1 - A peste: o terrível mal
Entre os males que desde sempre afligiram a humanidade, a peste foi um daqueles que principalmente se destacaram. Como ficou bem explicitado no apelo que, durante séculos, foi sendo enviado a Deus por muitas gerações de gentes apavoradas pela simples lembrança de tal flagelo: “da fome, da peste e da guerra, livrai-nos Senhor”.
Com efeito, até épocas bem próximas de nós, a humanidade não tinha qualquer maneira, minimamente eficaz, de enfrentar o flagelo1, fosse ele, na verdade, uma peste, ou qualquer outra doença, mais ou menos aparentada, desde que muito contagiosa e mortífera2. Apavorante, por conseguinte, e, por isso mesmo, sentida e designada por peste. E era mais temível ainda porque não se conhecia a origem do mal, e, talvez sobretudo, porque se atribuía a castigo de Deus pelos pecados que diariamente se cometiam. Ora, esta era uma crença professada por todos3, inclusive pelas mentes mais cultas e esclarecidas da época4, o que sobremaneira agravava os efeitos perniciosos da moléstia5. Na verdade, se assim não fosse, o mal poderia ser enfrentado, ao menos sem problemas de consciência.
É certo que a intelectualidade medieval, embora, naturalmente, admitindo que Deus era a causa do mundo e de tudo o que nele existia e acontecia, soube estabelecer a distinção entre causalidade primeira - Deus Omnipotente - e muitas outras causas secundárias, conseguindo assim uma certa margem de manobra para defrontar o mundo, a criação de Deus, com alguma autonomia. No que se refere, entre outras coisas, às questões de saúde, embora admitindo a relação pecado/doença e aceitando a superioridade do médico da alma sobre o do corpo, aquela distinção entre causalidades permitiu-lhe integrar as questões relativas à saúde e à doença entre as causas secundárias, criando assim a possibilidade de procurar origens naturais para explicar o aparecimento de muitas doenças e, assim, tentar agir sobre elas. Tanto quanto os conhecimentos da época o permitiam6. É certo que, no concernente à peste, a acção medicinal careceu sempre de qualquer eficácia, mas, ainda assim, as tentativas foram muitas.
Procuraram-se as causas naturais e elas encontraram-se em certas conjugações dos astros, nas águas contaminadas7, nos ares corruptos8, vindos não se sabia de onde, pelo menos os que davam origem às primeiras manifestações da doença9. Isso porém, não impedia que se continuasse a considerar este mal causado pela ira de Deus provocada pela humanidade pecadora. Deus, como criador e senhor do mundo, podia agir por meio das conjugações astrais, da corrupção dos ares, ou por outro meio10. Mas foi-se conhecendo, empiricamente embora e com especulações de vária ordem, alguma coisa sobre este mal, como sejam a rapidez de propagação, a letalidade imensa que provocava e, como elemento de algum interesse para fugir ao contágio, apercebeu-se, aliás com alguma rapidez, que as aglomerações humanas, a circulação de objectos como tecidos, alimentos e outros ou a sujidade das ruas urbanas ajudavam a sua propagação11. De resto, o único remédio eficaz que se conhecia era a fuga. Quando se podia.
É certo que os tratados médicos proliferavam, sobretudo durante o século XV12, quando os efeitos da doença eram já mais conhecidos e sentidos, por vezes, pelo próprio tratadista, mas nada do que propunham tinha qualquer influência sobre o mal. Aliás, repetiam-se uns aos outros, sempre com a mesma ineficácia13.
Sobretudo a partir de meados do século XIV, com o eclodir da chamada Peste Negra, que tão dramaticamente marcou toda a sociedade da época e se prolongou, em surtos vários, pelos tempos seguintes14, a Europa foi sendo açoitada, intermitentemente, até bem entrado o século XVIII, por focos pestilenciais15 que alastravam por áreas mais ou menos dilatadas e se prolongavam por períodos mais ou menos largos16, deixando sempre na sua esteira rastos de ruína, de tragédia, de incontáveis mortes. Pode ser dito que nenhuma geração permaneceu incólume durante todos estes séculos. No que se refere à Península Ibérica, Marcelino Amasuno considera que em toda a Baixa Idade Média a peste foi um processo nitidamente endémico17.
É certo que já a alta medievalidade, entre os séculos VI e VIII e sobretudo na bacia do Mediterrâneo tinha sofrido os fortes embates da peste18 e o mesmo século XIV tinha conhecido já outros episódios de grave mortalidade19, mas foi efectivamente a partir de meados de Trezentos que se sofreram os seus mais duros assaltos20. A rapidez e abrangência do contágio21, a mortalidade catastrófica que provocava, a óbvia impotência para o enfrentar não podiam deixar ninguém indiferente e a lembrança dos episódios então vividos seria guardada na memória de todos. E transmitida aos mais novos, àqueles que, por ventura, não teriam ainda conhecido os seus efeitos, mas começavam, por essa via, a ser neles introduzidos. E sobre estas desgraças, directa ou indirectamente conhecidas, teria que pairar como uma sombra que potenciaria as próprias calamidades e não podia deixar de perturbar as consciências da época: tratava-se de uma punição divina. Algo de infinitamente maior do que tudo quanto a mente humana era capaz de imaginar e perante a qual a fraqueza dos homens e das mulheres era de todo impotente. Restava um único recurso: implorar, fazendo penitência.
Numa situação destas, o medo - diversos investigadores têm falado em terror - não poupava ninguém22. E o medo da morte, já de si, em regra, superlativo23, potenciado pela crença de que Deus se encontrava de tal modo zangado com toda a humanidade que lhe enviava tamanha punição, e antevendo, por isso, castigos eternos, devia ser, com efeito, pavoroso.
Era necessário, até por tudo isto, envidar os esforços possíveis para afugentar o mal. Quando chegamos aos finais do século XV, a experiência acumulada era já muita. E uma vez que se conhecia um único remédio eficaz - a fuga, o isolamento -, era nessa direcção que se precisava caminhar. Havia assim já, largamente experimentada, uma série de medidas que, se eram ineficazes para curar a doença, minimizavam, pelo menos um tanto, o seu alastramento.
Deste modo, quando, mais uma vez, no Funchal soou o alerta de que grassava a peste no reino e chegara já à ilha, foram de imediato postos em acção os mecanismos já habituais.
Sobre este surto epidémico na Madeira chegaram até nós umas quantas informações, embora poucas, referentes aos trabalhos que o governo municipal funchalense desenvolveu no sentido de fazer face ao problema. Permitem-nos, essas informações, conhecer algumas das medidas que então foram implementadas. Tentemos aproveitá-las.
2 - Na Madeira
Poderia parecer, atentando na situação geográfica da Madeira e assim da sua capital, considerando as suas condições de ilha, portanto de espaço fechado em todo o seu redor por fronteira marítima que, ao tempo, dificilmente conseguiria ser devassado sem que, atempadamente, fosse possível, em terra, prepararem-se para impedir entradas indesejadas, que era fácil, para os madeirenses, manterem-se isolados, usando o único obstáculo conhecido à entrada da peste. Contudo, essas condições que, em teoria, lhe permitiriam evitar contágios, trabalhavam, por outro lado, em seu desfavor.
Ilha em meio do Atlântico, só a chegada de um barco lhe poderia levar a notícia de que, mais uma vez, a tragédia estava a acontecer em qualquer lugar, mas podia, de igual modo, transportar - infiltrar - o contágio. Viesse ele, embora, de longínquas paragens. Além disso, uma ilha dificilmente se bastaria a si própria, sobretudo praticando uma economia como a sua, tão dependente, como já era, de vastos circuitos internacionais - embora muito por intermédio de Lisboa - que a colocavam, neste xadrez de importações e exportações, em contacto com todas as paragens.
As suas relações com o exterior precisavam ser variadas e assíduas, tanto mais quanto os produtos que exportava, ricos que eram, mostravam-se incapazes de satisfazer as mais básicas e elementares necessidades humanas. Precisavam, para isso, ser transformados em numerário, em primeiro lugar o açúcar, o mais rico e apetecido24. Precisamente por isso, a partir de meados do século XV, passou a ser a produção dominante, tornando a ilha cada vez mais dependente do exterior. E mais do que todas a capitania do Funchal, onde se localizavam as melhores terras para a sua cultura25. Iam-se roubando cada vez mais agros para os outros produtos, menos ricos, mas mais necessários à vida26. Em primeiro lugar para os cereais.
Assim, tudo circulava à volta da Madeira27: barcos, produtos, homens, doenças contagiosas - pestes.
Por isso a Madeira, como qualquer outro espaço, não podia manter-se à margem dos ataques da epidemia. E ela chegou, neste caso por volta de finais de Agosto ou princípios de Setembro de 148828.
3 - E a peste chega ao Funchal
Uma das primeiras referências à doença diz-nos que alguém, eventualmente um forasteiro, porque nunca nos foi dito o seu nome, o que era pouco habitual nestes casos, adoecera ou chegara já doente e fora desviado e deslocado para Santa Catarina, acompanhado por duas mulheres, sem dúvida para se ocuparem das suas necessidades básicas e medicamente assistido, como era vulgar na época, por um barbeiro, de nome Diogo Fernandes. Ficou recomendado que tudo fosse feito com o maior resguardo, e o “médico assistente” foi muito bem pago: mil e quatrocentos reais29.
Tudo isto indicia já doença grave e contagiosa. Caso contrário o doente seria tratado no Funchal30 e os órgãos concelhios nada teriam a ver com o assunto, porque o caso não representaria perigo para a saúde pública. Mas uma outra referência, expressa na mesma sessão camarária é já bem explícita. Diz-nos que se alguém adoecer dos “maaos ares” será levado para Santa Catarina, onde será provido de quanto lhe seja necessário31. Aqui, o mal já recebeu um nome que todos entendiam, não ainda o de peste, mas aquele que mais recorrentemente seria usado32. Ao mesmo tempo, está bem patente o alarme: já sabem que o mal chegou e que é contagioso, já se esperam outros casos, já se põe em acção a primeira e mais elementar das medidas então preconizadas e que, aliás, provava ter alguma eficácia: afastar os doentes do convívio com as pessoas saudáveis. É certo que precisavam ser tratados, ser providos de tudo quanto é indispensável à vida. Por pessoas ainda com saúde. Porém, em tais circunstâncias, não devia ser fácil encontrar cuidadores. E aqueles que se disponibilizavam - alguns, por certo, seriam, por qualquer modo, constrangidos a isso - eram bem pagos. Como aquele Diogo Fernandes a que acima fiz referência.
Após este primeiro embate, que resultou na morte do paciente33, mas, ao que parece, sem ter contaminado os seus cuidadores34, outros se lhe seguiram, por certo trazidos pelos barcos que continuavam a aportar35. Naturalmente, era a cadeia que se ia formando, composta, agora, por forasteiros, mas, dentro em pouco, também por naturais. Os doentes continuavam a ser enviados para Santa Catarina, sempre com menção aos respectivos tratadores, que aí ficavam de quarentena após a recuperação - que, contudo, nunca se encontra registada - ou a morte do doente36. Precaução universalmente seguida, como já atrás ficou lembrado37. Aliás, a similitude de medidas, não só neste pormenor como em todos os outros que mais adiante referirei, também já foi notada pela investigação, como não podia ter deixado de acontecer38.
A principal preocupação do governo funchalense, ao menos durante os primeiros meses do flagelo, parece ter sido impedir que as tripulações dos barcos que procuravam a vila, nela entrassem sem terem cumprido o tempo estipulado para a quarentena obrigatória: vinte dias39. Numa determinada altura, discutida em vereação de 20 de Setembro, estiveram à entrada do porto quatro naus, três das quais já tinham cumprido o tempo de espera, mas os homens das suas tripulações “misturaram-se” com os de uma quarta que chegava do Porto, “tam impidoso”, pelo que todos tiveram que continuar em quarentena, após o que, tendo assoalhado tudo quanto levavam, puderam sair, sob juramento40.
Até então, grassando a peste em Portugal ou em outras partes da Europa, tinha sido possível evitar o contágio, ao menos dentro da vila, porque o porto estivera sempre bem guardado. Mas entretanto, por volta de 14 de Novembro, soou a notícia de que duas pessoas haviam morrido no Machico e outras duas se encontravam doentes41. Aí, já tudo se tornava mais grave: a peste estava dentro da ilha. Já não bastava guardar apenas o porto, mas toda a povoação precisava de ser vigiada. O que não era assim tão fácil.
Ao soar o alarme de que “morriam” - bastava empregar esta palavra - em qualquer povoação mais ou menos próxima, o primeiro cuidado era fechar umas quantas portas da muralha - em regra a maioria - colocando guardas nas poucas que se conservavam abertas, para bem controlar todas as entradas de pessoas e objectos42. Algumas dessas portas chegavam mesmo a ser entaipadas a pedra e cal43.
Ora, o Funchal era uma vila aberta. Nunca, até então, tivera muralha, ou sentira necessidade de a ter44. Precisava, por isso, de vigiar os caminhos terrestres, ao menos aqueles que se dirigiam a lugares suspeitos, e controlar todos os transeuntes que por eles passavam em direcção à vila45. Era preciso manter guardas ao longo das estradas, o que implicava um pessoal muito numeroso, dado que a vigilância devia ser mantida dia e noite, com a consequente rotação de sentinelas em cada ponto de vigia. No entanto, era o que havia a fazer e assim foi feito. Não, porém, enquanto a alarmante notícia não fosse confirmada por pessoas fidedignas da terra. Para isso foram enviados dois emissários ao Caniço46, Álvaro de Ornelas e António Leme, ambos eles membros de conceituadas famílias funchalenses47 e portanto homens fiáveis, a inquirir, localmente, sobre o que já tão perto deles se passava48.
Chegada a confirmação da terrível notícia foi determinado colocar guardas no Porto Novo, um deles do Funchal, o outro do Caniço. No entanto, como os moradores desta última povoação eram em pequeno número, cinco funchalenses, cujos nomes ficaram registados no livro da vereação, cumpririam o seu turno em lugar de outros tantos canicenses. Por sua vez, Nuno Fernandes, homem com plantações de açúcar e um engenho açucareiro e possuindo pelo menos seis escravos, entre os quais uma mulher com seus filhos, ficaria às ordens dos guardas e todos eles às dos respectivos capitães, a autoridade máxima na ilha49.
Desta vigilância, de onde ressalta, nítida, a existência de uma hierarquia de competências e responsabilidades, ninguém seria escusado, fossem eles vizinhos, moradores ou apenas estantes, desde que aí tivessem casa. A peste não poupava ninguém: ninguém podia escusar-se ao combate frente a ela. E para que esta determinação fosse cumprida na íntegra e todos executassem seu “giro”, foi mandado elaborar um arruamento geral com os nomes de todos os moradores, para o que se nomearam alguns homens que entre si dividiriam o trabalho50. Na altura, ficaram também indicados os lugares de onde se temia o contágio e com os quais ficavam interditas quaisquer relações. Os visitantes provenientes de outras direcções, para poderem dirigir-se à vila, teriam que apresentar aos guardas aquilo a que poderíamos chamar um boletim de sanidade51 - e que se encontra designado por “recadação” - assinado por homens para isso credenciados52.
Para maior segurança e para melhor dissuadir eventuais prevaricadores no que se refere a visitantes indesejados, foram estabelecidas multas no montante de mil reais a cobrar pelo concelho - num outro local da fonte diz-se quinhentos reais - substituídas por pena de açoites, no caso em que o infractor fosse “homem de baixa sorte” e, por isso, não pudesse pagar. Igual pena teriam quantos, em casa, os recebessem53. E o certo é que a determinação concelhia teve algum efeito, embora assaz mitigado: pelo menos um visitante foi condenado ao pagamento de cem reais por ter vindo de detrás da ilha - por certo dos lados de S. Vicente - sem saber ainda da disposição em contrário, e um outro homem em duzentos reais, por o ter incentivado a entrar na vila sem ter cargo para isso54. Pelo menos em relação ao primeiro destes indivíduos, talvez a alegação de ignorância tivesse tido algum peso, na hora de estabelecer o quantitativo a pagar.
Com todas estas notícias não nos chegaram informações sobre mortes ocorridas dentro da vila, mas apenas de famílias que foram encerradas em casa a cumprir quarentena55, o que geralmente acontecia em situações semelhantes56. Mas houve outras mortes, sim, nas Barrocas de Santa Catarina, para onde, como atrás ficou visto, eram enviados os doentes. E estas já especificamente atribuídas aos “ares pestenençeaes”57.
Porém, esses “ares” continuavam a grassar no Machico, em Santa Cruz, em Boa Ventura, onde, a 28 de Novembro, se diz que, aí, “ora adoecerom dos maos ares”58.
Durante alguns meses, os vereadores funchalenses mantiveram-se silenciosos sobre o assunto e as medidas anteriormente decretadas deviam continuar funcionando, talvez com alguns resultados. Todavia, nem tudo estava assim tão calmo, dado que a 19 de Fevereiro de 1489, mais uma vez, os magistrados locais voltaram ao assunto, mas então para se ocuparem de uma carta chegada de Santa Cruz onde os respectivos dirigentes pediam alguma abertura para os moradores da sua terra, de Boa Ventura, de Gaula e de Porto Novo poderem entrar no Funchal. O que foi aceite, embora de forma bastante cautelosa: um dia por semana, os homens casados, possuidores de boas fazendas e levando certidões de sanidade passadas pelo capitão da sua capitania, poderiam dirigir-se à vila, mas só entrariam obtendo licença do guarda-mor. Realizariam os seus negócios, mas não poderiam pernoitar no Funchal, sob pena de dois mil reais pagos ao concelho. As mesmas condições seriam válidas para os funchalenses abastados que precisassem sair para tratar dos seus interesses, mas não passariam a noite fora, ao menos desde o Porto Novo até Santa Cruz. Caso o fizessem, não seriam recebidos no regresso, nem mesmo trazendo certificado59. Parece que se considerava a noite particularmente perniciosa, nestas circunstâncias.
Estas as condições de abertura propostas pelo Funchal e logo enviadas a Santa Cruz, que se apressou a aceitá-las: dois dias passados chegava a resposta com a anuência, mas trazia ainda um acrescento às condições anteriores: limitava a validade dos certificados de saúde aos que proviessem do capitão e de dois outros homens para isso nomeados: João de Freitas e Antão Álvares60.
Guardavam-se grandes cautelas, ninguém se encontrava ainda muito seguro no que se refere a deslocações. Dentro da ilha, no entanto, notava-se algum desanuviamento.
No que se refere ao exterior, isto é, menções a barcos de qualquer proveniência aportados ao Funchal, já havia muito, neste mês de Fevereiro, que não eram feitas. Possivelmente as disposições anteriores continuariam em funcionamento e sem atropelos, porque estes, a existirem, chegariam, sem dúvida, à câmara. Porque a peste na Europa, em Portugal, continuava a fazer o seu caminho61, o que não deixava de saber-se na ilha. Havia, pois, que manter todo o resguardo possível.
A 28 de Março de 1489, os emissários que anteriormente tinham sido mandatados para irem colher informações - Álvaro de Ornelas e António Leme - de novo foram enviados a Santa Cruz para saberem, junto do capitão e dos magistrados locais “sse a terra esta ssaa”, como eles diziam, para, em caso afirmativo serem abertos os caminhos e livremente poderem circular, embora sempre com apresentação do respectivo certificado de saúde. Até porque a abertura ainda não seria válida para os do Machico e Água de Pena, onde “a pouco que morerom dos maos ares”, e por isso os moradores de Santa Cruz que quisessem ter entrado no Funchal não podiam contactar com eles62.
De resto, os que chegavam do continente - concretamente de Lisboa, mas também de outros lugares - continuavam a cumprir a quarentena de vinte dias63. Era sabido que aí, numa povoação e noutra a peste se mantinha a fazer os seus estragos, e em fins de Abril de 1489 ficou registada a notícia de que um barco proveniente do Porto, via Setúbal, ficara de quarentena - “em degredo”64.
A 27 de Abril parece que o Machico já não estava contaminado. No entanto os magistrados funchalenses aproveitavam a ida de um seu conterrâneo - de nome Pero de Elvas - para o mandatarem a falar com o capitão, Tristão Teixeira, a fim de saberem como estava a sua jurisdição e, assim, “pera os portos serem abertos e se serujrem jrmãamente”65.
Foi a 2 de Maio que o capitão do Machico notificou estar tudo bem naquela terra, assim como em Santa Cruz e no Faial, pelo que “ouuerom os portos por abertos”, “damdo todos louuores a Nosso Senhor Deus”66.
Para já parecia estar o mal debelado. Se outras situações alarmantes voltaram a acontecer nos meses seguintes, não foi possível saber. Caladas as informações dos vereadores camarários por falta das actas seguintes67, nenhumas outras, de momento, foi possível encontrar. Todavia, deve ter ficado claro, para eles, a falta que nestas, como em outras circunstâncias mais ou menos similares, pode fazer um médico credenciado a quem se recorra. É certo que os recursos medicinais não eram, na época, muito eficientes, para qualquer doença, o que todos sabiam e não podia ser muito reconfortante. Mas era o possível. E muitos males podiam curar-se, o que também todos já tinham verificado. E os funchalenses resolveram então escrever para Lisboa, a Mestre Afonso, um físico que eles já conheciam pelas “mujtas curas e rremedeos que ffez e deu aos enffermos no tempo passado que aqui esteue”, pedindo-lhe para voltar. Ofereciam, anualmente, 5.800 reais, provenientes de rendas pagas por bens concelhios, para uma casa em que houvesse de morar68. Não foi possível conhecer a resposta de Mestre Afonso. Mas todos nós, a esta distância, somos capazes de compreender o quanto estes meses vividos na ansiedade alertaram os governantes funchalenses e por certo a maioria da população - se é que isso já não tinha acontecido em tempos anteriormente vividos de forma semelhante - para a falta que os recursos disponíveis, muitos ou poucos eles sejam, podem fazer em situações críticas e como é reconfortante poder contar com alguém mais sabedor que nós, a quem pedir auxílio.
Entretanto a peste continuava a alastrar pela Europa e pelo reino e, como atrás ficou dito, não deixou de fazê-lo durante os séculos seguintes. Mas talvez os funchalenses pudessem ter tido, durante algum tempo, a possibilidade de respirar em paz, sem medo de se cruzarem com os seus semelhantes.
Souto da Casa, Setembro de 2021.