciações, os documentos distinguem também, por exemplo, o pullo75, como sendo a cria da burra, ou a filia, para fazer referência à cria de uma égua: una equa et sua filia76, ou, mais comummente, o poldrum77 que podemos traduzir à letra para poldro ou potro. Fazendo uso deste último vocábulo, também foi possível detetar uma menção que identificava uma equa apoldrada78, numa clara alusão a uma égua prenha.
Por vezes, para além da identificação anteriormente referida, pode surgir um adjetivo, como por exemplo: Kauallo bono79 ou kaballo obtimo80, ou a identificação do animal através da sua dimensão: equa media81. Um caso mais curioso, que surge em 1260, identifica um pullo equi capistrario82, isto é, um potro com o seu cabresto. Este animal está assim referido porque poderia, porventura, ser demasiado novo para ter sela, sendo por isso levado pelo cabresto e talvez também servisse para indicar que este animal era domesticado. Esta suposição torna-se mais credível quando nos deparamos com referências a éguas bravas que também podiam ser utilizadas como moeda de troca. Temos, para este caso, dois exemplos: um do ano 108883 e outro de 110284.
No entanto, surgem descrições bastante mais minuciosas, referindo-se a um animal pela cor, ou cores, da sua pelagem. Estas permitiam diferenciar com maior clareza um determinado equídeo. É de realçar que as tonalidades descritas nas fontes de índole contratual, que iremos analisar, tinham um propósito prático de identificação e não uma carga simbólica.
Neste campo, já Isidoro de Sevilha, entre finais do século VI e inícios de VII, estabelecia algumas “cores que devem ter-se em conta”85. No livro XII, “De animalibus”, das Etimologias, o autor apresenta-nos os termos: badius (baio), aureus (dourado), roseus (avermelhado), myrteus (murzelo)86, cervinus (loiro escuro)87, gilvus (cinzento88 ou creme)89, glaucus (glauco), scutulatus (malhado; manchas de várias formas e cores)90, canus (cinzento claro ou prateado), candidus (branco brilhante), albus (branco), guttatus (malhado com pintas pretas) e niger (negro).
Esta prática, de identificar um animal através dos seus traços físicos mais marcantes, ter-se-á mantido durante toda a Idade Média, chegando mesmo aos dias de hoje91. É certo, também, que em tempos anteriores ao medievo esse procedimento seria recorrente. De outra forma não seria possível que Isidoro tivesse por base textos da Antiguidade Clássica de autores como Rutilius Taurus Aemilianus Palladius ou Aulo Gelio92.
Nesta temática da identificação das pelagens, o caso mais curioso, por ter como interveniente D. Afonso Henriques, aparece-nos numa venda de um casal a Paio Braga. Lê-se neste documento que o rei aceita, a 25 de setembro de 1146, como pagamento, um cavalo murzelo93, isto é, um cavalo totalmente preto94. Este vocábulo pode ser interpretado, também, como preto com tons avermelhados, semelhante à cor de uma amora95. Esta coloração surge noutros documentos e com algumas variantes na sua escrita. Em 1088 aparece um cavallo colore maurizello96, em 1101 um cavallum maurcellum97 e em 1188, no primeiro testamento de Sancho I, surge um runcinum murzelum98.
Aparece também o termo roselo visível em diversos contratos de venda. Esta coloração foi encontrada em diversos documentos datados de: 104199, 1045100, 1048101, 1074102, 1080103, 1091104, 1092105, 1100106 e 1110107. Segundo Bluteau, rusilho ou rosilho é a “cor tirante a Rosa, e branca, pelo de huma cor, e pelo de outra”108. Porém, para este termo, podemos contar ainda com outra definição onde se considera: “rosillo, de pelo misturado de branco, preto e castanho”109.
Isidoro de Sevilha fala-nos do roseus110 que significa rosa em latim, e que Jose Oroz Reta traduz para o espanhol rojizo que em português podemos ler como avermelhado ou apurpurado. Joaquín P. Barea, que escreveu “Los veinte nombres de colores de caballos en Isidoro de Sevilla”, mostra-nos a ligação que o roseus tem com o vermelho e de seguida faz a ligação dessa mesma cor com o tom alazão111. Conclui, após uma breve explicação, que o roseus que Isidoro refere, em relação à pelagem do cavalo, é um misto de castanho e vermelho112. Porém, tanto a versão de Joaquin P. Barea para o vocábulo roseus, como a que consta no Glossário do léxico primitivo iberorromanico, não correspondem à definição de rosilho dada por Raphael Bluteau que diz ser uma “cor tirante ao rosa e branca com pelo de uma cor e de outra”, significado que vai no mesmo sentido da definição latina de roseus, rosa.
Assim, parece-me difícil negar a ligação do roselo ao avermelhado/rosado. Essa negação é feita na definição do Léxico hispânico primitivo que apenas remete para o branco preto e castanho. No entanto, fica a dúvida se estamos perante cavalos cuja pelagem era uma mistura de pelos brancos com pelos vermelhos, criando no seu conjunto um tom rosado. Ou, por outro lado, se o vocábulo roselo, do século XI, tem alguma ligação ao roseus, dos séculos VI-VII, que Joaquin P. Barea diz ser um castanho avermelhado, ou alazão.
Outro termo utilizado na documentação medieval é o baio. Esta palavra, no contexto medieval, remete-nos de imediato para o cartulário Baio-Ferrado do Mosteiro de Grijó que curiosamente adota esta denominação. De facto, esta designação não se referia apenas ao cavalo em geral, mas sim a um tipo específico que iremos tratar de seguida.
No livro “De Animalibus” é feita a referência ao badius113 (baio em português). Isidoro de Sevilha faz uma análise a esta tonalidade referindo que ao cavalo baio os antigos chamavam vadium por ser aquele que corria com mais potência (vadere). Refere que também se dá a denominação de phoenicatus ou até spadix, que deriva da cor da palmeira à qual os sículos chamavam spadica114. Esta interpretação etimológica, no entanto, carece de fundamento científico115.
Joaquín P. Barea aborda estas associações feitas por Isidoro de Sevilha e aprofunda essa temática. Todavia, o que nos interessa é o conceito que atribui ao baio que, para esse autor, seria um cavalo castanho claro. Explica-nos que Isidoro, Paladio e Quirón distinguiam o alazão do baio ainda que ambos, com as suas distinções, pudessem estar incluídos dentro da gama rojiza, ou seja, avermelhada. Completa dizendo que Isidoro identifica o baio com o spadix, porque ambos são castanhos ainda que o baio possa ser mais claro116.
Será neste sentido que Raphael Bluteau aponta o baio como “cor vermelha, mais, ou menos subida”117. Parece seguro, tendo em conta os factos, apontar para a possibilidade de o tom do baio, na documentação posterior ao século X, ser efetivamente o castanho claro, como seria nos séculos VI-VII.
Temos como exemplo da utilização do termo baio um contrato de venda de 1043, que faz referência a um kaualo baio118. Outros dois contratos, de 1075119 e 1085120, também se referem a esta cor utilizando o vocábulo baium. Há, ainda, um contrato de venda, de 1134, retirado do cartulário Baio-Ferrado do Mosteiro de Grijó121. Estranho seria se esta coloração não fosse encontrada nesse cartulário. Já em finais do século XII foi possível voltar a identificar esta pelagem122.
Um documento, datado de 1043, apresenta-nos algo mais complexo: um caualo colore bagio nasino123. Quanto ao termo “bagio” é seguro associá-lo ao baio, tal como indica o glossário do Léxico Hispánico Primitivo124. Quanto ao nasino, que completa a descrição deste animal, não foi possível encontrar o seu significado. Porém, há uma forte possibilidade de estar ligado à pelagem do burro. Tal como dosino significa, segundo Isidoro de Sevilha, “aquele que tem a cor parecida à do burro”125, o termo nasino também pode seguir a mesma ordem de ideias. Não deixa, de qualquer modo, de ser apenas uma suposição. Quanto ao termo dosino é possível identificá-lo num contrato de venda do ano 900, no atual concelho de Braga. Nesse contrato surge uma menção a um cavallo dosno126, havendo boas probabilidades de que este termo tenha a mesma conotação que o dosino de Isidoro de Sevilha.
Seguimos para outro tom, o raudão. Este termo aparece de diferentes formas na documentação, como por exemplo: raudana127, raudane128, raudam129, rauane130, raudiane131, radan132, rouane133. Raudão seria, segundo Joaquim C. Silva, cor-de-rosa134, ideia que também surge no Elucidário de Viterbo. Porém, este segundo, remete-nos para ver “Cavalo Raudão” que diz ser o “cavalo que tinha uma cor tirante a vermelho, a que os latinos chamam Rubidus, de onde facilmente se deduziu cavalo ruão, que tem a cor vermelha, com alguma mescla de branca” e acrescenta, “porém se entenderem que seja alazão queimado, ou tostado, e não ruão encendido, não contenderemos”135. Já no Diccionario da lingua portugueza, de Antonio de Moraes Silva, aparece-nos que cavalo raudão é o mesmo que rosilho136.
Neste panorama, temos a possibilidade de raudane ser uma pelagem cor-de-rosa, numa mistura de pelos brancos e vermelhos. Ideia que faria sentido com a associação de Antonio Moraes Silva, entre raudão e rosilho. Isto se considerarmos a versão do tom rosado para o rosilho. Por outro lado, Viterbo também sugere que pode ser, em alternativa, um tom alazão, ou seja, castanho avermelhado, algo que também faria sentido, caso considerássemos que o vocábulo rosilho se refere ao castanho avermelhado. Neste caso, tal como no roselo, deixaremos a questão em aberto.
O testamento de D. Sancho I também contém informações relevantes para esta temática. Para além de fazer referência a um runcinum murcelum- tonalidade já abordada- fala também de um runcinum ruzum137. Quanto ao termo runcinum (rocim), iremos tratá-lo mais adiante. O cavalo ruzum, ou ruço, segundo Antonio de Moraes Silva é “esbranquiçado: cor das bestas que têm várias modificações”138, dando de seguida exemplos mais específicos: “ruço pombo, argentado, rodado”139.
Também podemos encontrar a seguinte definição: “Ruço, ou Russo. Em muitas maneiras se usa desta palavra, falando de cores dos cavalos. Da cor branca se deriva o Ruço rodado, e Ruço queimado, e Ruço cardenho…”140, entre outras variantes. O Léxico Hispánico Primitivo diz: “rucio, rutio, ruzio, ruzo” provêm do latim “roscidus” e têm o significado de “rucio”141. É, desta forma, bastante provável que no testamento do segundo monarca português o termo ruzum se referisse a um cavalo cuja pelagem estava entre o branco e o cinzento, ou um branco-sujo. Para além do testamento do monarca, foram também encontradas mais duas referências a esta tonalidade, em dois contratos de venda. Um deles detetado no Cartulário Baio-Ferrado, no ano 1136, remete para um caballum ruzum142 e o outro, cujo ano não é possível apurar, apresenta um cavallo rucu143.
As tonalidades apresentadas até agora são as que mais surgem na documentação medieval. Contudo, há outras menos comuns que também têm de ser referidas: caballo amarelo144, a égua colore alakada145, o caballum varum coloris146 e o equum facialuo147. Enquanto a primeira denominação se afigura bastante lógica, tratando-se de um cavalo cuja pelagem tem um tom amarelo, a segunda é precisamente o contrário. Podemos apontar que se trata de uma cor ou tom, uma vez que vem antecedida da palavra colore. Foi possível identificar a palavra alacado, cujo significado é “relativo à laca”148. Por sua vez o vocábulo laca remete para “(al-lakk…) tinta vermelha - resina; goma resinosa vermelha utilizada em variados preparados e c/ diversas finalidades”149. É assim possível que o vocábulo alakada se referisse a um tom avermelhado.
Quanto ao varum colores devemos estar perante um cavalo malhado. É certo que noutras tonalidades de pelagem, já referidas, temos pelos de várias cores que em conjunto criam um determinado tom. Porém, neste caso destaca-se o facto de haver várias cores aparentemente separadas, não se tratando de apenas um tom, mas sim um conjunto de tons sobre os quais não dispomos de mais informação. O facialuo é muito provavelmente o mesmo que façalvo. Esta denominação ainda se mantém atual e serve para identificar o cavalo que tem quase todo o focinho branco150.
Depois de terminada esta análise às diferentes tonalidades, falta abordar a caracterização do cavalo feita a partir da função que esse animal seria capaz de desempenhar. À medida que avançamos para o final da Idade Média as diferenças entre cavalos “comuns” e os grandes cavalos de guerra, tornam-se cada vez maiores. Consequentemente tornou-se mais importante a existência de termos que identificassem uma montada pela sua capacidade. Porém, no espaço temporal e geográfico que é abordado neste artigo, essas denominações não são tão frequentes como nos séculos seguintes, sendo algumas delas inexistentes151.
Aparece no testamento de Gonçalo Fernandes, deão da Sé de Viseu, datado de 1231, que este deixa o seu rocim com a sua sela e um rocim de albarda152. Acerca deste vocábulo Viterbo refere: “Carga rocinal, carga de rocim, ou cavalo pequeno, e desmedrado. Nos forais antigos se distinguem expressamente as cargas dos machos, e cavalos, das dos rocins, e asnos, sendo a portagem dos primeiros quase sempre dobrada da dos segundos”153. Tal como mostra o documento, há um rocim de sela, utilizado para montar, e outro de albarda. Por albarda entenda-se, uma cobertura com enchimento de palha que se colocava nas bestas de carga de forma a proteger o dorso do animal154. O rocim seria, portanto, um cavalo que não teria um grande porte, não deixando por isso de ser utilizado para montar e transportar mercadorias.
Para terminar, resta referir as azemelas155 ou azimelas156 referidas no “Testamento ou manda em que D. Afonso Henriques distribui a soma de vinte e dois mil maravedis, guardada no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra” (1179) e no “Codicilo ao primeiro testamento de D. Sancho” (1188) respetivamente. Este vocábulo, que atualmente se designa azémola, é de origem árabe e servia para fazer referência às bestas de carga157. Neste aspeto Viterbo acrescenta que seria “macho, ou mula grande de carga”158 o que nos mostra que seria, efetivamente, um termo utilizado para animais capazes de transportar pesos avultados.
Abordagem ao custo dos equídeos
Depois de analisarmos as terminologias medievais em torno dos equídeos, seguimos para uma análise aos valores monetários dos mesmos. Neste campo, os contratos de compra e venda medievais são bastante esclarecedores e é essencialmente neles que nos vamos basear. Os valores aqui tratados estão dispostos na Tabela 1.
Importa esclarecer, em primeiro lugar, que as descrições destes animais, e o preço que muitas vezes surge logo de seguida, apontam para o facto de haver uma escolha prévia do animal em questão. De facto, não faria sentido estar descrito um cavalo amarelo, ou baio, ou de qualquer outra cor, e de determinado valor, caso esse animal não tivesse sido escolhido previamente e devidamente acordado. Embora nem todos os documentos especifiquem qual a cor ou valor do animal, porventura por haver maior confiança entre as partes desse contrato, muitas vezes é esse o caso.
É de destacar um caso muito curioso que surgiu numa venda, em agosto de 1161, onde Ero Dias e a sua mulher Marinha vendem a D. Nicolau uma herdade em Bassim e em Forniçô (c. Viseu) por um cavalo159. Neste manuscrito surge, após o término do contrato, a seguinte indicação: “et est apreciado isto cavalo”. Este acrescento mostra, claramente, que havia um animal em específico que importava identificar no contrato, ao ponto de se registar esta afirmação mesmo após o contrato estar redigido e “trancado” por um traço.
Para os séculos X, XI e inícios de XII, são comuns as transações em que não se utiliza a moeda. A. H. Oliveira Marques destaca até: “Foi já calculado que, para o período de 1040-1120, as vendas em géneros em Leão e Castela predominaram, com pagamentos em gado, cereais e outros produtos, mesmo que avaliados em unidades de conta. Outro tanto terá sucedido na região portuguesa”160. É precisamente nestas transações que é possível identificar o custo dos equídeos que surgem na documentação medieval, muitas vezes, como bens de enorme valor, capazes de colmatar a falta de uma circulação de moeda mais generalizada.
Em meados do século XII, a situação começa a inverter-se devido a uma crescente circulação monetária, muito favorecida pela introdução da moeda muçulmana. Assim, multiplicar-se-á em Portugal o dinar almorávida que se vulgarizou com o nome de morabitino, podendo também surgir na documentação medieval portuguesa com o nome maravedi. O dirham de prata também acabou por assumir essas duas denominações161. De facto, nos dados aqui apresentados, relativos aos valores dos equídeos, encontramos a primeira referência a maravedis no ano de 1129162. Até então, todos os dados são em soldos ou moios e, mesmo depois de 1129, continuam a surgir, embora já partilhem a sua presença com as referências a morabitinos e maravedis.
No total foi possível reunir 107 exemplos de equídeos, entre o ano de 900 e de 1226. Entre eles encontram-se seis diferentes denominações para as unidades de medida: soldos gallicanos, soldos, moios, bragais, morabitinos e maravedis. Surge ainda, em alguns casos, a avaliação de cavalos num determinado número de éguas, prática para a qual não foi possível decifrar qualquer significado, para além do explícito.
Destas unidades de medida, há duas que merecem uma pequena abordagem. Quanto aos soldos gallicanos163, que surgem apenas uma vez no ano de 900, parece-nos bastante provável a proposta de que, esta e outras denominações semelhantes, representem as antigas moedas de ouro da época sueva164. Contudo, é também possível que se trate de uma moeda de origem franca. António Losa, referindo-se a este mesmo documento, entende esta segunda possibilidade165. Os moios, por outro lado, são bastante mais difíceis de precisar. Joaquim de Viterbo demonstra que há a possibilidade destes moios serem equivalentes aos soldos, tendo exatamente o mesmo valor. Contudo, reconhece que esta ideia não se afigura como uma verdade absoluta166.
É de realçar que os valores atribuídos a estes animais não resultariam num pagamento efetivo desses mesmos valores. Bem pelo contrário. Estes serviriam como forma de abater o valor da compra, por exemplo, de um casal. O cavalo seria, deste modo, um bem valioso que poderia ser utilizado como moeda de troca para compras de somas muito avultadas. Algo que seria essencial no contexto da sociedade medieval, onde a circulação de moeda era substituída por produtos da terra e a capacidade de a ter em grande quantidade estava restringida a um pequeno grupo, de mais ou menos vinte por cento de indivíduos, na sociedade167.
Apesar do número relativamente reduzido de dados é possível tirar algumas conclusões interessantes através dos mesmos. Para tal, teremos em consideração os valores que se encontram em moios e em soldos, uma vez que as restantes unidades de medida não surgem em quantidade suficiente para que sejam alvo de uma análise mais aprofundada. Não deixamos, de qualquer forma, de colocar todos os valores encontrados na Tabela 1. Destaque-se, ainda, que apenas teremos em consideração, na análise que se segue, os cavalos e éguas que não surgem com outros elementos associados ao seu valor, como selas, albardas ou crias.
Em primeiro lugar, importa entender a enorme amplitude entre os valores mínimos e máximos. Os equídeos poderiam ser, para a época medieval, o mesmo que os automóveis são para a atualidade, podendo ter valores bastante díspares consoante a qualidade do produto transacionado. Vejamos: falando em soldos, foram recolhidos 42 dados, entre 995 e 1226, sendo a média de todos estes valores de c.157 soldos. O menor valor está atribuído a uma égua que valia 10 soldos, em 1087168, e o valor máximo, identificado em dois cavalos, um do ano 995169 e outro de 1141170, é de 500 soldos! Entenda-se, por estes valores, uma enorme diferença de 50 vezes mais caro. Podemos ainda diferenciar o valor médio de cavalos e de éguas, em separado. Os 40 cavalos, avaliados em soldos, têm um valor médio de c.162 soldos. Por outro lado, as duas éguas avaliadas na mesma moeda constituem uma média de 55 soldos171.
Se analisarmos os 50 casos que surgem em moios, verificamos um valor mínimo de 10 moios, por uma égua, no ano de 1078172 e que o valor máximo é 800 moios, por um cavalo, em 1117173. Assim, verifica-se que o equídeo mais valioso encontrado tem um valor 80 vezes superior, em relação ao mais barato! Quanto ao valor médio, dos equídeos avaliados em moios, o resultado foi de c. 112 moios. Se estabelecermos uma diferenciação de preços entre cavalos e éguas, podemos perceber que os 33 cavalos, avaliados em moios, custam em média c.153 moios e as 17 éguas um valor médio de 36 moios. Tanto em soldos como em moios podemos identificar que o cavalo seria um animal mais valioso do que a égua, ao longo dos séculos aqui estudados, e podemos perceber, também, a enorme oscilação de valores.
Estas discrepâncias impressionam. No entanto, podem ser compreendidas se atendermos ao tipo de bem em questão. Não é difícil perceber que seriam vários os aspetos que fariam aumentar ou diminuir significativamente o preço de um equídeo. Desde logo as capacidades físicas do animal - tamanho, resistência, capacidade de carga…174. Também o seu temperamento seria muito importante na valorização de um cavalo. Não seria indicado, por exemplo, ter um equídeo demasiado nervoso destinado a trabalhos de carga, tal como não seria qualquer cavalo, independentemente do seu porte, capaz de suportar as adversidades psicológicas da guerra.
Não podemos esquecer a beleza do animal que poderia ter bastante peso no seu valor monetário175. Para um grande senhor, ou mesmo um rei, o cavalo teria não só uma aplicabilidade prática, de montar, mas também um peso simbólico de demonstração de poder e ostentação, como veremos mais à frente. Uma prova da atenção que era dada ao aspeto do cavalo é a forma como D. Afonso Henriques se refere a um cavalo que lhe foi oferecido, caracterizando-o como um “bom e perfeitíssimo cavalo”176.
Isidoro de Sevilha, ainda acerca de um bom cavalo, acrescenta: “que seja de caráter audaz, ligeiro de patas, que os seus membros vibrem porque é indício de fortaleza, que facilmente se excite a correr quando está totalmente parado, ou que não seja difícil pará-lo quando vai lançado a galope. A mobilidade do cavalo aprecia-se nas orelhas, do mesmo modo que a sua energia se reflete na vibração dos seus membros”177.
Neste aspeto, as Siete Partidas são bastante claras quando referem que os bons cavalos deveriam ter em si três coisas: em primeiro serem de cor bonita, em segundo terem um bom coração e em terceiro terem bons membros convenientes que correspondessem aos dois primeiros178. Infelizmente, devido ao número reduzido de documentos que indicam, simultaneamente, a pelagem do animal e o seu valor, não foi possível confirmar se as diferentes pelagens teriam alguma influência na apreciação da montada.
Outros aspetos como a idade do animal, que poderia ser já bastante velho e em segunda mão179 ou demasiado novo para ter um valor muito avultado, ou possíveis lesões, que prejudicassem em parte a sua locomoção, seriam, muito provavelmente, fatores influenciadores na hora de atribuir um preço a um equino.
Ainda relativamente a esta problemática, D. Afonso III, em meados do século XIII, deixa-nos uma série de preços entre os quais estão os do gado cavalar. O documento refere que a melhor mula ou mulo vale 60 libras180, o melhor burro 7,5 libras181, a melhor égua 15 libras182, o melhor rocim que não seja de bafordo 25 libras e o rocim de bafordo 50 libras183. Infelizmente, fica por esclarecer neste documento, qual seria o valor de um bom cavalo, ou um cavalo de guerra. Talvez não o tenha feito por ser demasiado difícil limitar o valor destes animais que podiam possuir características excecionais. É curiosa a referência ao rocim de bafordo que não devemos entender como um verdadeiro cavalo de guerra. Tal como vimos anteriormente, o rocim era um cavalo de pequenas dimensões e é certamente a uma montada pequena que o documento de 1253 se refere, de outra forma não seria possível ter um valor inferior ao da mula.
Assim, através desta classificação atribuída ao rocim, podemos supor que nos bafordos do século XIII seriam utilizados cavalos de dimensões mais modestas em vez de verdadeiros cavalos de guerra. Porventura para não colocar em perigo as preciosas montadas, essenciais para os cavaleiros servirem em combate, e, ao mesmo tempo, para reduzir a violência dos bafordos que se tornariam bastante mais perigosos se os cavalos utilizados fossem autênticos cavalos de guerra.
Embora este texto se estenda apenas até ao reinado de D. Afonso III, é relevante acrescentar que, segundo estimativas, na Europa dos finais da Idade Média, os cavalos de montar mais baratos custariam 24 vezes mais que um cavalo de trabalho, que um palafrém custaria 400 vezes mais e, ainda, que um bom cavalo de guerra custaria 800 vezes mais184.
O cavalo como símbolo de Poder
“Procurou-se entre todos os animais o mais belo, e mais veloz, e que pudesse suportar maior trabalho, e o mais conveniente para servir o homem. E porque o cavalo é o mais nobre animal e o mais conveniente para servir o homem, por isso de entre todos os animais foi escolhido o cavalo e dado ao homem que foi escolhido de entre os mil homens; e por isso aquele homem tem por nome cavaleiro”185.
Esta é a forma como Raimundo Lúlio, um filósofo, poeta e teólogo medieval, se refere ao cavalo, em finais do século XIII, na primeira parte, “que trata do princípio de cavalaria”, do Livro da Ordem de Cavalaria. É com base neste excerto, e noutros que iremos apresentar, que é possível entender a carga simbólica que o cavalo tinha na Idade Média. Este não era apenas um animal, mas sim um ícone de honra, nobreza e poder.
Nas Siete Partidas de Afonso X de Leão e Castela, contemporâneo de Raimundo Lúlio, surgem palavras semelhantes: “Mas em Espanha chamam cavalaria não porque andam a cavalgar em cavalos, mas porque bem como os que andam a cavalo, vão mais honradamente que noutra besta"186. Este segundo testemunho, porventura feito com base nos mesmos textos antigos que o Livro da Ordem de Cavalaria, reforça a ideia de que o cavalo é a mais honrada de todas as bestas.
Isidoro de Sevilha vai mais além, atribuindo não só uma grande nobreza a este animal, mas também o privilégio de ser o único animal capaz de, para além do homem, chorar e experimentar sentimentos de dor187. Estas palavras transmitem uma clara tentativa de elevar um animal irracional a um patamar próximo do Homem, distanciando-o dos restantes animais.
Raimundo Lúlio acrescenta no quinto capítulo, “do significado que existe nas armas do cavaleiro”, mais algumas explicações acerca da ligação deste animal ao cavaleiro. Refere que “o cavalo é dado ao cavaleiro como significado de nobreza de coração, e para que a cavalo seja mais alto que qualquer outro homem, e seja visto de longe e mais coisas tenha debaixo de si”188. Fica claro neste trecho que, para além de reforçar a nobreza do animal, há também a importância na elevação física que o cavalo dá ao homem, fazendo-o olhar os restantes de cima para baixo e colocando-o num patamar superior a todos, quase como se este se movesse no topo de um altar.
Nada melhor que estas transcrições, revelando a carga imaginária que os autores imprimem nas suas palavras, para compreendermos aquilo que o cavalo representava na sociedade medieval e o imaginário que o envolvia.
O cavalo, símbolo da autoridade régia
Os reis medievais nunca se colocaram de parte no que diz respeito à instrumentalização do cavalo como demonstração de poder. Para além do interesse que os monarcas portugueses sempre demonstraram na existência de um grande número de boas montadas no reino, havia também um interesse mais pessoal de se apresentarem perante os seus súbditos, e os seus pares, em bons cavalos.
A partir de D. Afonso III é introduzido, na monarquia portuguesa, o selo equestre que, segundo Saúl António Gomes, aparenta ter inspiração no modelo castelhano e que, excecionalmente, também seria utilizado em França189. É de realçar que D. Afonso, ainda como conde de Bolonha, teria já um selo equestre, embora este ainda não apresentasse armas portuguesas190. Pelo menos D. Dinis, D. Afonso IV e D. Fernando vão continuar a utilizar sigilografia semelhante.
Nestas representações, os cavalos aparecem a galopar, cobertos com gualdrapas ricamente decoradas e com os reis, pesadamente equipados para a guerra, montados no seu dorso. Apresentam, para além de elementos como a coroa, a espada ou o escudo, cavalos possantes e capazes de suportar a galope todo aquele peso, transmitindo a sensação de que o fazem com bastante naturalidade e leveza. Neste aspeto destaca-se, claramente, o selo de D. Fernando I pelo seu desenho mais dinâmico em relação aos anteriores191. Saúl António Gomes destaca que o selo equestre seria o mais solene, sendo utilizado “em atos relevantes internacionais ou, internamente, em matérias de fundação e de reforma”, seguindo-se o selo de chumbo redondo e o de cera192. Isto espelha, sem grandes dúvidas, a importância que os monarcas atribuíam ao cavalo, como elemento simbólico de projeção de poder a nível nacional e internacional.
É curioso que o selo da rainha D. Beatriz, mulher de D. Afonso III, seja também equestre. Porém, este tem uma diferença clara: o equídeo (talvez uma mula) não é representado a galope, mas sim parado ou, talvez, numa passada lenta. Isto poderá dever-se à falta de necessidade de uma rainha transmitir força e poder militar, não deixando, no entanto, de se apresentar montada num equídeo.
Algo que não fica claro nestas representações são pormenores como a possível decoração das selas, as matérias-primas utilizadas tanto na sela como nos restantes elementos que dizem respeito ao aparelhamento do cavalo, ou até as cores dos materiais destes elementos. Para analisar esses aspetos, podemos recorrer a documentação capaz de mostrar que, pelo menos desde o tempo de D. Afonso III, existiam vários tipos de selas, freios, cabeçadas, entre outros acessórios referentes ao cavalo, sendo alguns deles bastante sumptuosos ou, pelo menos, tentando parecê-lo!
Lê-se numa lei de 26 de dezembro de 1253, onde D. Afonso III estabelece uma série de taxas, referências a diversos produtos relativos ao aparelhamento dos equídeos. No que diz respeito a selas, peitorais e freios fala-nos das seguintes variantes: “sela ouropel de rocim com peitoral colgado e dourado e com freio dourado”193; “sela sem ouropel com peitoral colgado e dourado e com freio dourado”194; “sela de troyxa”195; “sela de carneiro”196; “sela galega ouropel com peitoral dourado e com estribos”197; “sela galega sem ouropel”198; “sela galega de carneiro”199; “sela de carneiro preto”200; “sela canelada de ouro com guarnição de couro vermelho”201. Para além das selas, peitorais e freios surgem também diferentes tipos de cabeçadas como: cabeçada dupla vermelha de rocim ou mula202; cabeçada dupla preta ou branca de rocim ou mula203; cabeçada dupla vermelha de cavalo204. Surgem ainda outros produtos que demonstram grande ostentação no que toca ao aparelhamento do cavalo como umas correias de armar com quatro costuras de seda205.
Para melhor entendermos as peças descritas importa esclarecer alguns conceitos. Em primeiro lugar, temos os conceitos basilares compostos pelas diferentes peças com que se aparelha um cavalo. Para além da sela, que todos conhecemos, surge na documentação a cabeçada (cabezate) que é o “conjunto de cordas ou correias que cinge a cabeça dos animais de tiro ou sela”206; o peitoral (pectorali) que é o “arreio que cinge o peito do cavalo”207; o estribo (arricaues)208 que é a “peça em que o cavaleiro mete o pé quando cavalga”209; o freio (freno) que é uma “peça metálica presa às rédeas das cavalgaduras e que lhes atravessa a boca, servindo para as governar”210. Aparecem outros vocábulos que também merecem o devido esclarecimento: ouropel (orpel/orpellada) é uma “lâmina de latão que imita o ouro; ouro falso; falso brilho; aparência enganadora” com origem no latim aurea pelis, «pele de ouro», pelo advérbio auripel211; à palavra latina colgato atribuímos a tradução “colgado”, que é o particípio passado de “colgar” que significa “ornar com colgaduras”212.
Assim, podemos verificar, por um lado, a preocupação que havia em ostentar o cavalo com peças a imitar o ouro, certamente para transmitir uma sensação de grande riqueza. Tal como também verificamos que podiam decorar os cavalos com peitorais enfeitados com tecidos dourados e freios igualmente dourados. O próprio couro podia ser de diversas cores e chegavam ao pormenor de, como vimos anteriormente, a própria costura das peças em couro ser feita com quatro costuras de seda. Estes testemunhos tornam clara a vontade que os cavaleiros medievais tinham em mostrar riqueza através das suas montadas o que consequentemente se traduzia em poder e nobreza.
No caso dos monarcas, não é difícil imaginar que teriam acesso aos acessórios mais ostensivos, feitos de ouro, ou ouropel, e dos melhores couros, ricamente decorados. Estes seriam conjugados com as gualdrapas totalmente cobertas de elementos heráldicos, tal como é visível nos selos reais, que transmitem uma imagem de luxo e poder.
Assim como nos selos, também há moedas, cunhadas pelos reis medievais portugueses, que apresentam o rei montado num cavalo. De facto, “a moeda é e sempre foi uma afirmação de autoridade, de propaganda e de prestígio”213. Os morabitinos de Afonso Henriques214, Sancho I, Afonso II e Sancho II são os exemplos de moedas medievais portuguesas com representações equestres que podemos encontrar até ao século XIII. Apesar de estas moedas não serem, forçosamente, tão pormenorizadas como os selos, também nos apresentam elementos semelhantes de demonstração de força militar e poder. Refiro-me à espada empunhada pela mão direita, à coroa e, claro, ao cavalo. Estes são elementos comuns em todos os morabitinos dos reis anteriormente referidos.
Tendo em conta as representações bastante esquemáticas que estas moedas apresentam, torna-se difícil identificar possíveis aparelhamentos do cavalo. Para além das rédeas e freios que parecem surgir nos morabitinos de D. Sancho I, D. Afonso II e D. Sancho II todos os restantes elementos não são passíveis de uma identificação clara. Os próprios animais estão representados em traços muito gerais que não permitem retirar conclusões mais detalhadas. Contudo, o simples facto destes monarcas terem optado por uma representação equestre nestas moedas cunhadas em ouro, mostra o caráter nobre deste animal no imaginário medieval.
Conclusão
Da análise efetuada, em diferentes perspetivas, compreendemos que o valor do cavalo não se limitava à faceta militar.
No que toca à criação e manipulação desta espécie, foi possível identificá-la a partir do século X, através dos registos de Mumadona Dias que chegaram até nós. Procurámos também desmistificar a dimensão do cavalo. Tornou-se claro que a criação por parte dos reis, e o incentivo à mesma, remontam pelo menos ao primeiro monarca português e que se mantêm até ao fim da época aqui estudada. Os grandes senhores do reino, mosteiros e conventos e as Ordens Militares também não ficaram de parte neste tópico, tendo sido possível identificar intervenientes na criação de equídeos nestes grupos.
Exploraram-se os significados medievais dos vocábulos: murzelo, rosilho, baio, raudão, ruço, alakada, varum colores, amarelo, facialuo, dosino, nasino, rocim e azémola. Restaram sérias dúvidas quanto ao rosilho e raudão e alertamos que os significados atuais destes termos são fruto de uma evolução posterior ao medievo. Seria fácil associar os significados medievais aos atuais, mas incorreríamos certamente em anacronismos.
Quanto ao valor de mercado, embora o número de dados não seja suficientemente volumoso para nos dar respostas mais precisas, foi possível criar algumas estimativas. O valor médio, em soldos, para os equídeos, ficou estimado em cerca de 157 soldos. Para o caso dos moios o valor médio encontrado foi 112 moios. Nesta temática, o dado mais relevante foi a enorme amplitude de valores encontrados na documentação. Os elementos recolhidos não deixaram de retratar uma diferença acentuada entre valor máximo e mínimo que, em soldos, foi de 50 vezes mais e, em moios, 80 vezes. Talvez estes números sejam bastante conservadores para a realidade da Idade Média, no entanto, apenas um levantamento de dados mais exaustivo poderá confirmar.
Terminámos com uma “viagem” ao imaginário medieval. De facto, os espantosos trechos aqui replicados espelham o caráter nobre e, por vezes, quase humano do cavalo, um dos tópicos que mais interesse desperta e que mais contributos necessita na Historiografia Portuguesa. Esta linha de pensamento deixou a sua marca nos selos e moedas medievais que chegaram aos dias de hoje e que foram sucintamente abordados neste artigo. Foi ainda possível explorar os luxuosos adereços associados ao aparelhamento do cavalo, bem como a utilização do ouropel como um instrumento para criar a ilusão de riqueza.